Imagine as estórias que um arquiteto que conviveu 30 anos com Le Corbusier, como seu assistente direto, tem para contar.
Pois são mesmo estórias fascinantes que André Wogenscky (1916-2004) nos conta em seu livro “Mãos de Le Corbusier”, traduzido por Vera Ribeiro e reeditado, sem alarde, pela Martins Fontes.
As memórias de André, publicadas pela primeira vez há 10 anos, formam um texto leve, encadeado em fragmentos curtos, em tom entre o prosaico e o poético. É um livro compacto e denso.
Da primeira visita ao escritório na rua Sèvres aos vários momentos de convivência muito próxima, André compartilha conosco suas memórias e nos aproxima de Le Corbusier em sua humanidade cotidiana, complexa e contraditória.
O título faz pensar em Focillon e seu “Elogio à mão”, e de fato, tomando a parte pelo todo, as mãos de Corbusier são uma espécie de escultura-viva, criaturas, que acionam as lembranças e as trazem à luz.
E assim, a memória de André constrói cenas da vida deste arquiteto singular. Certas passagens são tão visualmente sugestivas que poderíamos chamá-las de cinematográficas, como as que se referem às visitas ao canteiro de obras da Unidade de Habitação de Marselha. Primeiro Pablo Picasso, depois Auguste Perret, depois a própria mãe do arquiteto. Ou o almoço em que o padre Couturier conseguiu, finalmente, convencer o resistente Corbu a aceitar o convite para projetar a capela de Ronchamp.
É encantador acompanhar as relexões de André sobre a fala e o comportamento de Corbusier: suas oscilações, suas fragilidades, suas convicções, seus exageros, sua força e confiança.
Cada página é como um outro dia, em que voltamos ao escritório do arquiteto ou visitamos um canteiro de obras e presenciamos novos comentários, a narrativa de outro episódio, uma reflexão ou um poema.
Percebemos na persistência do homem, na rotina do arquiteto, a grandeza do artista. Reconhecemos no traço do gravador, a intenção escultórica do arquiteto. E no desenho do arquiteto, o traço do pintor, que comentou, certa vez – revelando sua rara admiração –, que Picasso pintava melhor do que ele.
E permeando tudo, a arquitetura, o projeto e a atividade artística. Nestes momentos, em silêncio, ouvimos atentos as considerações de André sobre a maneira como Corbusier pensava o espaço, sua concepção do “espaço indizível”, ou seu desejo, pouco conhecido, de trabalhar com estruturas em aço. Seu gosto pela madeira, seu sonho de uma “grade de proporções” a orientar os trabalhos nos canteiros, seu entendimento tátil das formas arquitetônicas.
Exposto em sua singeleza humana Le Corbusier não se apequena, ao contrário, adquire a estatura do grande artista que foi, e não nos surpreenderíamos, como sugere André, se ele medisse 5 ou 6 metros de altura.
sobre o autor
Artur Rozestraten é arquiteto e urbanista (FAUUSP, 1995); Doutor pelo Depto. de História da Arquitetura e Estética do Projeto (FAUUSP, 2007); Professor junto ao Depto. de Tecnologia da FAUUSP (2008), São Paulo-SP