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TEIXEIRA, Denise Mendonça. Ideologização do Plano Diretor. Resenhas Online, São Paulo, ano 04, n. 047.02, Vitruvius, nov. 2005 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/04.047/3147>.


A elaboração de planos diretores para municípios com mais de 20.000 habitantes já é uma exigência do Governo Federal desde a Constituição de 1988. Mas apenas com o Estatuto da Cidade (1) se estabelece um prazo, até outubro de 2006, para que essa obrigatoriedade se cumpra. Tarefa árdua, para o tempo curto, considerando os inúmeros municípios e a ausência de sanções para aqueles que a desobedecerem.

O Ministério das Cidades, na tentativa de agilizar o processo de elaboração dos planos, publicou em novembro de 2004 dois editais, convocando profissionais das diversas regiões do país com experiência na elaboração de Planos Diretores Participativo, a se credenciarem como consultores e capacitadores. Como as exigências eram muitas, poucas equipes e profissionais individuais conseguiram se cadastrar, então novos editais foram publicados no início de 2005, em substituição aos anteriores, simplificando a documentação exigida e reduzindo a pontuação mínima para o pré-cadastramento.

Porém, este cadastramento não implicou na contratação dos credenciados pelo Ministério das Cidades, nem por qualquer outro órgão público, e não conferiu também habilitação automática para participar em processos de licitações. Foi somente uma indicação.

No Brasil de hoje existem em torno de 2500 municípios à espera dos seus planos. Com estes números, fica claro a importância de se estabelecer a discussão sobre o assunto.

O professor Flávio Villaça, em tempo, acaba de escrever um minucioso depoimento sobre o assunto. Depoimento de quem participou e participa de perto da trajetória dos planos diretores, ou seja, do planejamento urbano no nosso país. Suas várias publicações comprovam sua autoridade em tratar do tema, entre eles: Espaço intra-urbano (2), O que todo cidadão precisa saber sobre habitação (3), entre outros textos. Seu último depoimento, veiculado pela Internet, As ilusões do Plano Diretor, com data de publicação de 7 de agosto de 2005, tem seu principal objeto de análise no Plano Diretor Estratégico de São Paulo: sua ideologização, suas legislações, participação da população nas subprefeituras, planos de obras e tudo mais que envolve o Plano.

Mas a discussão que ele faz é mais ampla e pertinente às outras cidades grandes e médias, onde o fenômeno “Plano Diretor” aconteceu e continua a acontecer de forma muito similar. Villaça faz exceção aos municípios inseridos em áreas metropolitanas (ex. Santo André, Guarulhos, Nova Iguaçu) que funcionam na condição de cidades – subúrbio, onde a população é mais homogênea do que as das cidades centrais.

Para o urbanista, um dos grandes equívocos do Plano, já começa com sua denominação – Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. Pois se entende como “Planejamento Estratégico” uma técnica adotada pelos norte-americanos na década de 1960 (4), onde o planejamento deveria ser utilizado para produzir máquinas urbanas de fazer renda. Técnica essa utilizada e aprimorada pelos urbanistas espanhóis nas olimpíadas de 1992, em Barcelona, onde o planejamento, tem como meta a competição entre as cidades no mundo globalizado e informatizado, obedecendo ao ideário neoliberal. Para tanto, foram utilizadas “Ações Estratégicas” claras e não simplesmente propostas. No caso do Plano Diretor de São Paulo, as 338 “Ações Estratégicas” resultantes são simplesmente propostas que não se sabe quem vai executá-las, nem quando, nem como, nem com quais recursos.

As “Ações Estratégicas” constam na redação final dos inúmeros planos diretores já elaborados pelo Brasil afora (independente deles serem destinados a municípios pequenos, médios ou grandes), que têm em comum a força do novo termo utilizado pelo planejamento urbano brasileiro, aparentemente solucionador dos problemas mais urgentes, porém sem propor a utilização adequada dos meios e fins exigidos pelo termo.

