Passando sobranceiro ao largo da tentação de buscar um caráter antológico, armadilha fácil quando se parte para uma proposta de colecionamento de textos numa publicação de assunto específico, Paisagens úteis de Eduardo Barra traz, em si, a qualidade à qual Roberto Burle Marx (1) se referia como curiosidade pela vida, que os que lidam com o espaço aberto, exterior ou se quiserem, paisagístico, devem adotar como ponto de partida. Tal qualidade consiste na inquietude em acrescentar ao acervo pessoal as informações e atualizações que nos livram da fórmula fácil e da mesmice. Por outro lado, quando digo “caráter antológico” não me refiro à acepção botânica de estudo das flores, mas ao sentido, mais adequado a meus propósitos de florilégio, significando colher e colecionar flores, por extensão, textos que, em seu conjunto, representem uma idéia ou atitude (2).
Ao examinar a obra, é necessário explicar uma taxonomia que revela o fio condutor, a linha comum subjacente que identifica a combinação dos conteúdos com seu autor e, conseqüentemente, explicita a unidade indispensável a esta – e a qualquer outra – coletânea de textos. Embora, pensando bem, não seja fundamental para a compreensão e o prazer da leitura trazer à luz critérios definidores, o que se segue é uma tentativa de revelar tal estrutura que, mais que ao leitor, ajuda-me a sistematizar a interpretação e me desincumbir da agradável – e talvez pretensiosa – tarefa de prepará-lo para conhecer uma ampla varredura em paisagismo, o que já denota a importância do livro ao tratar assunto tão pouco bibliografado no Brasil.
Para facilitar, proponho-me a iniciar esta hierarquia taxonômica caracterizando as duas seções em que o livro claramente se divide: a primeira, constituída por artigos completos em si, mas que, em sua independência compõem um conjunto de ampla gama de conhecimentos paisagísticos, a que me referi acima como varredura. A outra seção constitui-se de notas que, como um mosaico de pequenos fragmentos, compõe a cena sob o título geral de Diversas Paisagens, repetindo em forma condensada, os temas da primeira seção. Se este parágrafo parece ao leitor a descrição de uma sinfonia ou outra peça musical qualquer é porque, na realidade, as estruturas do livro e de muitas músicas têm, em comum, a recorrência de temas que, ora numa seção, ora noutra, apresentam-se sob a forma de variações, modulações ou “orquestrações” diferentes que podem surgir num pianíssimo ou explodir num tutti, como veremos a seguir.
Logo no texto de abertura temos uma bem humorada análise da, por vezes, curiosa nomenclatura botânica que, a despeito dos rígidos padrões da nomenclatura científica, encontra designações de clara interpretação antrópica ou, mais, antropocêntrica (e.g. Oplismenus imbecilis), atribuindo aos inocentes vegetais qualidades humanas nem sempre elogiáveis. Este bom humor reflete-se, ora de forma direta, ora utilizando-se do perigoso instrumento da ironia, em diversos outros textos como em Moda ou coerência, um ataque implacável aos modismos ditados pelas revistas “especializadas” e pelos eventos do tipo Casa-Cor; em Febeapá de saibro, onde o autor denuncia a tendência da padronização oficial (no caso, Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro) que, através de decretos e regulamentos, pretende resolver com uma só solução a infinidade de distintos problemas paisagísticos que podem ocorrer no ambiente urbano; e em Liberdade para os anões, onde nos é dada notícia de uma ação da Frente de Libertação dos Anões de Jardim, entidade cujo nome dispensa maiores explicações.
Mas, é importante notar que essa ironia não é uma arma gratuita apontada para personagens-alvos mas para fatos que, em si, a merecem e justificam. Trata-se apenas da revelação do lado ridículo de certos acontecimentos que não passam despercebidos ao olhar atento de Barra, embora tais críticas revistam-se de conotações jornalísticas sérias e bem intencionadas que impregnaram o autor durante o tempo em que este manteve na web o Jornal da Paisagem (3).
Este jornalismo de origem digital está claro também em artigos que perdem o componente irônico, substituído por mensagens claras e diretas cuja intenção de documentação e registro implicam numa linguagem mais técnica, mais objetiva e, em nome da concisão, mais direta. Começamos por Os paisagistas, as bromélias e a dengue, reportagem sobre mesa-redonda que tratou da polêmica envolvendo as bromélias, tão queridas de paisagistas e não-paisagistas, como vetores de disseminação da dengue, seguindo em Memorial Roosevelt: uma novela americana (em dois capítulos), em que nos é relatada a meticulosa história das marchas e contramarchas envolvendo os concursos e projetos para a obra a que o título do artigo se refere. Impressões paisagísticas de Israel registra a viagem e observações da paisagista Rosa Grena Kliass sobre o tema e profissionais da área, naquele país, e Passeio Público do Rio de Janeiro, de fora para dentro é um bem documentado testemunho sem censura dos diversos equívocos, omissões, imposições e tendenciosidades que envolveram as obras de suposto restauro daquele que foi o primeiro jardim público no Brasil. Neste texto é mencionada a enorme quantidade de estátuas, hermas e bustos que, ao longo do tempo, foram infestando aquele jardim histórico sob o olhar complacente do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Faço esta menção como pretexto para mencionar uma conferência dos anos 60 em que Burle Marx criticava o que chamou de “bustificação” das praças no Brasil, coincidentemente ironizando a estátua de Irineu Marinho como suposto inventor da máquina de extrair caldo-de-cana. O leitor irá entender a ironia quando ver o monumento, ou in situ ou sua fotografia no corpo do artigo.
