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CAMARGO, Mônica Junqueira de. Uma possível composição do pensamento arquitetônico pós-moderno. Resenhas Online, São Paulo, ano 05, n. 057.02, Vitruvius, set. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/05.057/3131>.


A organização de antologias exige, em doses iguais, pesquisa e perspicácia, demandando tanto ou mais trabalho que a produção de uma monografia inédita, e sua contribuição, dado seu caráter colecionista, cumpre um papel específico no avanço das idéias, especialmente se relativa a um período dinâmico e caracterizado pela pluralidade e pela revisão de arraigados princípios. Construir uma trama própria tomando emprestados pensamentos alheios requer habilidade. A dialética que se estabelece seja pelo confronto de pensamentos distintos sob um mesmo tema, seja pelas diferentes idéias de um mesmo autor, convida instintivamente à reflexão, consagrando esse gênero literário como uma contribuição importante à consolidação de qualquer área do conhecimento. Impossível imaginar os rumos da arquitetura moderna brasileira sem as antologias de Alberto Xavier. Sobre Arquitetura, a coletânea de textos, de autoria de Lúcio Costa, organizada, em 1962, quando ainda era estudante, foi fundamental para a consolidação do pensamento arquitetônico moderno e por anos, a sua única referência. Depoimentos de uma geração. Arquitetura moderna brasileira, inicialmente publicada em 1987, reuniu, pela primeira vez, textos canônicos produzidos desde os anos 1920, que se encontravam dispersos em revistas e jornais, alguns deles de difícil acesso. Felizmente revisada e ampliada, foi publicada em 2003 pela Cosac Naify, a mesma editora que agora lança outra importante coletânea Uma nova agenda para arquitetura. Antologia teórica 1965-1995.

Orientada pela arquiteta e professora Kate Nesbitt, esta publicação é resultado de uma pesquisa que cobriu essas três décadas através de um exaustivo levantamento que vasculhou 27 periódicos em 7 países, consistindo um precioso balanço da produção teórica recente que disponibiliza num único volume idéias emblemáticas até então dispersas. A sua publicação em 1996, pela Princeton Press, representou um marco para a reflexão da arquitetura e esta sua tradução para a língua portuguesa, em 2006, permitindo alcançar um público muito mais amplo e expandir as fronteiras do debate, constitui um importante fomento ao pensamento arquitetônico contemporâneo.

A seleção e organização dos textos, sob temas criativamente elaborados, e não na comum seqüência cronológica, expõem a sua própria visão sobre o panorama da arquitetura recente. Uma concisa introdução, esclarecendo os principais aspectos levantados ao longo do trabalho, e as apresentações de cada um dos textos, justificando a escolha e analisando a pertinência das idéias tratadas, trazem à tona as reflexões de Nesbitt sobre o momento contemporâneo, constituindo per si uma grande contribuição.

Estruturados em catorze capítulos, os 51 ensaios de 35 autores diferentes, versando sobre a crise da arquitetura moderna e introduzindo novos aspectos da disciplina, tratam essencialmente do pós-modernismo, entendido pela autora “não como um estilo singular, mas, antes, a percepção de integrar um período marcado pelo pluralismo” (1). Privilegiando algumas vertentes e destacando certos autores, Kate nos traz as principais questões que vêm alimentando o debate deflagrado, a partir de 1966, pela publicação do livro Complexidade e contradição em arquitetura de Robert Venturi, segundo ela, o marco inaugural da crítica à hegemonia do pensamento moderno. Com sua teoria da inclusão – tanto... como – Venturi promove a renovação da consciência histórica, abrindo o caminho para uma condição plena de possibilidades interpretativas, algumas das quais, talvez as mais importantes, sagazmente tratadas nesta antologia.

A inexistência, no período analisado, de um ponto de vista predominante colabora para a proliferação das novas teorias que buscam explicar aspectos ainda desconhecidos da disciplina. Sob temas como significado, história e sociedade, a cultura arquitetônica dessas décadas é passada em revista e discutida à luz de novos enquadramentos ideológicos e paradigmas teóricos, tais como a fenomenologia; a estética; a teoria lingüística, o marxismo e o feminismo que, importados de outros ramos do conhecimento, vêm ajudando a modelar a teoria da arquitetura. A organização dos textos sob essas diversas categorias e a participação de um mesmo autor em temas distintos garantem uma dinâmica fruição das idéias, estabelecendo não só um rico diálogo entre os autores, como nos convidando a participar do debate.

O enredo construído por Nesbit, ao recuperar as principais trilhas de discussão e identificar as bases teóricas da produção, consegue alinhavar importantes conceitos dispersos, que se destituídos de fundamentação caem no vazio do lugar comum, o que não raro se tem verificado na nossa área, obstruindo um aprofundamento do conhecimento arquitetônico. Ao acolher no âmbito da discussão sobre o papel social da arquitetura, não apenas a investigação de sua condição de arte ou de serviço social, mas, trazendo para o centro do debate ético e político, distintas questões que versam sobre a autonomia da arquitetura, a noção de bem comum, as novas relações homem-natureza e a ressurreição da noção de bem-estar social, Nesbitt confere sentido a essas idéias, que se lançadas fora de contexto, reduzem-se a meros jargões, como sustentabilidade, ecologia, preservação, etc.

Nesse interessantíssimo percurso intelectual, que privilegia as divergências às convergências, a autora sugere imbricadas relações até entre os pensamentos de uma mesma escola ou corrente filosófica, considerando a falta de unidade não como uma deficiência, mas, como a grande qualidade do pós-modernismo. A contribuição da Escola de Veneza se descortina tanto pelo enfoque dos neoracionalistas Gregotti e Rossi, na sua tentativa de restabelecer as fundamentações teóricas do projeto arquitetônico, como pela ótica neomarxista de Tafuri, ao explicar a ineficiência da ideologia para a arquitetura moderna.