Villaça investiga a origem do plano diretor para entender as razões pelas quais este conceito toma força e se transforma em ideologia no Brasil. É no Plano Agache, elaborado para o Rio de Janeiro em 1930, onde encontra sua primeira semente. O autor ironiza, de certa forma, como a idéia de Plano Diretor – instrumento que nunca existiu na prática – possa ter adquirido tanto prestígio, sendo difundido e adotado rapidamente pela elite da sociedade, e principalmente por arquitetos e engenheiros ligados a problemas urbanos, políticos, diversas faculdades, empresários (principalmente do setor imobiliário) e pela imprensa.

Porém, é na década de 1960, período de ditadura militar, com o SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, que os planos, de fato, serão instituídos, e elaborados por técnicos. E somente técnicos, pois a população ficou alheia a qualquer decisão. Como bem diz Villaça, “A valorização dos planos urbanos se insere no contexto da supremacia do conhecimento técnico e científico como guia da ação política, ou seja, a ideologia da tecnocracia” (p. 21). Evidentemente esses planos não funcionaram e ficaram limitados às gavetas dos órgãos públicos. Após estas e outras experiências frustradas, e atentos à ambigüidade das possibilidades advindas do planejamento, desenvolveu-se a idéia do plano participativo, para que houvesse um controle da ação do Estado pela sociedade. Para tanto, a população deve contribuir na sua elaboração, viabilização e acompanhamento permanente e concomitante a todas as administrações municipais.

No entanto, participação não é tarefa fácil e requer conhecimento e interesse das pessoas envolvidas no assunto a ser tratado. O discurso da sua importância é brilhante, mas a prática esta longe de acontecer. Para se atingir este objetivo, depara-se com dificuldades reais. Como elaborar o chamado plano participativo com uma população pouco habituada a essas práticas? Sabe-se que a baixa escolaridade e precária formação dos muitos tidos como alfabetizados, entre outros problemas, são entraves significativos para que ocorra a participação. O papel pedagógico das escolas poderá ser fundamental para um envolvimento inicial, introduzir no ensino fundamental e médio conteúdos referentes a cada município tratado, levando seus desenhos (mapas locais, regionais e outros), maquetes (executadas pelos próprios alunos), dados históricos (origem e outros), compreensão dos aspectos sociais, das atividades econômicas, do meio ambiente, da infra-estrutura e transporte, das legislações existentes que regulam o município, seria a forma mais lúcida de aproximar os jovens e, com o tempo, a população em geral, e fazê-los participar de um projeto para o lugar onde se vive.

Villaça acompanhou de perto, muitas vezes pessoalmente, apenas como observador, todo o processo de participação da população nas diversas subprefeituras do município, durante a elaboração do Plano Diretor de São Paulo. Ele conclui que a participação não depende de escolaridade – ranço de uma ideologia vigente – mas sim, dos interesses em pauta. Sua teoria é comprovada através do relato extraordinário dos dados publicados: população, faixas salariais, número de responsáveis por domicílio, número de participantes das reuniões, quantos falaram, quais os assuntos tratados, etc.

Com esses dados evidenciados, o autor reforça a tese quanto ao Quadrante Sudoeste – região que concentra os distritos com as mais altas rendas domiciliares da cidade de São Paulo – modelo típico da grande diferença de condições de vida, poder político e poder econômico existentes nas maiores cidades brasileiras. Esta concentração de privilégios, mantida há décadas, é constatada nos diversos planos urbanísticos propostos para esta área. Segundo ele, o zoneamento é o exemplo mais contundente: sendo uma legislação, deveria atuar sobre o espaço urbano, variando de local para local da cidade. Contudo, argumenta que “sua finalidade real vem sendo proteger o meio ambiente e os valores imobiliários de interesse da minoria mais rica, contra processos que o degradem” (p. 46), pois as áreas, de fato, controladas pelo zoneamento, a Z-1, sempre foram fiscalizadas, enquanto no resto da cidade, a maior parte – onde a população é mais pobre – este mesmo zoneamento não proíbe quase nada.

