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BARTALINI, Vladimir. A herança de uma modernidade. Resenhas Online, São Paulo, ano 09, n. 097.01, Vitruvius, jan. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.097/3756>.


Residência Francisco Pignatari, São Paulo, 1954-1956. Desenho que ilustra a proposta final de Burle Marx, de 1956, parcialmente plantada [Modernidade verde, p. 196]

Passados quinze anos da morte de Roberto Burle Marx e cem anos do seu nascimento, entre as homenagens que a data propicia, vem a público Modernidade verde: jardins de Burle Marx, de Guilherme Mazza Dourado. Não que a feitura do livro tivesse este objetivo, mas o seu lançamento, neste momento, é muito oportuno. Na verdade ele provém da dissertação de mestrado, apresentada pelo autor em 2000, com tratamento tão cuidado de texto e de imagens que já fazia supor o futuro livro. De fato, logo em seguida começaram os trâmites para a publicação. Os nove anos transcorridos dão a medida dos entraves do meio editorial no Brasil, mesmo quando se lida com um assunto e com a obra de um paisagista cujo interesse está longe de ser esgotado, e ainda que se alegue a imensa desproporção entre as publicações sobre Burle Marx e aquelas dedicadas a outros paisagistas brasileiros.Vale lembrar que durante muito tempo, mais precisamente por vinte anos, The tropical gardens of Burle Marx, de Pietro Maria Bardi, com excelentes fotografias de Marcel Gautherot (Colibris Editora Ltda., Amsterdam – Rio de Janeiro, 1964), era tudo com que as bibliotecas especializadas no Brasil podiam contar sobre o conjunto da obra do artista, além do texto escrito em inglês, alemão e italiano, sem uma única linha em português (diante disto, ressalta o mérito da Publicação no 1 do Museu da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, de 1971, uma brochura dedicada a Burle Marx, com dois textos de sua autoria, e uma bibliografia dominada por artigos em revistas de arquitetura e em jornais). Só em 1984 a Nobel lançou o estudo de Flávio Motta (com fotografias do mesmo Gautherot) intitulado Roberto Burle Marx e a nova visão da paisagem, ensaio que apontava para as possibilidades de emancipação da natureza explorada da ex-colônia tropical, em direção a uma paisagem urbana humanizada, presentes na obra do paisagista. A partir de então, a intervalos bem menores, outras publicações em português se sucederam, seja na forma de compilação de textos seus (Roberto Burle Marx. Arte e paisagem, organização de José Tabacow, Nobel, 1987, com segunda edição pela Studio Nobel, em 2004), biografia ilustrada (Roberto Burle Marx, um retrato, por Laurence Fleming, Editora Índex, 1996) ou organização de textos sobre Burle Marx (Nos jardins de Burle Marx, por Jacques Leenhardt, tradução de Pérola de Carvalho, Perspectiva, 1996). Além destas, já se pode contar hoje com várias publicações integralmente dedicadas a Burle Marx, ou que lhe reservam um capítulo especial, editadas no exterior.Todas fazem referência, com acentos variados, aos múltiplos dons e interesses de Burle Marx: paisagismo, pintura, tapeçaria, joalheria, música, botânica, culinária. Difícil mesmo não relacioná-los; os procedimentos analíticos geralmente não dão conta do fazer artístico, menos ainda no caso de um artista que se manifestava (e com que propriedade!) mediante recursos tão diversos.Guilherme Mazza Dourado, em Modernidade verde, não deixa de se referir às viagens botânicas empreendidas por Burle Marx (com a transcrição de excertos de suas observações, onde se fundem curiosidade científica e fruição estética), nem aos seus desenhos e pinturas, mas não cede à facilidade das transposições imediatas. Se as formações naturais impressionaram fortemente o excursionista, ele as artializava (para usar a palavra que Alain Roger toma emprestado de Charles Lalo o qual, por sua vez, encontrou-a em Montaigne) em seus jardins de modo a não diluí-los na natureza. Do mesmo modo, as cores e as formas que povoam suas pinturas e jardins e certas técnicas e estratégias comuns de sua utilização, não autorizam inferir uma comunicação direta entre os dois meios de expressão. De fato, entre os anos 1930 e 1950, informa o autor, “quando Burle Marx passava a selecionar um repertório vegetal de cores intensas e brilhantes, experimentando harmonias cada vez mais contrastantes no paisagismo, sua pintura transitava nas cores e matizes rebaixados, no jogo sutil de associações cromáticas que se libertava paulatinamente da representação realista”.Arquiteto de formação, o autor, diante dos múltiplos interesses e da vasta produção de Burle Marx, se concentra no paisagismo in situ, nos jardins realizados no Brasil, dos anos 1930 aos meados da década de 1960, espaço e tempo em que sua linguagem se desenvolveu e ganhou expressão máxima, tecendo a flora e a luz tropicais, as formas e as cores em diálogo com os movimentos estéticos que lhe eram contemporâneos. Sua obra paisagística, caracteristicamente brasileira e ao mesmo tempo universal, alcançou então reconhecimento amplo, dentro e fora do país.