Desde a sua primeira edição em 1990, Cidade de quartzo, do autodidata californiano Mike Davis, atrai comentários radicais. No meio acadêmico americano recebeu elogios de intelectuais consagrados cujos argumentos assumiam algumas vezes um tom de defesa, tanto do livro quanto do próprio autor. Mas, da mídia cultural e do ambiente acadêmico vieram duras críticas colocando em cheque a autenticidade da pesquisa e a parcialidade intelectual do autor. Algumas avaliações foram direto ao ponto: o que Davis escreve sobre Los Angeles “está apenas na sua cabeça” e não na realidade objetiva. De acordo com a crítica é o próprio Davis quem estaria destruindo LA através do quadro apocalíptico da cidade e da sociedade que a cria.
É difícil deixar de pensar que, naquele momento, os ataques à obra de Davis não visassem a sua postura intelectual e militante alinhado com o pensamento marxista e, num outro nível, buscassem também atingir a sua formação pouco convencional. A combinação inusitada de editor da New Left Review, importante revista de orientação marxista, de professor convidado da University of Califórnia LA (Ucla) apesar de títulos acadêmicos incompletos e de sua atividade profissional como açougueiro e caminhoneiro, o obrigaram a enfrentar resistências. Das quais, aliás, ele nunca recuou.
Em todo mundo o livro foi recebido com entusiasmo, tornando-se um clássico multidiciplinar. Foi logo reconhecido como um texto inovador, tanto pela força dos temas abordados, quanto pela capacidade de reinventar a forma de narrar a história da constituição das metrópoles que nas últimas décadas do século XX passavam por transformações de difícil apreensão. O leitor de Cidade de quartzo é colocado diante de um universo muito particular com personagens e fatos bastante específicos da cultura americana, sobretudo californiana. Mas, ao mesmo tempo, de forma explicita o livro aborda questões da vida urbana contemporânea, inteiramente universais.
A galáxia urbana
A história da galáxia urbana de Los Angeles cobrindo uma área de 10 mil quilômetros quadrados, com 10 milhões de habitantes é mostrada como uma rara combinação de aspectos utópicos e distópicos. Davis cria uma história social fincada no lado sombrio da sociedade cujo principal instrumento de realização é o processo de urbanização vivido num curto período de um século por L.A. Classificado como um estudo de história social, o extenso ensaio de 425 páginas, incorpora uma imensa gama de temas e de relatos de intelectuais americanos, mas também de ilustres pensadores estrangeiros que ali encontraram refugio do nazismo.
O autor descreve com muitos dados todas as formas industriais modernas que encontraram em LA espaço para se implantar e crescer: a indústria aeroespacial, a indústria do petróleo, a indústria cultural mais influente do planeta situada nas colinas de Hollywood. Para compor uma visão de Los Angeles e de sua região, Davis criou um quadro que não é apenas o horror, o “parque temático do apocalipse urbano” visto pela crítica. Ele defende, sobretudo, a capacidade da cidade de estimular a atividade intelectual de forma muito intensa. No primeiro capítulo trava um debate de enorme interesse com as idéias de vários intelectuais do porte de Bertold Brecht e Theodor Adorno, em torno de suas interpretações da cidade e do modo-de-vida que ali se organiza. O confronto entre a urbanidade da cidade americana em contraponto com a cidade européia é um dos temas desta excelente discussão.
O tom, visionário, sombrio e negativo, assumido neste primeiro volume de sua trilogia dedicada à cidade, nasceu de uma tese bem sintetizada no prefácio à segunda edição inglesa de 2006 onde ele diz o seguinte: “Cidade de quartzo, para usar um destes termos parisienses que eu geralmente tento atropelar com minha picape, é a biografia de uma conjoncture, um desses momentos carregado de paradoxo e não-linearidade quando correntes da história até então separadas convergem de súbito para conseqüências profundamente imprevisíveis”.
Um ponto alto do livro dentre muitos outros é a abordagem já explicitada no seu subtítulo: “Escavando o futuro em Los Angeles”. A associação deste subtítulo com a frase com a qual Davis abre seu livro povoa a imaginação de todos que sobre ele já escreveram: “O melhor lugar para examinar a Los Angeles do próximo milênio é em meio às ruínas de seu futuro alternativo”. Esse seu ambicioso objetivo só pode ser alcançado dentro de uma abordagem histórico-crítica, pois para ele é bem claro que não se trata apenas de “escavar o futuro” de Los Angeles, mas em Los Angeles, enxergar os conflitos latentes que se localizam no interior da relação entre cidade e sociedade de forma muito mais profunda e abrangente. A influente metrópole da Califórnia meridional é o seu objeto de análise, mas as suas conclusões miram muito além.
