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Nadia Somekh resenha o livro "Políticas do espaço" de José Miguel Cortés que, segundo ela, trata da relação do espaço da cidade com o poder econômico, político, social, e a posição dos moradores, trabalhadores e cidadãos, é de submissão a esse poder

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SOMEKH, Nadia. A reconstrução das utopias. Resenhas Online, São Paulo, ano 09, n. 107.01, Vitruvius, nov. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/09.107/3814>.


Célula (Arco da Histeria), Louise Bourgeois, 1992-1993
Foto divulgação [CORTÉS, José Miguel G. Políticas do espaço, p. 83]

Este livro trata da relação do espaço da cidade com o poder econômico, político, social, e de como nossa posição, enquanto moradores, trabalhadores e cidadãos, é de submissão a esse espaço e a esse poder. Entendendo-os como produtos da História, resultados de atividades produtivas e possuindo uma dimensão temporal, o autor retoma o debate do papel efetivo que tem a ação cultural, de artistas e arquitetos, na transformação da sociedade e de seu arcabouço concreto: a cidade. É possível construir um espaço da liberdade, que respeite nossa singularidade? José Miguel Cortés nos aponta caminhos para isso.

Por meio de uma revisão da literatura essencial sobre o assunto, buscando explicar o processo de subordinação, simbolizado nas formas urbanas, o autor recorre a exemplos de espaços que escapam à dominação do poder, denominando-os “espaços queer”. Confesso que, num primeiro momento, achei esquisita a denominação, mas, ao terminar o livro, já havia incorporado a essência do debate que José Miguel propõe. Somando-se à minha consciência de estudiosa do urbano, de profissional participante no processo de planejamento de São Paulo, novos aspectos apontados nessa proposta aumentam minha compreensão de que é possível intervir na cidade e reagir contra os processos de dominação constatados. É viável construir novos espaços democráticos, melhorando os já existentes, que sejam abertos às nossas diversas especificidades e necessidades subjetivas e coletivas.

Graças ao mérito de seu enfoque, em seu trabalho, José Miguel estimula a experiência de repensar utopias possíveis. Este simples fato, num mundo contemporâneo desencantado, abre espaços a alternativas de um otimismo discreto, já anunciado pela filosofia.

Na primeira parte do livro o autor surpreende-nos com seu entendimento sexista de que a cidade é masculina, e seu principal elemento referencial, as torres ou os arranha-céus, traduz-se em manifestações simbólicas, fálicas, do poder. A surpresa não consiste em saber de que modo a arquitetura e o urbanismo podem contribuir para a configuração de uma ordem social, como a maioria das vigentes no mundo atual, revestida de neutralidade técnica. Nesse quadro o que me surpreende são as relações que o autor estabelece entre espaço e poder, aprofundando, por exemplo, a compreensão que Michel Foucault nos trouxe da visão pan-óptica de controle. Para José Miguel, o espaço não é mero cenário, mas resultado de ações e discursos da sociedade.

Qual a função social que a arquitetura desempenha? A resposta a essa pergunta é essencial para que nós, arquitetos e professores, possamos situar-nos no mundo contemporâneo. Em vez de disfarçar o conteúdo hegemônico que a arquitetura pode assumir ao representar o discurso do poder, o autor propõe-se a desvendar a linguagem metafórica das cidades, cujo entendimento favorecerá a realização de propostas libertadoras ou, pelo menos, a construção de um discurso e de ações que preparem o terreno para sua concretização no espaço urbano.

O sonho de uma sociedade transparente, defendida pela arquitetura moderna internacional, deu lugar à exacerbação atual da visibilidade e do controle exercido pela eterna vigilância das câmeras de segurança ou do voyerismo à la Grande Irmão, previsto por George Orwell nos anos 1940.

Com base nessa percepção, entendemos que a arquitetura reproduz um jogo imaginativo em que nossa identidade, nossa sexualidade e nossas angústias podem manifestar-se e traduzir-se em perda ou sublimação de seus atributos. O espaço não expressa em si liberdade ou repressão, mas, segundo o autor, pode condicionar práticas sociais que as determinem.

