Em um pequeno livro, com cuidadoso projeto gráfico de Flávia Castanheira, Paulo Mendes da Rocha nos apresenta seu entendimento sobre seu próprio processo de projeto. Por meio de suas “maquetes de papel” o arquiteto nos oferece uma perspectiva privilegiada sobre a consciência do arquiteto criador, em meio aos meandros e ambigüidades das idéias vigentes entre nós quanto à criação arquitetônica.
A aula de Paulo Mendes da Rocha começa, justamente, com uma reflexão sobre a concepção da arquitetura:
“A questão fundamental que navega entre nós arquitetos é imaginar as coisas que ainda não existem. Como esta casa, por exemplo, aqui em Curitiba, que antes saiu inteira na mente de um de nós, o arquiteto Vilanova Artigas”. (p. 19)
Haveria aqui apenas uma força de expressão ou uma afirmação conceitual? Será que o projeto de arquitetura chega a existir inteiro em nossa mente? E essa suposta existência precederia sua expressão material em desenhos e modelos? Ou não?
Mais à frente, Paulo sonda novamente esse terreno movediço referindo-se à modelagem:
“É a maquete como croquis... A maquete que você faz como um ensaio daquilo que está imaginando...Como o poeta quando rabisca, quando toma nota...A maquete aqui é um instrumento que faz parte do processo de trabalho; são pequenos modelos simples.” (p. 22)
Com essa afirmação, o arquiteto se alinha com a tradição de modelagem inaugurada por Brunelleschi, registrada por Alberti no seu De Re Aedificatoria (2), e revista no curso básico da Bauhaus.
Se a maquete é ensaio do que se está imaginando então, pode-se supor, que há um diálogo entre modelos e idéia que conduz – aproveitando a analogia com o poeta – ao poema completo, ou projeto acabado. Paulo deixa claro que está se referindo a um processo de trabalho, que avança gradativamente, valendo-se de representações materiais: os croquis e modelos do arquiteto, como as anotações do poeta.
“A graça disso...é que existe, nessa extensão do raciocínio, o objeto já um tanto quanto configurado na nossa mente.” (p. 22)
“Um tanto quanto configurado” é bem diferente de inteiro na mente. Entre a idéia, como coisa do pensamento, e as representações materiais, como coisa visível e tangível há uma interação – nas palavras do arquiteto uma “extensão” –, que caracteriza o processo de projeto como algo integral, uno, no qual pensamento e matéria dialogam. As maquetes físicas são modelos que proporcionam um “momento de experimentação” por meio do qual “é possível ver melhor aquilo que se está querendo fazer, e isso é insubstituível” e mais: “indispensável”. (p.26)
Nesse ponto o pensamento do arquiteto aproxima-se da teoria da Formatividade de Luigi Pareyson (1918-1991):
“o formar...no próprio curso da operação inventa o modus operandi, e define a regra da obra enquanto a realiza, e concebe executando, e projeta no próprio ato que realiza. Formar, portanto significa “fazer”, mas um fazer tal que, ao fazer, ao mesmo tempo inventa o modo de fazer.” (2)
E há algo encantador em torno dessa ação criativa e da concretização de idéias, nas palavras do arquiteto: “Nós estamos falando de algo muito particular, que é a materialidade da idéia...Portanto, para nós, arquitetos, ver e tocar já é materializar essas idéias no pequeno modelo.” (p. 27)
Valendo-se de outra analogia com o universo poético, Paulo designa o processo de projeto como construção. O que conforma uma imagem riquíssima, mas expressa de modo ambíguo: “a idéia de construir aquilo que você tem na mente é uma coisa sublime e particular do gênero humano.” (p. 28)
Construir aquilo que se tem na mente depois de construí-lo como projeto em representações materiais, ou construir aquilo que se tem na mente pois a idéia é o projeto acabado? E as ambigüidades continuam a aflorar:
“Você tem a idéia sobre certa questão, consegue imaginá-la em sua integridade e totalidade, entende que é preciso construí-la, então submete essa idéia ao modelo, à maquete, como extensão da própria mente”. (p.30)
Mais uma vez, no discurso do arquiteto, delineia-se o debate entre a idéia de que a imaginação resolveria o projeto de maneira integral e completa, e outra idéia de que o projeto é processo contínuo e integrado de imaginar e representar, pensar e experimentar, mentalizar e visualizar, sonhar e tocar.
