Em meio a um ambiente familiar freqüentado por intelectuais, arquitetos, pintores e historiadores, Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879) construiu sua formação profissional nas áreas da Arquitetura e do Desenho, onde seus estudos minuciosos e sua grande experiência em canteiros de obra lhe proporcionaram o domínio sobre as técnicas construtivas, os estilos arquitetônicos, e, principalmente, sobre a arquitetura da Idade Média.
No contexto cultural francês do início do século XIX, onde Quatremère de Quincy representava a figura da academia e dos ideais do classicismo, ressurgiram os interesses pela arquitetura medieval à medida que se identificou esse estilo como herança cultural do passado.
Viollet-le-Duc iniciou suas atividades como arquiteto nos anos de 1830 trabalhando no ateliê dos amigos Huvé e Leclère. Mais tarde, em 1836, participou das obras de restauração em Saint Chapelle, considerada pelo próprio Le-Duc como um laboratório experimental. A partir de então os trabalhos somaram-se a Igreja de Vézelay, de 1840, Notre-Dame de Paris, de 1844, Carcassone, de 1844, Saint-Sernin de Toulouse, de 1846, e Amiens, de 1849. Em 1853, Viollet-le-Duc foi nomeado Inspetor Geral dos Edifícios Diocesanos (1) ficando responsável pela tutela de várias igrejas em toda a França.
É neste contexto de atividades intensas que sua produção intelectual vai consolidando sua linha de ação e suas teorias sobre a restauração, confirmando, mais tarde, o que hoje conhecemos como “restauração estilística”, ou seja, um processo que, baseado na unidade formal e estilística das edificações buscava criar um modelo idealizado na “pureza” de seu estilo.
Suas maiores obras bibliográficas são o Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XI au XVI Siècle (2), publicado em dez volumes entre os anos de 1854 e 1868, e o Entretiens sur l’Architecture (3) escrito entre os anos de 1863 e 1872.
Viollet-le-duc concebeu um sistema teórico ideal entre os elementos da forma, estrutura e função, buscando a lógica do conjunto arquitetônico. Este sistema proporcionou a formação de um “tipo” característico que seria o “modelo” base para seus projetos de intervenção e restauração.
“Viollet-le-Duc [...] procurava entender a lógica da concepção do projeto [...] Não se contentava unicamente em fazer uma reconstituição hipotética do estado de origem, mas procurava fazer uma reconstituição daquilo que teria sido feito se, quando da construção, detivessem os conhecimentos e experiências de sua própria época, ou seja, uma reformulação ideal de um dado projeto” (4).
Desenvolvendo uma metodologia de trabalho onde, muitas vezes, o resultado final da intervenção proporcionava uma obra completamente diferente da original, Viollet-le-Duc acreditava que dominando o sistema construtivo da edificação e conhecendo profundamente seu estilo arquitetônico, conseguiria atingir plenamente os objetivos de um processo de restauração. Dizia que se as formas do passado fossem compreendidas em suas instâncias formais e espaciais, serviriam de base para esclarecer os problemas da arquitetura do presente.
Baseado em seu sistema de ação, Viollet-le-Duc formulou o seguinte postulado: “Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado que pode não ter existido nunca em um dado momento” (5). Este pensamento fundamentou sua prática profissional mais intensa e inspirou as ações de intervenção de muitos países europeus.
O programa de restauração seguido pela Comissão de Monumentos Históricos, no século XIX, admitia que os edifícios fossem restaurados no estilo original de sua aparência e estrutura. Neste contexto, a “Comissão” se dedicava, principalmente, às edificações em estilo Gótico que apresentavam a peculiaridade de levarem décadas para serem construídas. Em decorrência disso, tornava-se inevitável a utilização de mais de uma técnica construtiva (6) na mesma edificação, assim como, a realização de acréscimos e modificações parciais no projeto.
Portanto, a Comissão de Monumentos Históricos, assim como, Viollet-le-Duc, desenvolveram um método rigoroso de análise e classificação com a finalidade de estabelecer claramente a idade e as fases de construção das edificações. A aplicação desse método resultava um relatório respaldado por uma enorme quantidade de peças gráficas que tinham o objetivo de inventariar e documentar o patrimônio sujeito à intervenção.