Splitting, Gordon Matta-Clark, 1974
Foto divulgação [CORTÉS, José Miguel G. Políticas do espaço, p. 182]


Tendo em vista a globalização e o novo papel dos Estados nacionais, que fazem aumentar a importância do espaço urbano na produção, é essencial buscar entender o lugar das cidades (e das cidades-regiões) num mundo de mobilidade alterada pelo progresso tecnológico. Nas urbes contemporâneas, o espaço público tem deixado de ser lugar de encontro, tornando-se lugar de consumo e passando a ser controlado, para que o consumidor sinta-se seguro. Esta é uma constatação importante que o autor nos traz referenciado em toda a pesquisa dessa área, assim como nas novelas e filmes que explora buscando melhor definir essa questão: a transformação das cidades de “espaço da produção”, marca da era fordista, para “espaço do consumo”, característico do chamado pós-industrialismo.

A concentração econômica manifesta-se temporalmente nas megacidades, que associam dois processos simultâneos e complementares: um de concentração de poder e outro de exclusão social, nas periferias no Planeta Favela, já bem delineado por Mike Davis.

Cidades privadas são criadas como frutos da expansão do capital imobiliário, em busca de novas fronteiras de valorização, numa explosão periférica associada à obsolescência dos centros urbanos. A obsessão pela segurança e o afastamento da violência justificam o isolamento de certos grupos sociais nos novos bairros especiais, fechados e altamente vigiados, constituindo novas formas de apartheid urbano.

Para o autor, a cidade deveria confundir-se com o espaço público, o que nem sempre acontece. A coesão social, as trocas culturais, o convívio das diferenças étnicas, de atividades e de classes dão, enfim, expressão à sociedade, mas a simbologia coletiva não necessariamente se materializa no espaço urbano.

O medo do outro produz anticidades. Como aponta Manuel Castells (1999), importante sociólogo citado por José Miguel, o condomínio fechado ou o shopping center não é cidade; para dizer o mínimo, não é cidade para todos. Constatamos, ao observar esse panorama pelo ângulo da realidade social brasileira, que habitamos um mundo urbano sem cidades e sem urbanidade. Para reverter esse quadro, aqui no Brasil, em que a maioria da população das cidades vive em condições precárias, é preciso investir no espaço público, o que se revela adicionalmente uma forma de democratização e redistribuição de renda. As esferas pública e privada, para o autor, constituem articulações básicas da sociedade na construção da vida cotidiana, e a defesa do bem comum enquadra-se nessa batalha.

Passando do espaço urbano ao domicílio, a casa privada, com as funções nela cumpridas, é entendida pelo autor como referência para o processo de fortalecimento da subjetividade dos habitantes da cidade. E ela pode converter-se também numa estrutura permeável às transformações sociais e políticas do mundo contemporâneo, embora isso não seja reconhecido por todos os setores da sociedade.

A transformação que ocorre em nossas casas advém tanto da revolução das tecnologias digitais, que afetam as formas de trabalho, como de suas estruturas internas, que refletem a nova composição dos grupos familiares e de uma nova privacidade, mais associada com a dimensão pública. De novo, o autor ressalta, no nível da vida privada, os aspectos metafóricos da arquitetura.

Live-taped vídeo Corridor, Bruce Nauman, 1969-1970
Foto divulgação [CORTÉS, José Miguel G. Políticas do espaço, p. 60]


O que é o espaço público hoje nas cidades? Será aceitável que seja considerado como tal o espaço do consumo? A apropriação metafórica da rua por meio da atividade de fazer compras, continuamente transformada pela incorporação de novos recursos advindo da tecnologia, tem recebido novos significados. O ar condicionado e as escadas rolantes permitiram o surgimento de novas áreas de consumo. Para o autor, a estrutura desses centros de compras é coercitiva, maximizando o impulso consumista de seus freqüentadores. Os novos equipamentos comerciais substituem de forma limpa e segura os espaços degradados e violentos das ruas localizadas em zonas centrais de núcleos urbanos.

Para Rem Koolhaas, jogar de modo produtivo com as escalas é o problema atual da arquitetura dos espaços contemporâneos mais típicos: shoppings, aeroportos, parques temáticos. A cidade vem sendo estruturada em torno de grandes agrupamentos edificados, que se erguem em competição com ela, desconstruindo a rua e diluindo a importância de edifícios históricos. E reforça-se a tese de que hoje na cidade o consumo substitui a produção. Esquecimento do passado, referências vindo apenas do presente, homogeneização dos comportamentos e emprego generalizado da sedução são ingredientes do consumo de massa e do modus operandi dos grandes equipamentos comerciais e das redes de infra-estrutura.