Os conflitos de interesse geraram uma participação significativa nas reuniões pela população dessas sub-prefeituras do Quadrante Sudoeste. Nesta parte da cidade, como bem analisa Villaça, havia interesses claros nas propostas do Plano e por essa razão participou-se ativamente das audiências públicos ou fora delas, pois o assunto em questão lhes dizia respeito. No entanto, os debates que aconteciam nas reuniões em outras sub-prefeituras de grande densidade populacional, como a da Cidade de Tiradentes, Itaquera, M’Boi Mirim, tinham baixíssima freqüência: faltava assunto nos encontros, com certeza não tinham conhecimento do Plano, portanto seus problemas não eram apontados como prioritários, mantendo-os longe das discussões, perdendo a oportunidade de colocar suas necessidades mais urgentes e serem atendidos.

A imprensa, grande defensora do Plano Diretor de São Paulo durante sua elaboração e participante da ideologia vigente, tem nele o grande solucionador de todos os entraves da cidade e chegou a afirmar em editais, que sua ausência é o que acarreta o rápido crescimento da cidade, sendo a grande causa dos seus problemas; ao invés de “desigualdade de riqueza e de poder político da sua população, pelo desemprego, pela miséria, pelas más condições de saneamento, de saúde, moradia e educação da maioria” (p. 10). A imprensa valoriza, sobremaneira, as “novas” determinações do Plano, principalmente no que se refere ao meio-ambiente, esquecendo-se que muitas delas não passam de cópias de leis estaduais vigentes há décadas, mas nunca cumpridas.

Exemplo contundente da não obediência às legislações existentes é quanto à proteção dos mananciais (legislação inicialmente municipal, depois estadual), onde existe uma grande restrição quanto ao uso e ocupação do solo nessas áreas, para evitar a poluição das represas e preservar os recursos hídricos. No entanto, o que acontece, particularmente nas bacias de Guarapiranga e Billings, abastecedoras de água da cidade de São Paulo, é a ocupação acelerada de suas margens, conseqüência da ausência de alternativas de moradia para a população de baixa renda da cidade. Estes exemplos são elucidativos, pois mostram que as leis já existem, mas muitas vezes não são cumpridas. Fica a indagação: para que mais leis em setores onde elas já existem? Para a imprensa, o plano é visto com a “salvação da cidade”, em todos os sentidos, sem uma avaliação mais profunda do assunto.

O autor enfatiza a prepotência das leis de planos diretores, quando define seus projetos para diferentes áreas como saneamento, meio ambiente, transporte, educação entre outras, que são da esfera estadual e federal. Ou seja , o plano diretor seria mais poderoso que qualquer outro projeto do governo, esquecendo-se que o município é quem deve compatibilizar seus planos aos do estado, e não o contrário.

Em São Paulo, projetos como os CEUS, o Bilhete Único ou dos Corredores, que já vinham sendo gestados bem antes do Plano, pelas Secretarias de Educação e de Transportes, constam nele como se fossem projetos novos, exemplos típicos citados por Villaça onde a administração condicionou o plano e não o contrário.

Comenta também a quantidade de planos existentes para o Município de São Paulo (Plano Municipal de Saneamento Básico, Plano Municipal de Educação, Plano Municipal de Saúde, entre outros), demonstrando que este excesso de planos confusos e irracionais comprovam que o apelo a eles é duvidoso, contribuindo para desacreditá-los, por um lado, mas também, contrariamente, ajudando a manter sua imagem de “salvador” de todos os problemas existentes na cidade. O que confirma um ideário vigente de uma tecnocracia onde o conhecimento técnico e científico deve ser o condutor da ação política.

O Estatuto da Cidade (lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001) criou instrumentos que podem viabilizar, em alguns casos e se bem utilizados, o conteúdo material dos planos em geral. Contudo, instrumentos como a Outorga Onerosa, as Operações Urbanas Consorciadas, a Transferência do Direito de Construir, podem ser apropriadas, na maioria das vezes, para as grandes cidades e pouco, ou quase nada, nas pequenas e médias. Pois tais instrumentos são estimuladores de concentração de população, onde a terra é disputada acirradamente, o que não ocorre nas cidades menores, onde a especulação imobiliária praticamente inexiste. No entanto, os instrumentos Direito de Preempção e as Zonas Especiais de Interesse Social, podem, se bem utilizados, melhorar a qualidade dessas áreas urbanas. No que se refere as áreas rurais, correspondentes a maior parte da superfície dos municípios, o Estatuto não contempla políticas agrárias específicas, mesmo por que o assunto é da alçada da União, mas determina que os planos sejam obrigatórios para os municípios como um todo.

