Transparece das anotações da viagem de Charles-Édouard Jeanneret ao Oriente, a postura de peregrino que, na expectativa da revelação do sagrado, busca se encontrar. Emocionado retém suas impressões ao fotografar, desenhar e anotar.
Num fim de tarde, ao desembarcar no porto de Dafne, relata:
“Acreditei ter chegado a uma ilha de outrora onde cada vestígio ergue-se em evocação, com uma poesia feita apenas do culto das coisas findas. A hora não era apenas bucólica, mas cheia de silêncio e apaziguamento, e sobretudo sagrada”.
O jovem Charles-Édourd Jeanneret vislumbra o sagrado na “grande Harmonia”. Com “H” maiúsculo harmonia é a medida de uma ordem que concorda com a ordem do mundo, e tem como corolário a idéia de natureza:
“A beleza é feita de harmonia [...] sinto-me remexido em profundidade, percorrendo um país de sonho ao ritmo de scherzi subjugantes, inteiramente conquistado pela grande Harmonia [...] Um homem que procura a harmonia tem o sentido do sagrado”. Harmonia em acordo perfeito com a natureza e o universo [...] nos conduz a supor uma unidade de gestão no universo, admitir uma vontade única na origem [...] esse espírito de arquitetura que é uma exteriorização manifesta das leis da natureza”.
O texto é emblemático pois assinala o início e o fim de um percurso. Na primavera de 1965, decorridos 54 anos da viagem, Le Corbusier revisa o manuscrito com vistas à publicação. A retrospecção desta viagem iniciática aos 78 anos denuncia a importância decisiva que à ela atribuía na sua formação de artista e de arquiteto. Finda a tarefa, parte à Cap-Martin, seu último descanso. Morre em agosto de 1965 enquanto nadava nas águas do Mediterrâneo.
A viagem do Oriente, de fato, consolida convicções sedimentadas em seus anos de formação em La Chaux-le-Fond, motivado pelas idéias panteístas herdadas das leituras e do convívio com Charles L’Eplattenier, seu professor de desenho na Escola de Arte, de quem relembra os ensinamentos:
“Meu mestre me disse: apenas a natureza é inspiradora e verdadeira, e pode ser o suporte da obra humana [...] Se hoje cheguei na arquitetura, foi após ter passado pelas etapas da arte onde impera uma liberdade maior, onde o contacto com a natureza é direto, onde as emoções são mais imediatas”.
Sagrado, harmonia e natureza são termos homólogos que dão sustentação às anotações do inseparável carnê e posteriormente ao seu discurso doutrinário. Diante do caráter anônimo dos vilarejos rurais, das casas e instrumentos, manifestações sedimentadas na tradição, Le Corbusier indaga:
“Será que não precisarei, para dirigir essas forças simples e eternas, do trabalho de uma vida, sem sequer ter a certeza de chegar a uma proporção, a uma unidade, a uma clareza dignas de um pequeníssimo casebre de província, construído segundo as leis inestimáveis de uma tradição secular? [...] Considerada de certo ponto de vista, a arte popular sobrevive às mais altas civilizações. Continua sendo uma norma, espécie de medida cujo padrão é o homem de raça – o selvagem se você quiser”.
Nas formas populares Jeanneret distingue, além da economia e eficiência, a expressão de verdades espirituais decantadas na geometria, na axialidade e na alvura, recursos artísticos que traduzem leis da natureza, – a natura naturans – a natureza em sua essência:
“Uma geometria elementar disciplina as massas: o quadrado, o cubo, a esfera. Em planta, é um complexo retangular cujo eixo é único. A irradiação dos eixos de todas as mesquitas, em terras muçulmanas, em direção à pedra negra da Caaba é um grandioso símbolo da unidade da fé [...] O santuário branco eleva seus domos sobre grandes cubos de alvenaria, em sua cidade de pedra.
Acredito que a horizontalidade do sempre mesmo horizonte e, sobretudo em pleno meio-dia, a uniformidade imponente dos materiais percebidos instalam em cada um a medida mais humanamente perceptível do absoluto[...] o espírito de arquitetura que é uma exteriorização manifesta das leis da natureza”.
O Parthenon, ao lado das manifestações vernáculas, é a única expressão erudita que fascina o viajor. Descobre no templo, observa Turner, a expressão matemática e perene de princípios formais e, pela primeira vez, associa um edifício à máquina, metáfora que remete, conjuntamente com a precisão matemática e o rigor geométrico à austeridade e retidão moral:
‘As oito colunas obedecem a uma lei unânime [...] suprema matemática do templo [...] padrão sagrado, a base de toda a medida da arte.
O Parthenon, terrível máquina[...] o gigantesco prisma de mármore talhado até o alto com a retidão de uma matemática evidente e a nitidez que o mecânico confere ao trabalho”.
Além das manifestações visuais é atraído pela vida monacal; a disciplina, o silêncio e a solidão que exaltam a vida interior e regram o comportamento no monte Athos:
“O silêncio, a batalha interior, sobre-humana quase, para conseguir fechar sobre si mesmo, com um sorriso antigo, a pedra do túmulo!”
Ao projetar o convento de La Tourette reitera a convicção na via individual silenciosa e solitária rumo ao sagrado – herança do calvinismo protestante:
“O sagrado que é em cada ser, um grande vazio ilimitado onde se pode alojar ou não alojar sua própria noção do sagrado – individual –, totalmente individual”.
Os comentários de Turner sobre o Parthenon são pertinentes a todo o périplo: “O Parthenon representa um marco da juventude de Jeanneret. Pela primeira vez, ele parece ter adquirido pelos seus próprios meios a convicção que uma forma arquitetônica pode encarnar o Ideal divino, o Absoluto [...] mas toda sua formação o havia preparado para esta experiência” (1).
Brota daí sua hegeliana definição: “Arquitetura é pura criação do espírito”.
[resenha publicada originalmente no caderno “Pensar” do Correio Braziliense. Brasília, 16 jun. 2007]
notas1
TURNER, P. V. La formation de Le Corbusier, Mácula, Paris, 1987
sobre o autor Matheus Gorovitz (1938) graduou-se pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1965) onde concluiu o mestrado (1989) e doutorado (1996); estagiou como pós-doutor na Université de Paris I Sorbonne (2000); professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília onde ministra disciplinas de história da arte e estética nos cursos de graduação e pós graduação; autor de: Brasília, uma questão de escala e Os riscos do projeto.