Viagem do Oriente é um livro plural, múltiplo, pois reúne textos e desenhos que condensam vários tempos e várias leituras. Há nesse livro uma sobreposição de paisagens, interpretações e registros, que se desdobram, e nos incluem como companheiros de viagem.
Viagem do Oriente é a edição do caderno de viagem do jovem desenhista Charles-Edouard Jeanneret, então com 23 anos, no percurso feito em 1911, de Dresden a Istambul, descendo o Danúbio, percorrendo os Bálcãs e voltando pelo norte da Grécia, Atenas, Delfos e, por fim, a Península Itálica. Foram mais de cinco meses de viagem, na companhia do amigo Auguste Klipstein, com os sentidos e os sentimentos inebriados de orientalidade mediterrânea.
Viagem do Oriente é o memorial de uma viagem iniciática: o jovem modernista, recém saído do universo racionalista do escritório de Peter Behrens, onde conviveu com Walter Gropius e Mies van der Rohe, parte ao encontro das arcaicas raízes da cultura européia. Há aí o desejo do reencontro com as origens, a idéia do retorno como ponto de partida para o futuro, e a reconstrução pessoal da história.
Mas Viagem do Oriente é também o livro revisado por Le Corbusier em 1965, ano de seu falecimento aos 77 anos, como um de seus últimos trabalhos. Sendo assim, é um diário de bordo, poético, do reencontro entre Le Corbusier e Charles-Edouard Jeanneret no labirinto memorial de lugares, cidades e arquiteturas.
As reflexões desse autor duplo, que é ao mesmo tempo outro e si mesmo, constroem um jogo infinito de espelhamentos de tempos, lugares, palavras e desenhos. Texto escrito por Charles-Edouard a Le Corbusier, avant la lettre, ou texto relido por Corbusier a Charles-Edouard?
Viagem do Oriente – e não ao Oriente, como seria de se esperar –, sugere, logo de início, um questionamento sobre quem é viajante e quem é o território da viagem. A dissolução desses limites propõe então uma trama relacional que funde autor e lugares em uma transformação mútua, uma reconstrução simultânea. Privilégio do leitor que se torna cúmplice do pensamento do artista, e interlocutor do diálogo entre o velho e o jovem arquiteto.
Aceito o convite, o livro se abre amadurecido para colhermos os comentários desse duplo Charles-Corbusier sobre o Ecletismo, sobre a cerâmica popular, as paisagens, as ruas, casas e pessoas. E a poética do homme de lettre vem à tona: “Para evocar é preciso ter dominado seu tema. Mas eu fui subjugado, esmagado. As impressões – confesso – foram enormes, inesperadas. Lentamente apossaram-se de mim.” (p. 40)
E é assim, tomado, que esse Marco Pólo moderno, nos fala de cidades visíveis e palpáveis como Esztergom, na Hungria, com sua igreja que é “... um cubo e uma cúpula apoiada sobre muitas colunas. De longe, é como a promessa de uma maravilha” (p. 43). Ou Tirnovo, na Bulgária, onde “as paredes eram brancas e às vezes azuis como o mais profundo do mar”. E então Istambul, e Atenas, pontos de inflexão no percurso do viajante.
Ao chegar a Istambul a consciência do duplo aflora no autor: “Sou eu quem sonha, ou meu narrador arrebatado por sua fantasia?” (p. 79). E desde então Istambul – cidade tripartida dos muitos nomes: Bizâncio, Nova Roma, Constantinopla – se instala como a cidade-tempo, a metrópole-necrópole, a civitas perpétua, a última caput mundi. Mesmo em Atenas, é Istambul que é recorrente à memória. Em Nápoles é novamente Istambul que aflora “... de um esquecimento prematuro” (p. 125). Impregnado das transparências e brilhos de Hagia Sophia o arquiteto segue encantado com os futuros lampejos de sua Notre Dame du Haut.
Muito mais do que um livro de um arquiteto sobre arquitetura, Viagem do Oriente é um livro emocionado sobre a arte, o fazer e aquilo que nos humaniza. É um livro sobre a cultura, sobre a civilização, e sobre a história. A viagem conduz o autor aos santuários da dúvida eterna, ao questionamento sobre o presente e o futuro: “Por que nosso progresso é feio?... Será que nunca mais teremos a Harmonia?... Tenho vinte anos e não posso responder...” (p. 208). Mas o desejo de encontrar essas respostas guiará sua vida.
Em Nápoles, redigindo as últimas linhas de seu caderno, o jovem Charles-Edouard revê “... as realidades de outrora e o mar mais além” (p. 208). Três anos mais tarde a Primeira Guerra Mundial encerraria tardiamente o séc. XIX, e lançaria a Corbusier o desafio do séc.XX. Cinqüenta e quatro anos depois. seria justamente nesse Mar Mediterrâneo, mais além, que o velho-jovem arquiteto daria seu último mergulho.
leia também "Sob a luz da Atica: Le Corbusier e o desvelamento da arquitetura", de Margareth da Silva Pereira, sobre o livro de Le Corbusier
sobre o autor
Artur Rozestraten é arquiteto e urbanista (FAUUSP, 1995); Doutorando no Depto de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAUUSP), bolsista da FAPESP, e professor no curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda, em Ribeirão Preto, SP.