O autor é bastante crítico de iniciativas tais como a Cidade das Artes e das Ciências em Valência, uma cidade dentro da cidade, tendo a cultura e a diversão como fundamentos do lazer no século XXI. Esse projeto de Santiago Calatrava é, para José Miguel, mais obra de marketing do que de arquitetura e um claro exemplo de aliança mercantil entre arquitetura e espetáculo. Um projeto cenográfico que não ajuda a constituir o espaço público, mas apenas configura um local de consumo de massa.

O controle de aglomeração da população pode ser alcançado com auxílio da arquitetura, como nos mostra José Miguel, com três exemplos de praças, em Lyon, Paris e Barcelona. O primeiro, o projeto da Place des Terreaux, no centro de Lyon, de 1994, incorporou nove pequenas fontes no solo, que, ao serem abertas, evitam as concentrações usuais de árabes que ocorriam nela. O projeto de reabilitação da Place Vendôme, em Paris, de 1992, define um espaço limpo, que destaca tanto a suntuosidade dos edifícios aristocráticos do século XVIII (hoje ocupados por hotéis e comércio altamente sofisticados), quanto o poder do Estado, graças à coluna de bronze de 44 metros de altura, concebida para celebrar a vitória napoleônica na Batalha de Austerlitz. A vigilância da praça se estabelece pela transparência, que torna fácil a localização do indesejado.

Finalmente, em Barcelona, a Plaça dels Països Catalans, para o autor, uma das “praças duras” da cidade, é um projeto de 10.400 m2, de 1980, sem árvores, cinzento e triste, que se situa na frente da estação de trens de Sants. Apesar de permitir a circulação de passantes, é uma praça aberta e pouco acolhedora. Esses exemplos elencados pelo autor apontam o papel da arquitetura no controle das massas, na separação de classes e na vigilância constante, para a manutenção da “ordem social estabelecida”.

Fazendo contraponto a essas tendências da arquitetura, o debate travado entre os artistas plásticos alerta para a necessidade de existir um espaço estritamente privado, uma vez que o Grande Irmão orwelliano vem se apropriando de nossa vida cotidiana, por meio da busca da visibilidade total. O programa Big Brother, na TV, é apontado pelo autor como exemplo máximo desse processo.

Projeto para a prisão de Koepel, Rem Koolhaas, 1979
Foto divulgação [CORTÉS, José Miguel G. Políticas do espaço, p. 49]

José Miguel nos mostra que no mundo contemporâneo o poder não se dá mais pela repressão do desejo, mas pelo seu controle e organização, o que leva à modificação do papel da arquitetura, para que ela possa ser instrumentalizada para esse fim. A intromissão na esfera privada é legitimada pela busca de proteção e segurança. Mas não é mais o Estado que vigia, e sim a sociedade midiatizada, a qual simplesmente observa, moldando o espaço público no sentido de uma crescente teatralização.

Como contraponto à cidade planejada pelos arquitetos e urbanistas, o autor apresenta a cidade praticada pelos indivíduos, na busca de constituir seus projetos pessoais e de reforçar a própria identidade. Mas o autor desconsidera a contraposição entre a cidade altamente planejada pelo Estado e a do livre mercado, que não necessariamente favorece a constituição individual.

E, no entanto, essa distinção precisa ser feita: nem sempre o confronto com a lei leva à liberdade. Nem sempre o liberalismo do mercado protege a individualidade.

Para José Miguel, reforçando essa necessidade, “uma das tarefas pendentes da cidade contemporânea é a reinvenção do erotismo em suas ruas e relações, transformando-as em um lugar de transparência e sentido, mas também de mistério e transgressão”.

Entendemos não ser a arquitetura que reprime a sexualidade, mas, como o livro mostra, ela tem sido um instrumento utilizado para a manutenção do poder na sociedade. E a sociedade, em seu atual estágio de desenvolvimento, cria e escolhe as suas manifestações culturais, e a arquitetura delas faz parte. Isso nos remete ao debate essencial: o espaço pode transformar a sociedade, ou uma sociedade transformada exige novos espaços? O que transforma o quê?

Mas, citando Aaron Betsky, o autor comenta o fato de que, em uma cultura dominada pela masculinidade, o imaginário do corpo masculino manifesta-se, por exemplo, em construções fálicas, como os arranha-céus. Pode-se dizer, de acordo com essa visão, que os papéis do homem e seu poder utilizam-se da arquitetura para concretizar-se.