Para Villaça, o Estatuto da Cidade avança quando confere força ao Plano Diretor a partir dos dispositivos sobre função social da propriedade e pelas penalidades nele contidas. No entanto, constata que depois de quatro anos de vigência do Estatuto, pouco se efetivou, pois nenhuma lei municipal específica foi aprovada (exigência do art. 5 do Estatuto da Cidade) e nenhum proprietário de imóvel não edificado, subutilizado ou não utilizado, foi notificado.

As ilusões do Plano Diretor é uma análise formidável das dificuldades, possibilidades, resultados e ideologização do planejamento urbano no Brasil. Possível, somente, por decorrer da experiência teórica e prática de um urbanista consistente e principalmente corajoso. Flávio Villaça escreve sobre as novas possibilidades de planejar, contando para tanto com a participação da maioria, vítima maior do ônus caótico urbano.

notas

1
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (Fernando Henrique Cardoso; Pedro Parente). Estatuto da Cidade, Medida Provisória nº 2.220, 4 set. 2001. <www.estatutodacidade.org.br/download/estatuto-da-cidade.zip>. (acessado em 3 nov. 2005).

2
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano. São Paulo, Studio Nobel, 2001.

3
VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo, Global editora e distribuidora Ltda., 1986.

4
ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas”. ARANTES, Otília . VAINER, Carlos e MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ, 2000, Editora Vozes, 2000.

sobre o autor

Denise Mendonça Teixeira, arquiteta, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie com a dissertação “Plano Diretor do Município de Ipiaú – BA: limitaçõesto e possibilidades”.

 

A elaboração de planos diretores para municípios com mais de 20.000 habitantes já é uma exigência do Governo Federal desde a Constituição de 1988. Mas apenas com o Estatuto da Cidade (1) se estabelece um prazo, até outubro de 2006, para que essa obrigatoriedade se cumpra. Tarefa árdua, para o tempo curto, considerando os inúmeros municípios e a ausência de sanções para aqueles que a desobedecerem.

O Ministério das Cidades, na tentativa de agilizar o processo de elaboração dos planos, publicou em novembro de 2004 dois editais, convocando profissionais das diversas regiões do país com experiência na elaboração de Planos Diretores Participativo, a se credenciarem como consultores e capacitadores. Como as exigências eram muitas, poucas equipes e profissionais individuais conseguiram se cadastrar, então novos editais foram publicados no início de 2005, em substituição aos anteriores, simplificando a documentação exigida e reduzindo a pontuação mínima para o pré-cadastramento.

Porém, este cadastramento não implicou na contratação dos credenciados pelo Ministério das Cidades, nem por qualquer outro órgão público, e não conferiu também habilitação automática para participar em processos de licitações. Foi somente uma indicação.

No Brasil de hoje existem em torno de 2500 municípios à espera dos seus planos. Com estes números, fica claro a importância de se estabelecer a discussão sobre o assunto.

O professor Flávio Villaça, em tempo, acaba de escrever um minucioso depoimento sobre o assunto. Depoimento de quem participou e participa de perto da trajetória dos planos diretores, ou seja, do planejamento urbano no nosso país. Suas várias publicações comprovam sua autoridade em tratar do tema, entre eles: Espaço intra-urbano (2), O que todo cidadão precisa saber sobre habitação (3), entre outros textos. Seu último depoimento, veiculado pela Internet, As ilusões do Plano Diretor, com data de publicação de 7 de agosto de 2005, tem seu principal objeto de análise no Plano Diretor Estratégico de São Paulo: sua ideologização, suas legislações, participação da população nas subprefeituras, planos de obras e tudo mais que envolve o Plano.