Nota-se que o caráter profissional de Viollet-le-Duc sofreu a influência direta da maneira como a arquitetura Gótica era construída, onde as mudanças faziam parte da essência do monumento lhe conferindo características próprias de readaptação e reformulação.
A partir de sua experiência prática, Viollet-le-Duc propôs o seguinte questionamento: “Em se tratando de restaurar as partes primitivas e as partes modificadas, deve-se não levar em conta as últimas e restabelecer a unidade de estilo alterada, ou reproduzir exatamente o todo com as modificações posteriores?” (7).
Podemos exemplificar o pensamento leduciano no seguinte trecho: “Em um edifício do século XIII, cujo escoamento das águas se fazia por lacrimais, como na catedral de Chartres, por exemplo, achou-se que se deveria, para melhor regular esse escoamento, acrescentar, durante o século XV, gárgulas aos canais. Essas gárgulas estão em mau estado, é necessário substituí-las. Colocaremos em seu lugar, sob o pretexto de unidade, gárgulas do século XIII? Não; pois destruiríamos assim os traços de uma disposição primitiva interessante. Insistiremos, ao contrário, na restauração posterior, mantendo seu estilo” (8).
Ao dissertar sobre os casos usuais de restauração, Viollet-le-Duc mostra certo descontentamento em relação ao programa seguido pela “Comissão”, alertando que a reprodução em cópia fiel de todos os elementos da edificação se traduzia em um equívoco conceitual, pois por melhor que fosse o profissional de ofício de que o arquiteto dispusesse se correria o risco de produzir erros de interpretação. Da mesma forma, alertava para o perigo da substituição dos elementos primitivos por peças de formato posterior, o que causaria a elegibilidade do processo como um todo.
Viollet-le-Duc acreditava que o arquiteto encarregado de uma restauração, além de ser um construtor de prática reconhecida, deveria dominar todos os estilos e escolas dos diversos períodos da arte, como também, conhecer noções básicas de arqueologia. Assim, o arquiteto restaurador seria escrupuloso o bastante para diferenciar o antigo do novo, fazendo com que se sobressaísse os traços das modificações ao invés de dissimulá-los.
Vale lembrar que nessa época, cada província francesa apresentava uma escola própria com estilo característico de suas construções. Além disso, muitos desses prédios foram restaurados por artistas que não pertenciam à determinada escola local e não possuíam o conhecimento sobre as mesmas, gerando trabalhos inferiores e de baixo padrão.
Embora a França estivesse vivenciando as mudanças tecnológicas decorrentes da Revolução Industrial, o “savoir-faire” milenar ainda estava muito presente nos canteiros de obra permitindo a Viollet-le-Duc ter o domínio sobre a operacionalidade técnico-construtiva das edificações.
O pensamento leduciano defendia a idéia, de que todas as partes retiradas de um monumento, deveriam ser substituídas por equivalentes de melhor material e por meios mais eficazes. Afirmava que era de bom senso do arquiteto substituir as tesouras de madeira de uma cobertura, já degradada e infestada por insetos, por uma em ferro de igual desenho e proporção. Em um caso como este, ou na obrigação de instalar um novo equipamento não previsto no uso original, deveria se fazê-lo não tentando dissimular esse novo elemento, mas sim, utilizar a sua inserção como ênfase à nova fase do projeto.
Defendia a idéia de reutilização funcional das edificações, lhes atribuindo utilizações concretas enquanto arquiteturas, com o objetivo de torná-las úteis à sociedade. De certa forma, Viollet-le-Duc estabeleceu um novo entendimento de restauração que reflete, ainda hoje, nos pensamentos contemporâneos.
Sua atitude mais polêmica e duvidosa era quando se colocava no lugar do construtor original da edificação supondo o que o mesmo faria em caso de se defrontar com os problemas de restauração. De certa maneira, Viollet-le-Duc conduziu suas ações a luz da realidade construtiva Gótica entendendo como lícitas às modificações que propunha, pois esse tipo de intervenção não era contrária a própria historicidade do monumento. A aplicação desse método o levou, muitas vezes, ao campo da hipótese e da imaginação.