Além dos livros que estudou e de diversas manifestações artísticas a que recorreu, como pinturas e esculturas, José Miguel dialoga com os próprios artistas para captar seus olhares diferenciados e mostrar-lhes inter-relações e analogias espaciais da casa com a cidade e como elas nos podem libertar ou aprisionar. Por exemplo, os modos gays de ser, para surpresa de nossa percepção atual, em tempos passados, quando eram silenciados na cidade, podiam exprimir-se liberadamente no espaço privado da casa.

O papel do arranha-céu, como imagem emblemática da cidade do século XX, desembarca no mundo contemporâneo ainda como representação do poder corporativo, do avanço tecnológico e da chegada da modernidade. Para o autor, ele é símbolo de uma “masculinidade controladora”, corporificando a superioridade masculina na sociedade. Longe de simplesmente refletir o aumento da produtividade urbana, em face da escassez de terrenos, a cidade vertical persiste expressando metaforicamente a competição do mundo capitalista na manifestação simbólica do poder nas cidades. A destruição das Torres Gêmeas do World Trade Center, em Nova York, deu destaque a um momento de vulnerabilidade desse mundo, superado pelo otimismo da teimosa reconstrução de prédios no Ground Zero e da contínua corrida global que conduz a mais e mais novos edifícios fálicos.

O autor aponta, no entanto, dois projetos contemporâneos que, como sinais de uma contracorrente, mudam o caráter hegemônico na concepção de edifícios altos. O primeiro, de Norman Foster, em Tóquio, abrigará uma cidade vertical com uma população de 60 mil pessoas, que de certa forma destrói a cidade reconstruindo-a num único elemento urbano. O segundo foi proposto por Rem Koolhaas, para Pequim. Trata-se de duas torres inclinadas, talvez vencidas ou menos fálicas, que propõem o que se pode chamar de solidariedade corporativa e novas relações do público e do privado emoldurando uma cidade em vez de dominá-la. Esses exemplos ilustram outras possibilidades de relacionamentos sociais.

José Miguel Cortés mostra-nos também o aumento dos territórios gays na cidade como resultado de batalhas vencidas, cotidianamente, contra a hegemonia do espaço masculino heterossexual. Para ele, a utilização de determinados espaços públicos pela comunidade homossexual desafia a “heteronormatividade” que governa os usos urbanos, manifestando seu caráter transgressor em relação às recorrências urbanas.

De novo, no entanto, aparece a supremacia masculina, na medida em que o autor diferencia os territórios gays masculinos e os femininos com a predominância dos primeiros na ocupação do espaço urbano.

No final do livro o autor inventa o conceito de espaços queer, a que me havia referido, os quais representam uma forma de liberação. Eles têm, porém, caráter efêmero: sua força liberadora é efetiva somente na medida e no momento em que estejam sendo criados. A sua institucionalização faz com que percam essas características libertárias. Mas suas marcas permanecem na cidade permitindo-nos a todos sonhar com utopias.

Podemos ter uma imagem concreta dessa cidade mais generosa observando a Parada Gay que ocorre todos os anos em São Paulo. Os milhões de participantes não são necessariamente homossexuais, mas pessoas que compartilham o desejo de exercer novas liberdades (afinal o desfile é uma manifestação contida no espaço da avenida), entre elas, pelo menos, a de expressar sua alegria no espaço público. O formato desses novos espaços deve ser capaz de conter essa alegria toda.

De qualquer forma, a leitura deste livro é altamente recomendável para todos os que se disponham a entender e projetar espaços de liberdade. O autor nos põe diante dos olhos o fato de que as utopias ainda são possíveis no desesperançado mundo contemporâneo.

Novos e melhores caminhos são passíveis de ser trilhados por todos nós.

notas

NE 1
Texto publicado como introdução do livro CORTÉS, José Miguel G. Políticas do espaço. Arquitetura, gênero e controle social. São Paulo, Senac São Paulo, 2008, p. 8-15.

NE 2
A publicação em Vitruvius aconteceu em março de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.

sobre a autora

Nadia Somekh é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie.

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Políticas do espaço

Políticas do espaço

Arquitetura, gênero e controle social

José Miguel G. Cortés

2008

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