Mas a discussão que ele faz é mais ampla e pertinente às outras cidades grandes e médias, onde o fenômeno “Plano Diretor” aconteceu e continua a acontecer de forma muito similar. Villaça faz exceção aos municípios inseridos em áreas metropolitanas (ex. Santo André, Guarulhos, Nova Iguaçu) que funcionam na condição de cidades – subúrbio, onde a população é mais homogênea do que as das cidades centrais.

Para o urbanista, um dos grandes equívocos do Plano, já começa com sua denominação – Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. Pois se entende como “Planejamento Estratégico” uma técnica adotada pelos norte-americanos na década de 1960 (4), onde o planejamento deveria ser utilizado para produzir máquinas urbanas de fazer renda. Técnica essa utilizada e aprimorada pelos urbanistas espanhóis nas olimpíadas de 1992, em Barcelona, onde o planejamento, tem como meta a competição entre as cidades no mundo globalizado e informatizado, obedecendo ao ideário neoliberal. Para tanto, foram utilizadas “Ações Estratégicas” claras e não simplesmente propostas. No caso do Plano Diretor de São Paulo, as 338 “Ações Estratégicas” resultantes são simplesmente propostas que não se sabe quem vai executá-las, nem quando, nem como, nem com quais recursos.

As “Ações Estratégicas” constam na redação final dos inúmeros planos diretores já elaborados pelo Brasil afora (independente deles serem destinados a municípios pequenos, médios ou grandes), que têm em comum a força do novo termo utilizado pelo planejamento urbano brasileiro, aparentemente solucionador dos problemas mais urgentes, porém sem propor a utilização adequada dos meios e fins exigidos pelo termo.

Villaça investiga a origem do plano diretor para entender as razões pelas quais este conceito toma força e se transforma em ideologia no Brasil. É no Plano Agache, elaborado para o Rio de Janeiro em 1930, onde encontra sua primeira semente. O autor ironiza, de certa forma, como a idéia de Plano Diretor – instrumento que nunca existiu na prática – possa ter adquirido tanto prestígio, sendo difundido e adotado rapidamente pela elite da sociedade, e principalmente por arquitetos e engenheiros ligados a problemas urbanos, políticos, diversas faculdades, empresários (principalmente do setor imobiliário) e pela imprensa.

Porém, é na década de 1960, período de ditadura militar, com o SERFHAU – Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, que os planos, de fato, serão instituídos, e elaborados por técnicos. E somente técnicos, pois a população ficou alheia a qualquer decisão. Como bem diz Villaça, “A valorização dos planos urbanos se insere no contexto da supremacia do conhecimento técnico e científico como guia da ação política, ou seja, a ideologia da tecnocracia” (p. 21). Evidentemente esses planos não funcionaram e ficaram limitados às gavetas dos órgãos públicos. Após estas e outras experiências frustradas, e atentos à ambigüidade das possibilidades advindas do planejamento, desenvolveu-se a idéia do plano participativo, para que houvesse um controle da ação do Estado pela sociedade. Para tanto, a população deve contribuir na sua elaboração, viabilização e acompanhamento permanente e concomitante a todas as administrações municipais.

No entanto, participação não é tarefa fácil e requer conhecimento e interesse das pessoas envolvidas no assunto a ser tratado. O discurso da sua importância é brilhante, mas a prática esta longe de acontecer. Para se atingir este objetivo, depara-se com dificuldades reais. Como elaborar o chamado plano participativo com uma população pouco habituada a essas práticas? Sabe-se que a baixa escolaridade e precária formação dos muitos tidos como alfabetizados, entre outros problemas, são entraves significativos para que ocorra a participação. O papel pedagógico das escolas poderá ser fundamental para um envolvimento inicial, introduzir no ensino fundamental e médio conteúdos referentes a cada município tratado, levando seus desenhos (mapas locais, regionais e outros), maquetes (executadas pelos próprios alunos), dados históricos (origem e outros), compreensão dos aspectos sociais, das atividades econômicas, do meio ambiente, da infra-estrutura e transporte, das legislações existentes que regulam o município, seria a forma mais lúcida de aproximar os jovens e, com o tempo, a população em geral, e fazê-los participar de um projeto para o lugar onde se vive.

