O cigano visionário: vida e obra de Franz Liszt dá seguimento à construção do “museu imaginário” de Lauro Machado Coelho, iniciado lá atrás com os até agora onze copiosos volumes da História da ópera e Shostakóvitch: vida, música, tempo (Editora Perspectiva), seguidos de títulos dedicados à literatura russa: Poesia soviética e Anna, a voz da Rússia: a vida de Anna Akhmátova, os dois últimos também da Algol. A mesma editora e o mesmo autor anunciam para breve o lançamento das biografias de Berlioz, Bruckner, Sibelius, Bartók, Mendelssohn, Britten, Poulenc, todas escolhas amorosas de um escritor estudioso, fecundo e, ao que parece, incansável, que enriquecerão bastante a biblioteca musicológica brasileira.
Já houve quem, como Wölfflin, advogasse a idéia de uma história da arte sem nomes, sem biografias portanto, em que se acompanhasse o puro desenvolvimento das formas e das linguagens, tomadas como elementos de vida autônoma, independentes de seus protagonistas. A essa corrente formalista e idealista sempre se opôs o ponto de vista dos que, como Machado Coelho, não podem dissociar vida e obra, tempo e circunstância e parece não haver dúvida de que grandes biografias como as de Henry-Louis de La Grange (Mahler), dos Massins (Schubert/ Mozart), Ellmann (Joyce) ou Painter (Proust), entre muitas outras, lançam luzes extraordinárias sobre a produção desses artistas, aprofundando escuta e leitura. Proust, entretanto, no Contre Sainte-Beuve, fulmina justamente um certo biografismo, que não é o caso de Machado Coelho, que julga esclarecer toda a complexidade da obra de arte à luz da vida dos criadores, como se sempre estivéssemos às voltas com um grande roman à clef de que precisamos decifrar os nomes postiços e providenciar as carapuças.
A esse pretenso biografismo cumpre acrescentar a acumulação de equívocos e lugares-comuns que, como no flaubertiano Dicionário das idéias feitas de Bouvard et Pécuchet, constituem boa parte dos escritos acessíveis a respeito de muitos artistas notáveis: ...Liszt foi um grande pianista, mas compositor menor, autor de obras prolixas e superficiais; Berlioz, um compositor extravagante e ruidoso, com parco domínio da forma e do material sonoro; Sibelius, um músico frio e completamente destituído de imaginação; Tchaikovsky, o melômano sentimental, incapaz de desenvolver uma idéia e desprovido do sentido de composição (a mesma tola acusação é frequentemente feita a Villa-Lobos); Brahms ou Mendelssohn, neoclássicos estéreis que não compreenderam o ”avanço” da música; Bruckner, sinfonista retórico e redundante; Schoenberg, músico de laboratório. O anedotário, infelizmente, é enorme e ainda faz a cabeça de muita gente...
São necessários a vasta cultura do escritor, jornalista e crítico musical Lauro Machado Coelho e o convívio amoroso e intelectual com a grande produção musical para afastar o pó acumulado num sem-número de textos e para também, de certa forma, “libertar” o biografado de seus hagiógrafos, restabelecendo o nexo adequado entre criador e obra, postos num novo plano. É claro que esses artistas, no entanto, são sempre escolha do autor, peças daquele aludido “museu imaginário” e, portanto, não se pode estranhar o olhar solidário e muitas vezes entusiasmado.
É assim esse primeiro volume sobre o autor húngaro, em que seguimos a trajetória do menino prodígio ao lendário abbé de longa cabeleira branca, cidadão do mundo festejado por toda Europa, que sobreviveu por alguns anos ao genro Richard Wagner e morreu em Bayreuth em 1886, mentor de uma legião de extraordinários discípulos pianistas.
Acompanhamos ao longo do livro as peripécias da vida de aventura de Liszt, personalidade contraditória dividida entre a aspiração ao claustro e a sedução amorosa com, entre outras paixões liztianas, as longas e complexas ligações com a Condessa Marie d’Agoult, mãe de seus filhos, entre eles Cósima, que seria a mulher de Wagner, e com a Princesa de Sayn-Wittgenstein, estranha personagem merecedora, ela também, de uma biografia ou romance.
Outro aspecto justamente ressaltado no livro é o da enorme generosidade desse artista sempre acusado, no entanto, de cultivar a vaidade a ponto de, segundo os detratores, fixar a moderna posição de pianista e instrumento em recitais para valorizar a beleza de seu perfil...
Usou o próprio prestígio, no entanto, para ajudar a promoção das obras e personalidades dos colegas que admirava: Chopin, Berlioz, os Schumann, marido e mulher, Wagner, sobretudo, e uma parte de sua má reputação de superficialidade e prolixidade vem das centenas de muitas vezes empoladas paráfrases pianísticas de óperas ou sinfonias de outros compositores que produziu e que faziam o delírio das platéias. É preciso reconhecer, no entanto, quanto essas peças contribuíram para a difusão e conhecimento daquelas mesmas obras, numa época em que frequentemente não havia outra forma de apresentá-las ao público.
Tudo isso não deve, contudo, nos fazer esquecer do artista genial, sem dúvida um dos maiores do século que, talvez emulando Paganini, reinventou seu instrumento, o piano, e escreveu para ele aquela que talvez seja a mais extraordinária sonata romântica, a em Si menor, além dos Estudos de Execução Transcendental e de obras sem antecedentes, como os cadernos dos Anos de Peregrinação ou as composições tardias, inclusive a profética Bagatela sem Tonalidade, provavelmente a primeira peça atonal, mais de vinte anos antes do Quarteto opus 10 de Schönberg.
Criou o poema sinfônico, de vasta descendência, e sinfonias (Fausto, Dante) que, de inspiração literária, na direção berlioziana, preparam o caminho de Mahler. Os dois concertos para piano também são marcos fundadores no gênero; o nº 1, em Mi bemol maior, “a primeira realização perfeita da forma sonata cíclica com temas comuns utilizados com o princípio da variação”, segundo Bartók, pondo solista e orquestra sempre no mesmo plano de importância, numa verdadeira fantasia sinfônica concertante e, em especial o 2º, em Lá maior, em que a orquestra, com relativamente poucos momentos de tutti, é em grande parte dividida em grupos menores para fazer música de câmara com o solista, numa surpreendente formulação instrumental que renova o concerto para piano e orquestra. A acrescentar, ainda, a música para órgão, as peças religiosas, a música vocal.
Esse e os próximos livros de Lauro Machado Coelho já anunciados pela editora firmarão, com certeza, um novo patamar para a literatura musical brasileira, acompanhando o bom momento do universo da música de concerto entre nós, com a renovação e requalificação de orquestras e palcos, além de um inédito incremento das gravações e publicações de e sobre a música nacional e internacional.
O surgimento da Editora Algol, que já publicou outros títulos sobre o mundo da ópera (Sergio Casoy, João Luiz Sampaio, Niza de Castro Tank) e sobre a música contemporânea (Shnittke, por Marco Aurélio S.Bueno, além do volume reportagem de João Marcos Coelho, entre outros) é um dos bons indicadores desse novo tempo.
nota
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em março de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
sobre o autor
Affonso Risi é arquiteto.