É comum tratar personagens da estatura de Burle Marx como gênios auto engendrados, nascidos do nada. Não é este o caso de Modernidade verde. Mazza Dourado situa Burle Marx no seu tempo, imerso numa “brasilidade” em gestação tanto nas artes plásticas, na arquitetura, na música, na literatura, na poesia e também no paisagismo, pelas experiências de Flávio de Carvalho e Mina Klabin Warchavchik.Na primeira parte do livro, intitulada "Descoberta da natureza", o autor recua mesmo ao século 19 para dar os créditos ao naturalista alemão Ludwig Riedel pela divulgação de plantas ornamentais nativas e sua utilização em espaços públicos no Rio de Janeiro, e ao botânico e paisagista francês Auguste Glaziou, que também as empregou no período em que foi responsável pelos espaços ajardinados da capital do império e, depois, da república. Ambos permaneceram no Brasil em torno de quatro décadas transcorridas sucessivamente – o primeiro, de 1820 a 1861, o segundo de 1858 a 1897 – , tempo suficiente para semear e cultivar idéias que, se não chegaram a ser então hegemônicas, nutriram nosso modernismo. Não custa lembrar que, quando Burle Marx nasceu, fazia apenas doze anos que Glaziou deixara o Brasil. Pode-se dizer que respiraram o mesmo ar.Na segunda parte, "Estética tropical", são apontadas marcas históricas das sintaxes jardinísticas, cuja contribuição está, em diferentes medidas, presente e reconhecível em Burle Marx: os canteiros clássicos que culminaram nas ricas texturas, desenhos e cores dos parterres franceses do século 17, a absorção das formas da paisagem pelos ingleses no 18, a valorização do informal por William Robinson e o colorismo de Gerturd Jekyll durante a segunda metade do 19 e começo do 20. Ainda que por meio de pinceladas rápidas, estas remissões de Mazza Dourado ajudam a contextualizar de um modo mais abrangente o fenômeno Burle Marx.O leitor é assim preparado para apreciar e aproveitar melhor os projetos da fase mineira e os das serras fluminenses que compõem este capítulo. Trata-se de jardins particulares, residenciais ou não, que se tornaram antológicos pelas relações estabelecidas entre jardim e paisagem, pelos ensaios bem sucedidos com formas, texturas e cores, pela pesquisa e princípios que embasaram a escolha da vegetação.A informação não chega apenas pelos registros fotográficos – alguns, emprestados de acervos, são da época da execução dos projetos, outros foram tomados em anos mais recentes –, mas é enriquecida por desenhos técnicos ou de apresentação, com a relação dos vegetais empregados e, sobretudo, pelas descrições de Mazza Dourado. Não é coisa comum. No geral, tudo se resume em capturar o olhar, objetivo facilitado pela própria qualidade dos jardins e das fotografias e em apontar as espécies vegetais que ali comparecem, ou a comentários que se aplicam ao conjunto da obra do paisagista. O autor, ao contrário, se detém nos casos, relata as condições que envolveram os projetos e dá sentido à listagem vegetal ao referir-se ao papel que cada planta ou grupo de plantas desempenha no espaço idealizado por Burle Marx. Esta estratégia de conduzir pela palavra, e não só pela visão, é decisiva no momento de abordar os projetos de paisagismo do Grande Hotel e do Golfe Clube da Pampulha, não executados. Com base nas informações dos desenhos técnicos do acervo Burle Marx & Companhia, Mazza Dourado literalmente percorre os jardins inexistentes, proporcionando-nos uma experiência singular.Ainda nesta seção do livro é exposta a polêmica instaurada no meio arquitetônico internacional, nos anos 1940 e 1950, entre racionalistas e organicistas. A menção só ganhará pleno sentido no capítulo seguinte, Criando lugares, no concernente aos projetos de espaços públicos de uso comum ou associados a empreendimentos estatais. De um lado, os defensores de uma linguagem universal, asséptica, apoiada na máquina e nas conquistas da técnica, de outro, os que faziam valer os contextos específicos e atentavam para as formas e funcionamento dos organismos.Sabe-se dos efeitos, benéficos até, deste embate na arquitetura brasileira, mas seu rebatimento no paisagismo é pouco comentado. No entanto, ao discorrerem sobre o tratamento que convinha a um jardim público e a um privado, vários tratadistas do século 18 explicitavam as oposições formais, tidas como necessárias, entre um e outro. Não se pretende aqui levar a comparação ao pé da letra, mesmo porque o que alimentava as posições favoráveis à clareza absoluta, ao formalismo, à geometria e à simetria nos jardins públicos, naquela época, não eram propriamente, ou tão somente, as expectativas de superação do atraso e da ignorância e de conquista da liberdade depositadas no avanço da ciência e das técnicas, mas antes a busca da ordem, mediante o efeito disciplinador da geometria, além dos preconceitos, com doses de paternalismo, no jeito de lidar com o grande público. Deste modo, aos jardins das cidades “convêm a simplicidade e a simetria”, dizia Watelet, e mesmo Hirschfeld, que admitia a variedade e a irregularidade em algumas partes dos jardins públicos de uma certa dimensão, considerava que “as custosas obras de arte, as decorações elegantes e as