Villaça acompanhou de perto, muitas vezes pessoalmente, apenas como observador, todo o processo de participação da população nas diversas subprefeituras do município, durante a elaboração do Plano Diretor de São Paulo. Ele conclui que a participação não depende de escolaridade – ranço de uma ideologia vigente – mas sim, dos interesses em pauta. Sua teoria é comprovada através do relato extraordinário dos dados publicados: população, faixas salariais, número de responsáveis por domicílio, número de participantes das reuniões, quantos falaram, quais os assuntos tratados, etc.

Com esses dados evidenciados, o autor reforça a tese quanto ao Quadrante Sudoeste – região que concentra os distritos com as mais altas rendas domiciliares da cidade de São Paulo – modelo típico da grande diferença de condições de vida, poder político e poder econômico existentes nas maiores cidades brasileiras. Esta concentração de privilégios, mantida há décadas, é constatada nos diversos planos urbanísticos propostos para esta área. Segundo ele, o zoneamento é o exemplo mais contundente: sendo uma legislação, deveria atuar sobre o espaço urbano, variando de local para local da cidade. Contudo, argumenta que “sua finalidade real vem sendo proteger o meio ambiente e os valores imobiliários de interesse da minoria mais rica, contra processos que o degradem” (p. 46), pois as áreas, de fato, controladas pelo zoneamento, a Z-1, sempre foram fiscalizadas, enquanto no resto da cidade, a maior parte – onde a população é mais pobre – este mesmo zoneamento não proíbe quase nada.

Os conflitos de interesse geraram uma participação significativa nas reuniões pela população dessas sub-prefeituras do Quadrante Sudoeste. Nesta parte da cidade, como bem analisa Villaça, havia interesses claros nas propostas do Plano e por essa razão participou-se ativamente das audiências públicos ou fora delas, pois o assunto em questão lhes dizia respeito. No entanto, os debates que aconteciam nas reuniões em outras sub-prefeituras de grande densidade populacional, como a da Cidade de Tiradentes, Itaquera, M’Boi Mirim, tinham baixíssima freqüência: faltava assunto nos encontros, com certeza não tinham conhecimento do Plano, portanto seus problemas não eram apontados como prioritários, mantendo-os longe das discussões, perdendo a oportunidade de colocar suas necessidades mais urgentes e serem atendidos.

A imprensa, grande defensora do Plano Diretor de São Paulo durante sua elaboração e participante da ideologia vigente, tem nele o grande solucionador de todos os entraves da cidade e chegou a afirmar em editais, que sua ausência é o que acarreta o rápido crescimento da cidade, sendo a grande causa dos seus problemas; ao invés de “desigualdade de riqueza e de poder político da sua população, pelo desemprego, pela miséria, pelas más condições de saneamento, de saúde, moradia e educação da maioria” (p. 10). A imprensa valoriza, sobremaneira, as “novas” determinações do Plano, principalmente no que se refere ao meio-ambiente, esquecendo-se que muitas delas não passam de cópias de leis estaduais vigentes há décadas, mas nunca cumpridas.

Exemplo contundente da não obediência às legislações existentes é quanto à proteção dos mananciais (legislação inicialmente municipal, depois estadual), onde existe uma grande restrição quanto ao uso e ocupação do solo nessas áreas, para evitar a poluição das represas e preservar os recursos hídricos. No entanto, o que acontece, particularmente nas bacias de Guarapiranga e Billings, abastecedoras de água da cidade de São Paulo, é a ocupação acelerada de suas margens, conseqüência da ausência de alternativas de moradia para a população de baixa renda da cidade. Estes exemplos são elucidativos, pois mostram que as leis já existem, mas muitas vezes não são cumpridas. Fica a indagação: para que mais leis em setores onde elas já existem? Para a imprensa, o plano é visto com a “salvação da cidade”, em todos os sentidos, sem uma avaliação mais profunda do assunto.