A seqüência dos temas, ao mesmo tempo, que vai introduzindo novas idéias, algumas seguem em continuidade enquanto outras são resgatadas, numa cadência, cujo ritmo é determinado pelo interesse de cada leitor. Percorrendo os capítulos, vamos deparando-nos com as idéias de Heidegger ora identificadas na reflexão fenomenológica sobre a arquitetura, exaltando os seus elementos básicos e recuperando o interesse pelas qualidades sensoriais dos materiais, luz e cor; ora como evidente influência no desconstrutivismo de Jacques Derrida, como também nas novas teses sobre o corpo, que apontam para uma renovação pós-moderna nas suas relações com a arquitetura. Na construção teórica que se vai estruturando pela sucessão dos textos, o paradigma fenomenológico assume papel extremamente relevante, uma vez que, como apresentado na introdução, está na base das atitudes pós-modernas com relação ao sítio, ao lugar, à paisagem, à edificação e além de ressaltar uma questão, colocada por Nesbitt, como fundamental da estética: “o efeito que uma obra de arquitetura produz no observador” (2).

As especulações são muitas e da maneira como são associadas permitem leituras inusitadas. No capítulo – Feminismo, gênero e o problema do corpo – a contestação dos antigos paradigmas, o racionalismo e o antropomorfismo, é apresentada pelo intricado diálogo entre as idéias de Bernard Tschumi, Diana Agrest e Peter Eisenman, que propõem sua substituição por outros que consigam desvendar a trama de uma nova ordem estabelecida pelo prazer, pelo respeito às diferenças, pela participação da mulher e pela substituição dos meios mecânicos pelos meios eletrônicos. O texto de Tschumi anuncia que “a arquitetura do prazer depende de uma proeza especial, que é a de manter a arquitetura obcecada consigo mesma de maneira tão ambígua que jamais se rende à boa consciência ou à paródia, à debilidade ou à neurose delirante” (3); enquanto o de Agrest defende a reabilitação do corpo feminino na arquitetura, que foi, segundo ela, relegado no sistema da arquitetura desde Vitruvius, postura esta reconfirmada pelo renascimento e que se prolongou até o movimento moderno: “em toda a história da arquitetura, a mulher tem sido substituída /deslocada não só em um plano social geral, mas de modo mais específico no plano do corpo com a arquitetura” (4); e o de Eisenman arremata o tema tecendo considerações sobre “o paradigma eletrônico que impõe um formidável desafio à arquitetura, já que define a realidade em termos de meios de comunicação e simulação, privilegia a aparência à existência e o que pode ver ao que é” (5).

Essas noções, claramente desenvolvidas por cada um dos autores, suscitam pela estratégia da organizadora novas indagações.

Os critérios para a seleção dos textos, tal como o conhecimento que apresentam, são também diversos. O tema – a teoria urbana – se faz presente por uma restrita seleção, apesar das inúmeras propostas de revisão do urbanismo moderno. Deixando de lado as propostas de Rossi, Krier, e as intervenções catalãs sob a coordenação de Bohigas, apenas três concepções urbanísticas são abordadas, que têm em comum o fato de exercerem forte influência na cultura urbanística americana e de terem sido desenvolvidas com o apoio de pesquisas acadêmicas nas Universidades de Cornell, Harvard, Yale, Filadélfia e no IAUS Institute for Architecture and Urban Studies. A contextualista representada por Rowe, Koetter e Schumacher, concentra-se na idéia de colagem – um modo de conferir integridade a uma mistura confusa de referências pluralistas; a populista ou a Main Street Americana encampada por Venturi, Scott Brown e Steven Izenour, com visível influência da semiótica buscando recuperar a função simbólica da arquitetura; e o modelo de cidade contemporânea global defendido por Rem Koolhaas, uma exaltação da cultura do congestionamento metropolitano, particularmente centrado em Nova York. As idéias desses arquitetos, distintas enquanto argumento crítico se individualmente analisadas, assumem outra dimensão se colocadas lado a lado, conformando uma profunda revisão ao urbanismo moderno.

Cada capítulo sugere infinitas investigações, que se registradas conformariam um novo livro. E talvez esteja aí, uma das maiores contribuições dessa antologia – para além do que está registrado o quanto suscita de inquietação. Trata-se, sem dúvida, de uma obra de referência, cuja presença se notará no trabalho crítico e de criação das novas gerações de arquitetos.

notas

1
NESBITT, Kate. “Introdução”. In NESBITT, Kate (org). Uma nova agenda para a arquitetura. Antologia teórica (1965-1995). São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 16.

2
Idem, p. 32.

3
TSCHUMI, Bernard. “O prazer da arquitetura”. In NESBITT, Kate. Op. cit, p. 581.

4
AGREST, Diana. “À margem da arquitetura: corpo, lógica e sexo”. In NESBITT, Kate. Op. cit, p. 587.

5
EISENMAN, Peter. “Visões que se desdobram: a arquitetura na era da mídia eletrônica”. In NESBITT, Kate. Op. cit, p. 601

sobre o autor

Mônica Junqueira de Camargo, arquiteta, doutora, professora de história da arquitetura contemporânea da Universidade de São Paulo, conselheira do Conpresp, co-autora Fotografia Paulistana; Fábio Penteado – Ensaios de Arquitetura e autora de Joaquim Guedes.

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