No texto, esses aspectos são clareados conforme o arquiteto apresenta seu processo de trabalho a partir de exemplos reais.
No início do projeto “não existe maquete, não há nada ainda, é pura mente, como se eu fosse escritor, poeta! Não tem nada que ficar rabiscando, porque eu ainda não sei o que fazer.” (p.34)
É só após “saber o que fazer” que se inicia o processo de representações materiais: croquis e modelos tridimensionais. Esse saber inicial tem algo definido e algo intuído, a ser elaborado. É preciso organizar as “justas questões” para transformá-las em problemas e, então, resolvê-los. E essa elaboração mental antecede a materialização como uma imagem em pensamento:
“Tudo isso você tem que ver, senão não sabe que papelzinho cortar. Depois vai fazer o primeiro ensaio volumétrico, mas, antes de chegar à nossa maquetinha, tem que prever tudo isso.” (p.36)
A maquete é um momento posterior ao pré-dimensionamento, ou seja, há uma idéia de forma, com medidas básicas, proporções, espaçamentos que precede a materialização no modelo. E os modelos são ensaios, aproximações, essencialmente estruturais, portando simples, “maquetes de papel”.
Como no projeto para a praça do Patriarca: uma maquete de papel, feita em cinco minutos, para o diálogo consigo mesmo, “aquela pra ninguém ver, feita em solidão”. (p.45) Ou no projeto do reservatório de Urânia-SP: uma maquete de cartolina e papel sulfite com durex. Dessas maquetes, mostram-se apenas as fotos porque a imagem fotográfica, no entender do arquiteto, parece qualificá-las como algo mais do que apenas o “delírio de alguém que se pôs a cortar papel” (p. 46).
“A maquete, muito simples, está realizando uma coisa que você quer ver. O diâmetro certo, a altura certa, a escala humana. Você consegue ser esse personagem, ajoelha no chão para ver dentro da maquete, é muito bonito! Fecha a janela, espera de noite, tira o abajurzinho da mesa de luz e traz perto da maquete, vê os efeitos da luz... você vê o tamanho das coisas, a sua proporção, vê as transparências.” (p. 58-59)
Quem dera as reflexões dessa aula pudessem ecoar em todas as faculdades de arquitetura para que não olhássemos apenas os edifícios de Paulo Mendes da Rocha, mas também, e principalmente, seus procedimentos, seu fazer projetual. Pois ele não define um método restritivo, ao contrário, professa uma liberdade compositiva fundada na consciência ética da história, e na noção de modelagem investigativa como meio de diálogo entre pensamento e matéria. Paradoxalmente, o arquiteto nos apresenta, com mão generosa, seus modelos mais íntimos, seus “modelos de solidão”, seus interlocutores secretos que nunca teve a pretensão de mostrar a ninguém.
notas1
ALBERTI, L. B. De Re Aedificatoria; prólogo de Javier Rivera; tradução de Javier Fresnillo Núñez. Torrejón de Ardoz (Madrid) : Akal, 1991.
2
PAREYSON, L. Estética: Teoria da formatividade; tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 59.
leia também "Cinco minutos em um processo em solidão", de André Teruya Eichemberg sobre o livro de Paulo Mendes da Rocha
sobre o autor Artur Rozestraten é arquiteto e urbanista (FAUUSP, 1995); Doutor pelo Depto de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAUUSP, 2007); professor nos cursos de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Moura Lacerda e das Faculdades COC, em Ribeirão Preto, SP.