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ANDRÉS, Roberto. Outras arquiteturas possíveis. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 088.04, Vitruvius, abr. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.088/3041>.


1º Ato

Espaços colaterais reúne práticas “arquitetônicas” realizadas em Minas Gerais na última década, todas à margem da correnteza dominante da produção formal de edifícios. O livro é parte de um projeto que envolveu a organização de seminário público, a realização de exposição em locais populares de Belo Horizonte e a edição e distribuição de jornais e postais informativos. Se, nestes eventos, voltou-se para o público local, enfaticamente buscando uma aproximação com as camadas populares, o lançamento do livro vem ampliar o campo de discussão do projeto, permitindo aos arquitetos, professores e estudantes de todo o país conhecerem um pouco das experiências (algumas bastante significativas) que o livro traz.

Estas experiências, ‘arquitetônicas’ entre aspas, já que apontam para uma ampliação do seu senso comum, vão além do que se ensina nas escolas e do que se faz na vasta maioria dos escritórios de arquitetura. Ações artísticas e proposições de uso para espaços residuais, como lotes vagos, palafitas abandonadas, estacionamentos e baixios de viadutos; interferências arquitetônicas em favelas; design de mobiliário sem desenho e a partir de objetos existentes; desenvolvimento de metodologias de projetos participativos; proposições de operações de qualificação urbana, são, todos eles, experimentos arquitetônicos, no sentido de que alteram o espaço da vida humana na cultura.

Ao conhecer cada uma das práticas, ao leitor se evidencia o quão restrita é a profissão oficial de arquiteto. Este leitor, perplexo com a obviedade dos trabalhos, se pergunta: se há lotes vagos, estacionamentos vazios à noite e baixios de viadutos ermos, por que não ocupá-los? Se há palafitas abandonadas, por que não fazer delas teatros (e também residências, galerias, restaurantes)? Se há tantas pessoas que querem construir seus lugares no mundo, por que atuar somente para um grupo restrito? Se habitamos cidades cheias de contradições e potencialidades, não é fundamental abordá-las teórica e praticamente? Por que a atuação do arquiteto ficou restrita ao desenho de edifícios para um grupo pequeno, se a construção do ‘ambiente cultural’ que habitamos é determinado por várias outras ações?

Este leitor questionador enxergará os Espaços colaterais como atuações ao mesmo tempo óbvias e inusitadas. Óbvias por sua simplicidade e efetividade, e inusitadas pela ampliação radical do campo de ação do arquiteto. Pois há muito tempo a profissão oficial do arquiteto elimina diversas atuações possíveis para se focar no desenho de edifícios. No melhor dos casos (residências e edifícios institucionais) os arquitetos são “resolvedores de problemas autorais, respondendo passivamente a programas políticos econômicos e domésticos alheios”. Já na construção mainstream, resta aos arquitetos a escolha de tamanhos e cores das cerâmicas, o desenho de varandas curvas, retas ou diagonais, e, principalmente, a produção da documentação necessária para os procedimentos legais. Este arquiteto-despachante, assim nomeado por Frederico Mourão, possui pouquíssima influência no processo de transformação do ambiente humano. As cidades se fazem e se desfazem pela ação de diversos atores (construtoras, políticos, empreendedores, tecnocratas) e aqueles que poderiam estar mais aptos para atuar nesta transformação assumem o papel passivo de ‘resolvedores de problemas’/despachantes.

Para interferir na construção do ambiente em que vivemos, para alterar sua ‘arquitetura’, é preciso ir muito além do lugar pouco imaginativo ao qual se limitou a profissão. As práticas presentes em Espaços Colaterais apontam, de maneiras variadas, para este horizonte de possibilidades.

2º Ato

Não seria difícil, entretanto, criticar cada um dos trabalhos apresentados e expor seus limites: as ações artísticas, embora potentes, não conseguem se estender em ocupações que alterem a cidade por um tempo maior; as proposições urbanas raramente saem do papel; as interferências arquitetônicas são pontuais e ínfimas em relação ao enorme contingente de trabalho a ser feito nas periferias brasileiras; as metodologias pesquisadas carecem de mais aplicação para desenvolvimento; etc. Fácil seria explorar estas limitações e utilizá-las em discursos reacionários pela manutenção do status quo construtivo, alegando ineficácia das ações alternativas.

Tal postura seria, sem dúvida, capciosa. Pois os limites se devem muito mais ao caráter incipiente e original das práticas do que à impossibilidade de ações alternativas ou à falta de competência dos autores. Fato é que, mais do que cair no pêndulo fácil da polarização extremada entre tradicional e alternativo, eficiente e ineficiente, devemos olhar estes espaços colaterais como experimentos radicais, e procurar em suas falhas os mecanismos sutis de produção do ambiente. Pois, se cada um deles propõe a construção de “outras arquiteturas possíveis”, o entendimento de suas limitações revela as especificidades deste processo. Se lermos estes espaços colaterais buscando com lente ampliada os acertos e erros, poderemos vislumbrar mais claramente os campos de ação possíveis, as margens de êxito e as dificuldades operacionais para atuações efetivas na produção do espaço.

Por isto o livro é leitura obrigatória para aqueles que almejam interferir concretamente nas cidades. Pois há muito trabalho a ser feito de ampliação e fortalecimento de ações pontuais propositivas e de entendimento por parte dos arquitetos dos processos de produção de espaços. Os Espaços colaterais oferecem um substrato experimental riquíssimo para este entendimento.

reAto

Na introdução do livro, Wellington Cançado afirma que “a arquitetura se tornou uma prática essencialmente reativa e o arquiteto um reacionário profissional”, denunciando aquela postura passiva que também tratamos aqui. No entanto, sugerir que as práticas presentes no livro são menos reativas que aquelas, por não operarem pela demanda de terceiros, pode ser um entendimento reduzido da questão: todas elas são reações a uma dada situação concreta. A ocupação dos lotes é uma reação aos lotes vagos, e assim por diante. Neste momento, percebemos que contrapor ação e reação só nos levaria a uma filosofia do tipo ovo x galinha (acionista x reacionário), que, certamente, carece de interesse.

No entanto, tal discussão nos sugere que, indiferente de serem ativos ou reativos, os espaços colaterais podem ser vistos como re-atos: reatam a atuação imaginativa dos arquitetos e a produção concreta dos espaços que habitamos. Estabelecem, entre as pessoas interessadas na transformação do ambiente humano e os seus processos de produção, uma conexão ativa. De uma maneira mais ampla, a grande maioria das práticas colaterais reatam arquitetos e a própria realidade concreta, superando a posição politicamente passiva e cientificamente objetiva dos herdeiros do modernismo. Vislumbra-se aqui a inserção, na prática, de uma postura filosófica tão debatida no século que passou: não mais o arquiteto distanciado do mundo pela representação visual, interessado no universo das formas como idéias aplicadas, mas o arquiteto imerso na realidade concreta e interessado em transformá-la a partir do entendimento de seus mecanismos intrínsecos.

Não mais a objetividade do espírito transcendental, mas a intersubjetividade do ser imerso na realidade concreta, para falarmos com Flusser. Este reato entre arquitetos e mundo concreto daria a esta resenha um desfecho inesperadamente otimista, não fosse a impressão de que estes espaços estão se tornando cada vez mais colaterais.

sobre o autor

Roberto Andrés, arquiteto e mestre pela UFMG, tem publicado artigos sobre arte e arquitetura em periódicos como as revistas A-desk e Musiques et Cultures Digitales, o Portal Vitruvius e o Jornal Hoje em Dia

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