Para construir “as visões do futuro a partir do passado”, Davis elabora com muito método, escava e interpreta o vulnerável mundo material de uma cidade onde nada lhe é estrangeiro. Sua referência teórica é destacada na epígrafe geral com a qual ele abre o livro, assinada por Walter Benjamin: “O estímulo superficial, o exótico e o pitoresco só tem efeito sobre o estrangeiro. Para retratar uma cidade, o nativo tem que ter outros motivos, mais profundos – motivos de alguém que viaja para o passado em vez de na distância. O livro de um nativo sobre sua cidade será sempre relacionado às suas memórias; o escritor não passou sua infância lá em vão”. O conteúdo desta epígrafe ecoa por todo o livro e, no último capítulo – “Sucata de sonhos” – ele torna o pensamento de Benjamin mais tangível ao se debruçar de forma direta sobre o desenvolvimento de Fontana, um núcleo operário que é parte da região metropolitana de LA situada a 100 quilômetros do centro de Los Angeles, onde vive sua família e ele mesmo nasceu. Fontana é uma espécie de microcosmo onde os diversos projetos empresariais voltados para o desenvolvimento da Califórnia meridional se estabeleceram criando cada um deles grandes expectativas de mudança material e social para a sua população. Hoje, Fontana é apenas um “subúrbio acessível” habitada por trabalhadores motorizados que entopem diariamente a highway que os conduz aos centros empresariais onde está o emprego na atual fase do capitalismo americano.
O comprometimento do urbanismo com a cruzada pela segurança urbana
Se quisermos destacar um tema que atravessa todos os capítulos do livro, este é, sem dúvida, a violência nas suas inúmeras formas. Embora muito presente no texto, o foco desta violência não é propriamente a violência urbana, mas os métodos da cruzada pela segurança. Ao percorrê-la o autor apresenta a vulnerabilidade da cidade onde a vida social é resultado da articulação entre a pobreza urbana, formas de vida muito segregadas e os eficientes métodos desenvolvidos pelo LAPD (Los Angeles Police Department), para manter energicamente apartados os diversos universos sociais sempre beirando o conflito.
Impossível ler o livro sem lembrar que sua primeira edição coincidiu com explosão em 1992 dos riots que varreram a área central da cidade, após a absolvição dos agressores de Rodney King. Dar a esse fato um “caráter profético” como fizeram alguns críticos, é desmerecer a imensa capacidade de análise revelada no livro. Este episódio aproximou o conceito expresso pela palavra conjoncture do conceito de crise e lançou uma luz intensa sobre outras questões, igualmente explosivas, que compunham o vulnerável universo descrito e analisado por Davis.
No livro oferece um lugar de destaque para a arquitetura, o urbanismo, o planejamento urbano e o design, analisados de forma específica no quarto capítulo do livro – “Fortaleza LA”. A tese é que em LA se assiste uma fusão, sem precedente histórico, entre o urbanismo, a arquitetura e o design, de um lado, e aparato policial oficial cujo único objetivo é promover a segurança privada. A contribuição dos arquitetos situados do lado “ruim da pós-modernidade avançada”, como diz Davis, está explicita na destruição do espaço público, cujo esforço criativo está inteiramente voltado para a produção de formas blindadas de “vida urbana”.
Cidade de quartzo contribui de forma efetiva para a análise de todas as metrópoles contemporâneas, sejam elas americanas latinoamericanas ou asiáticas. Em entrevistas dados nos anos 90, o autor foi sempre muito contundente ao afirmar que os tremendos problemas urbanos com os quais as grandes cidades e metrópoles do mundo todo convivem hoje não são – de forma alguma – o resultado de falhas ou de enganos contidos em planos urbanos, mas uma estratégia sócio-espacial inteiramente deliberada dirigida às metrópoles que se destacam no panorama global do denominado capitalismo tardio.
nota
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em março de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
sobre a autora
Regina Maria Prosperi Meyer é arquiteta (UnB, 1974), com especialização em Urban Design And Urban Planning pela Architectural Association School Of Architecture A.A. (1977), mestrado em Arquitetura pela Barttlet School of Architecture da University of London (1978), doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (1991. Atualmente é professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.