O lado jornalístico é reafirmado na pequena e simpática crônica Será que “arquitetura paisagística” foi uma boa idéia? que nos dá conta das angústias de Olmsted e Vaux, supostos (e arrependidos) criadores do termo que designa nossa profissão; constam ainda cinco outras notas relacionadas com aspetos ambientais (Rio Paraíba luta para sair da UTI, Recorde de espécies ameaçadas e Árvore 1 x Poste 0) e informes técnicos de paisagismo (Monumento às vítimas do Holocausto e Tecnologia ajuda Paris a cadastrar seu patrimônio arbóreo), este último tema também enriquecendo a seção de artigos nos textos Reflexões sobre tetos-jardins, com observações e exemplos de jardins sobre lajes de diversos autores e Parque dos Enigmas: arqueologia do futuro, uma análise sobre projeto nada convencional de Márcia Moss, com paisagismo do próprio Eduardo Barra.
Completando a coletânea de textos técnicos, temos Pocket Parks: oásis urbanos, que inclui aspetos históricos e biográficos, além de Micropaisagismo: um quebra-cabeças a ser resolvido, em que o autor faz uma análise comparativa entre seu projeto de um pequeno jardim para o jornal O Globo e o Splice Garden, de Martha Schwartz. Esta personagem também está presente encabeçando a coletânea que, na taxonomia proposta no início desta resenha, incluí como biográfica, classificação que se justifica pela inclusão, em vários outros artigos, de nomes como Thomas Church, Garret Eckbo, Isamu Noguchi e, em Duas Mulheres, Gertrude Jekyll e Beatrix Farrand.
A história ainda se faz presente em três notas importantes: em Um século de arquitetura paisagística, Barra nos relata a evolução da profissão nos Estados Unidos, estabelecendo uma comparação nada lisonjeira, porém realista, com a atividade no Brasil. Em Martius não morreu, resgata (4), pelo menos em parte, o autor da monumental “Flora Brasiliensis”. E, finalmente, comove com seu testemunho sobre o saudoso botânico Luiz Emygdio de Mello Filho, registrando mais uma, entre suas inesquecíveis citações.
Três breves citações em Três toques, de Laurence Halprin, Yoshinobu Ashihara e Dan Kiley, respectivamente, e a transcrição de dois pequenos textos de Luigi Pirandello sobre árvores em ambientes urbanos e uma crítica à verticalização injustificada do Rio de Janeiro, segundo ele “quase uma ofensa à paisagem”, completam este alentado e diverso panorama do universo paisagístico.
De agradável leitura, com textos a um tempo concisos e abrangentes, o mérito maior de Paisagens úteis realiza-se ao proporcionar aquela visão geral indispensável à compreensão de uma atividade profissional ainda mal delineada no Brasil, ou, pior que isso, cada vez mais mal delineada e pouco compreendida entre nós.
notas
1
A frase correta, freqüentemente mencionada pelo paisagista é “Prefiro morrer a perder a curiosidade pela vida!”. Ver TABACOW, José. Roberto Burle Marx – arte & paisagem. São Paulo, Studio Nobel, 2004.
2
INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico da língua portuguesa. Instituto Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. 1 CD-ROM. Windows 98.
3
Jornal da Paisagem <www.jornaldapaisagem.unisul.br>, site criado e mantido durante sete anos por Eduardo Barra, posteriormente transferido para José Tabacow até a presente data.
4
Permito-me, neste caso, o uso do termo (que freqüentemente critico por considerá-lo , de acordo Houaiss, como libertar mediante o pagamento de quantia determinada), por admitir que Von Martius, o maior injustiçado da história do Brasil, foi seqüestrado por um inexplicável ostracismo. O preço a pagar, ou seja, o resgate, é a reabilitação de seu nome e de suas realizações.
sobre o autor
José Tabacow, arquiteto paisagista, professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina, atual editor do Jornal da Paisagem (http://www.jornaldapaisagem.unisul.br/) e Coordenador Editorial da revista ArKitéktón (http://www.arkitekton.unisul.br/), é especialista em Ecologia e Recursos Naturais pela UFES – Universidade Federal do Espírito Santo e doutor em Geografia pela UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro, na área de concentração de Geoprocessamento. É sócio-gerente de Tabacow Chamas & Associados, escritório de projetos de paisagismo e consultoria ambiental.