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WISNIK, Guilherme. A ruína e o jardim. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 092.01, Vitruvius, ago. 2009 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.092/3028>.


Difícil caracterizar o momento histórico em que vivemos, com seu cenário estético marcado por uma ampla estabilização de linguagem, por um lado, ao mesmo tempo que por uma inegável e profunda mudança de paradigmas, por outro. Uma boa maneira de reagir a essa dificuldade é deixar-se afetar por tal dubiedade, e procurar dar voz – de modo agudo, esclarecido e aberto – a ela. É o que fizeram os alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro que compõem o corpo editorial da revista Noz em seu terceiro número (2009).

Cauteloso e calculado, o número apresenta artigos que abordam naturezas e escalas divergentes: o artefato e a paisagem. Isto é, o objeto de design (com enfoque no detalhamento, no princípio de produção serial, no módulo e no desenho aerodinâmico) e a paisagem (o território natural e construído, o ambiente, o entorno). Quer dizer, o que se mostra é tudo aquilo que envolve o edifício, para além e aquém dele. E o que desaparece, sintomaticamente, é a própria “arquitetura” em seu sentido mais tradicional.

Daí que transpareça, na revista, algo do clima antiarquitetônico dos anos 60 e 70, inspirado na “arquitetura sem arquitetos” de Bernard Rudofsky ou na “anarquitetura” de Gordon Matta-Clark. É o que entrevemos, por exemplo, no delicioso “texto-ninja” do poeta Paulo Leminski, que abre o número, contendo instruções para a construção de uma ruína. Declarando-se um “anarquiteto” de “desengenharias”, Leminski flagra a vocação catastrófica de toda forma construída, desvelando a antiordem, ou a desordem recalcada sob a ilusão de ordem e verdade que subjaz a todo o projeto iluminista-arquitetônico. Mas quem fala em iluminismo sou eu, tentando explicá-lo, e não ele. O seu texto é poético, e não conceitual. E em seu encadeamento poético subjaz, na verdade, mais uma leitura do Brasil do que uma contraposição ontológica ao “ser” da arquitetura, já que a sua obsessão pela ruína espelha a realidade de um “país onde os projetos já nascem mortos” (reflexão, aliás, semelhante àquela proposta por Claude Lévi-Strauss em Tristes trópicos, em 1955). Assim, “só construindo suas próprias ruínas, lúcida e conscientemente”, diz Leminski, é que “o Brasil poderá readquirir o prestígio arquitetônico que teve nos tempos de JK, aquela ruína do sonho de um país em desenvolvimento”.

A atual mudança de paradigmas a que me referi inicialmente se dá, entre outras coisas, no contexto do envelhecimento das discussões em torno do pós-modernismo, ao impacto transformador da globalização (econômica e informacional), ao cenário de desindustrialização e as conseqüentes transformações nas relações de trabalho, e à emergência da sustentabilidade como tema central, acarretando uma maior consciência sobre a hibridização entre o natural e o construído, como aponta o antropólogo francês Bruno Latour. É em meio a esse quadro que a arquitetura passa a flertar com as formas orgânicas e biomórficas, que o “espaço liso” e o “rizoma” de Gilles Deleuze passam a ser categorias operativas, e um termo como “arquitetura-diagrama” (usado por Toyo Ito para descrever a produção de Kazuyo Sejima) se prolifera como uma bactéria em um meio sem resistência. A título de exemplo, as duas maiores exposições sobre design e arquitetura no MoMA de Nova York nos últimos dois anos (Design and the elastic mind, 2008, e In situ: architecture and landscape, 2009), atacam exatamente esse ponto meio nublado, onde artefato e natureza, eletrônica e inputs cerebrais, ou construção e paisagem, se fundem para formar uma nova ordem, paradoxalmente mais indefinida e unitária, próxima e esquiva, e certamente menos racional que intuitiva.

Boa parte da discussão contemporânea sobre o novo papel da paisagem na arquitetura vem do mundo ibérico, e aparece na revista nos ótimos textos de Ábalos & Herreros, Josep Maria Montaner e Jacobo García-Germán, assim como no projeto do Parque Metropolitano da Água, em Zaragoza, feito para a Expo-2008. Nota-se aí uma feliz convergência de questões, que atravessa a interessante releitura das obras de Robert Smithson e suas inúmeras e particularíssimas visões da paisagem, e converge para um pequeno manifesto “Por uma nova naturalidade”, em que o arquiteto Iñaki Ábalos condensa boa parte dos argumentos presentes em seu Atlas pintoresco (2005-2008, 2 vol.). Argumentos guiados pela análise da subterrânea sobrevivência do pitoresquismo por dentro da modernidade, razão de seu atual revigoramento em tempos de ecologia e sustentabilidade. Assim, tratando da dissolução da antítese entre o natural e o artificial, bem como dos limites disciplinares entre arte, arquitetura e paisagismo, Ábalos convoca os arquitetos a imaginar a nova arquitetura-paisagem na forma híbrida e integradora de um “jardim latente”. Pode ser útil, como índice de mudança temporal, compararmos essa imagem metafórica àquela outra proposta por Siegfried Giedion durante o “alto modernismo”, que conclamava os arquitetos à tarefa de conceber a grande “abóboda do nosso tempo”.

Por fim, tais reflexões casam muito bem como as fotos de Luiza Baldan, mostrando interiores arruinados e entrópicos, vazios ou tomados por objetos amontoados e empilhados. “Paisagens” interiores dotadas, no entanto, de uma indeterminação ativa e agressiva, um pouco como aquelas do Hotel Palenque fotografado por Smithson em 1969. Hotel que, por toda a sua precariedade e improvisação pragmática e criativa, podia ser considerado, segundo o artista, tão ou mais genuíno do que as próprias ruínas maias que dão nome ao sítio e, evidentemente, ao próprio hotel.

sobre o autor Guilherme Wisnik é arquiteto e ensaísta. Publicou os livros Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), Caetano Veloso (Publifolha, 2005) e Estado Crítico (Publifolha, 2009). Foi colunista do caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo entre 2006 e 2007

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