O autor enfatiza a prepotência das leis de planos diretores, quando define seus projetos para diferentes áreas como saneamento, meio ambiente, transporte, educação entre outras, que são da esfera estadual e federal. Ou seja , o plano diretor seria mais poderoso que qualquer outro projeto do governo, esquecendo-se que o município é quem deve compatibilizar seus planos aos do estado, e não o contrário.

Em São Paulo, projetos como os CEUS, o Bilhete Único ou dos Corredores, que já vinham sendo gestados bem antes do Plano, pelas Secretarias de Educação e de Transportes, constam nele como se fossem projetos novos, exemplos típicos citados por Villaça onde a administração condicionou o plano e não o contrário.

Comenta também a quantidade de planos existentes para o Município de São Paulo (Plano Municipal de Saneamento Básico, Plano Municipal de Educação, Plano Municipal de Saúde, entre outros), demonstrando que este excesso de planos confusos e irracionais comprovam que o apelo a eles é duvidoso, contribuindo para desacreditá-los, por um lado, mas também, contrariamente, ajudando a manter sua imagem de “salvador” de todos os problemas existentes na cidade. O que confirma um ideário vigente de uma tecnocracia onde o conhecimento técnico e científico deve ser o condutor da ação política.

O Estatuto da Cidade (lei n° 10.257 de 10 de julho de 2001) criou instrumentos que podem viabilizar, em alguns casos e se bem utilizados, o conteúdo material dos planos em geral. Contudo, instrumentos como a Outorga Onerosa, as Operações Urbanas Consorciadas, a Transferência do Direito de Construir, podem ser apropriadas, na maioria das vezes, para as grandes cidades e pouco, ou quase nada, nas pequenas e médias. Pois tais instrumentos são estimuladores de concentração de população, onde a terra é disputada acirradamente, o que não ocorre nas cidades menores, onde a especulação imobiliária praticamente inexiste. No entanto, os instrumentos Direito de Preempção e as Zonas Especiais de Interesse Social, podem, se bem utilizados, melhorar a qualidade dessas áreas urbanas. No que se refere as áreas rurais, correspondentes a maior parte da superfície dos municípios, o Estatuto não contempla políticas agrárias específicas, mesmo por que o assunto é da alçada da União, mas determina que os planos sejam obrigatórios para os municípios como um todo.

Para Villaça, o Estatuto da Cidade avança quando confere força ao Plano Diretor a partir dos dispositivos sobre função social da propriedade e pelas penalidades nele contidas. No entanto, constata que depois de quatro anos de vigência do Estatuto, pouco se efetivou, pois nenhuma lei municipal específica foi aprovada (exigência do art. 5 do Estatuto da Cidade) e nenhum proprietário de imóvel não edificado, subutilizado ou não utilizado, foi notificado.

As ilusões do Plano Diretor é uma análise formidável das dificuldades, possibilidades, resultados e ideologização do planejamento urbano no Brasil. Possível, somente, por decorrer da experiência teórica e prática de um urbanista consistente e principalmente corajoso. Flávio Villaça escreve sobre as novas possibilidades de planejar, contando para tanto com a participação da maioria, vítima maior do ônus caótico urbano.

Notas

1
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (Fernando Henrique Cardoso; Pedro Parente). Estatuto da Cidade, Medida Provisória nº 2.220, 4 set. 2001. <www.estatutodacidade.org.br/download/estatuto-da-cidade.zip>. (acessado em 3 nov. 2005).

2
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano. São Paulo, Studio Nobel, 2001.

3
VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo, Global editora e distribuidora Ltda., 1986.

4
ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal. A cultura nas novas gestões urbanas”. ARANTES, Otília . VAINER, Carlos e MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ, 2000, Editora Vozes, 2000.

Denise Mendonça Teixeira, arquiteta, mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Mackenzie com a dissertação “Plano Diretor do Município de Ipiaú – BA: limitações e possibilidades”.

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As ilusões do plano diretor

As ilusões do plano diretor

Flávio Villaça

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