plantas raras que exigem cuidados não convêm a este tipo de jardim”, acrescentando que, “todavia, é possível neles dispor obras aptas a produzir impressões úteis sobre a multidão”. A diversidade requintada de ambientes, a sutileza, a arte, a poesia, eram reservadas aos proprietários dos grandes jardins privados e aos seus convivas.A superação desta dicotomia é o que mais chama a atenção nos projetos de espaços públicos, do Recife ao Rio de Janeiro, compilados na última seção do livro. Neles, independentemente das formas provirem de máquinas ou de organismos, e mais do que a associação magistral entre jardim, arte e arquitetura, desponta o princípio de dedicar ao que é público o mesmo entusiasmo, sensibilidade e refinamento dispensados aos jardins privados, tudo isto em plena vigência das idéias modernistas.O apreço ao espaço público está longe de ser estranho à cidade do modernismo, como não o foi para a cidade tradicional. Disto sobram provas nas declarações, nas Cartas e também nas realizações que muitas cidades, algumas das nossas inclusive, ostentam. O surpreendente é esta atenção voltada aos jardins públicos, que a cidade oitocentista conheceu, mas que o modernismo renegou.Nisto pode estar uma chave de interpretação do próprio título do livro: Modernidade verde: jardins de Burle Marx. A modernidade vem ali qualificada; trata-se de uma certa modernidade. Mas o verde ainda não é distintivo suficiente, pois foi cor que não faltou nem no papel, nem efetivamente, nas proposições e realizações modernas, em todos os lugares. Os jardins, ao contrário, foram banidos. Jean-Pierre Le Dantec aponta algumas das razões: a suposta incompatibilidade entre o mundo industrial, democrático e urbano e a tradição rural e aristocrática à qual a arte dos jardins esteve comumente associada; a estandardização, a internacionalização, a velocidade, enfim, o modo de vida característicos da era industrial versus a singularidade do sítio, a duração do tempo, os cuidados constantes incorporados nos jardins. Além disso, para atender às questões de salubridade e do lazer de massa, tratadas em termos de “necessidades” da sociedade urbano-industrial, as áreas ou espaços verdes, em suma, o verde genérico, era o que bastava.Os jardins de Burle Marx inscrevem-se em outra agenda, criando lugares (e lugares democráticos), não simplesmente áreas verdes. Estudioso e defensor da ecologia das paisagens, militante de políticas abrangentes de preservação dos nossos recursos paisagísticos, Burle Marx não descurou da arte e das minúcias que os lugares requerem.O assunto tem relevância atual, o que justifica, afora as homenagens devidas ao centenário do paisagista e as qualidades intrínsecas do livro de Mazza Dourado, mais esta publicação sobre Burle Marx. Quando se faz a crítica à espetaculosidade, ao desperdício, ao supérfluo, é tentador colocar os jardins no mesmo balaio das excentricidades que só consomem recursos materiais e humanos e não dão nada em troca. As consciências mais preocupadas com nosso futuro comum, e não tanto com as chamadas “necessidades do espírito”, se apegarão à causa ambientalista. Outros, que ainda vêem algum sentido no paisagismo, mas não se sentem à vontade para associá-lo à arte, apõe-lhe o epíteto “útil” e medem seu valor pelos serviços prestados, enquanto outros encontram uma saída nas vantagens ao mesmo tempo ecológicas e econômicas do “jardim selvagem” (wild garden), nele presumidos os baixos custos de manutenção. Ocorre que, nas condições de hoje, mesmo o jardim selvagem não dispensa o monitoramento para ser preservado, portanto também exige cuidados. Tampouco seu conceito, originalmente radical, escapa do glamour dos produtos de grife.Não podemos nos evadir do cuidar, do tratar, do manter. Se a modernidade, e com ela a industrialização, encerrava a promessa de nos livrar do jugo de lidar com a terra e de substituir, por fim, todo trabalho humano pelo trabalho das máquinas, não nos liberou da necessidade de manter as máquinas. E não saber das máquinas, nem como mantê-las, nem como conservar as coisas que elas produzem, consumindo-as e descartando-as compulsiva e automaticamente, aprofunda o fosso da nossa alienação. Tudo precisa ser cultivado – como se cultivam as amizades, as habilidades, o ócio e até os vícios e os entretenimentos (aliás entreter é também manter, conservar) – pois a obra humana, deixada ao abandono, retorna à Terra, ao fundo escuro, à noite, no dizer de Dardel, e volta a ser “pedra, madeira e metal”.A herança dos jardins de Burle Marx (e de tudo o que venha a merecer o nome de jardim) não deveria ser vista como um fardo ou um anacronismo. Eles são lugares privilegiados onde estão condensadas as representações da nossa experiência com a Terra, que transformamos em nosso mundo. Faz sentido manter e transmitir esta herança, cultivá-la, se acreditarmos que nem tudo se reduz a produzir tênis mais baratos.

sobre o autor

Vladimir Bartalini, arquiteto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, membro do Conselho Editorial de Arquitextos / Portal Vitruvius.

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