Sobre o seu discurso teórico e prático descreveu o seguinte trecho: “quando se trata de completar um edifício em parte arruinado; é necessário antes de começar, tudo buscar, tudo examinar, reunir os menores fragmentos, e somente iniciar a obra quando todos esses remanescentes tiverem encontrado sua destinação e seu lugar [...] Ao reerguer as construções novas, [o restaurador] deve, tanto quanto possível, recolocar os antigos fragmentos, mesmo que alterados: é uma garantia que oferece da sinceridade e da exatidão de suas pesquisas” (9).
Sua obra imprimiu uma forte marca pessoal deixando-nos uma herança de valor inestimável. Em contrapartida, torna-se interessante comparar sua produção bibliográfica (10) com o seu trabalho executado no Castelo de Pierrefonds (11), onde é possível notar um certo desencontro entre sua teoria e prática, tornando este um exemplo típico do que chamamos de “restauração estilística” em sua mais simples e pura essência.
Desta forma, Viollet-le-Duc, muitas vezes, deixou seu excelente conhecimento sobre a arquitetura criar cenários completamente irreais, modificando as edificações no estado em que as encontrava, e, especialmente, no caso das ruínas de Pierrefonds, para algo que poderia nunca ter existido, nem mesmo nas idéias do construtor original.
notas
1
Até o início do século XX, os órgãos encarregados em zelar pelo patrimônio histórico francês eram divididos entre o “Serviço dos Cultos”, responsável pelas edificações eclesiásticas, e a “Comissão dos Monumentos Históricos” que cuidava dos demais prédios de valor cultural.
2
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Dictionnaire Raisonné de l’Architecture Française du XI au XVI Siècle. Paris, A. Morel, 1866-1868. 10 V.
3
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Entretiens sur l’Architecture. Paris, Pierre Mardaga, 1977.
4
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Série Artes & Ofícios. São Paulo, Ateliê Editorial, 2000, p.18.
5
Idem, ibidem, p. 29.
6
O longo período de construção ocasionava variações dentro de um mesmo estilo arquitetônico em decorrência das diversas equipes de trabalho que participavam da obra. Essas variações podiam ser notadas em detalhes construtivos, como, por exemplo, no corte e na talha das pedras, e na confecção das esculturas.
7
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração (op. cit.), p. 48.
8
Idem, ibidem, p. 51.
9
Idem, ibidem, p. 69-71.
10
Especialmente o verbete “Restauração”, livro resenhado para o presente texto.
11
O Castelo de Pierrefonds foi construído em 1396, pelo Duque de Orleans, irmão do Rei Carlos VI, como fortificação militar. A edificação tem o formato quadrilátero irregular com oito torreões, cada um sustentando um nicho com uma estátua de uma brava figura histórica. No ano de 1617, o Rei Luís XIII resolveu desmantelá-lo ocasionando a ruína de algumas partes do castelo a ponto de ficar conhecido na época como “ruínas pitorescas”, servindo de visitas românticas aos bosques de Valois. Em 1857, Napoleão III decidiu restaurar o Castelo de Pierrefonds, encarregando Viollet-le-Duc desta tarefa. O arquiteto francês trabalhou no projeto intensa e cientificamente. Fez o levantamento das ruínas e através das informações obtidas conseguiu reconstituir a planta do edifício original, assim como as oito estátuas em cada um dos torreões. Em 1863, Napoleão queria que o castelo fosse habitável e Viollet-le-Duc teve que adaptar o edifício às novas exigências, modificando o interior, projetando salas novas com influências românticas e aumentando um andar em dois torreões da entrada em estilo medieval. A obra foi concluída no ano de 1885, após o falecimento de Viollet-le-Duc.
[texto originalmente publicado em: DIAS DE OLIVEIRA, Rogério Pinto. Conservação, restauração e intervenção em arquiteturas patrimoniais. Monografia de especialização em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil. Porto Alegre, Faculdade de Arquitetura da Pontifícia Universidade Católica – PUC-RS, 2007, p. 17-23]
sobre o autor
Rogério Pinto Dias de Oliveira é graduado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (2001) e especialização em Arquitetura e Patrimônio Arquitetônico no Brasil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2006). Atualmente é aluno do Mestrado em História, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e trabalha como arquiteto na Secretaria do Patrimônio Histórico da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenando a série de publicações intitulada “Manuais do Patrimônio Histórico Edificado da UFRGS”