A charge acima, intitulada “velhos amores”, publicada em o Estado de São Paulo em 23 de abril de 1960, demonstra, de forma caricatural, a tristeza que provavelmente invadia a população do Rio de Janeiro, cidade que acabava de perder o título de capital do Brasil para Brasília, inaugurada apenas dois dias antes, em 21 de abril. Passado meio século, a lembrança desse acontecimento – que deve ter provocado sentimentos e reações diversas na população carioca – parece, no entanto, ter sido apagada do imaginário não somente dos cariocas, mas da população brasileira em geral.
Contudo, a mudança de uma capital nunca é um fato sem importância, especialmente quando o que está em jogo é a capital de um país. Como fica uma cidade depois que perde o status de capital? Que sentimentos invadem a sua população? Uma vez rompida a relação secular entre poder e cidade, o que resta para esta? Como o poder estabelecido prepara a sua partida, considerando os casos em que isso é possível? Sim, porque nem sempre as circunstâncias históricas o permitem. Não há preparativos quando o poder é destituído por golpe militar, ou quando os líderes políticos da cidade capital fogem furtivamente por receio da reação popular. Nada disso se aplica à mudança do poder central do Brasil que, instalado havia quase dois séculos no Rio de Janeiro, parte para Brasília, naquele 20 de abril de 1960. Pelo contrário, a transferência do poder foi anunciada, orquestrada e teatralizada através de ritos, gestos, festas, desfiles e símbolos, na tentativa de legitimar tanto o ato em si quanto o poder que o empreendia diante do povo.
Esse tema é assunto do mais recente livro de Laurent Vidal, historiador que há muito se dedica ao estudo da cidade brasileira numa perspectiva histórica. Nesse livro magistral, ele tenta resgatar o momento-chave da mudança da capital do Brasil com um olhar voltado não para Brasília, mas para o Rio de Janeiro, que ficava para trás. Nessa tentativa, analisa a ação, gestos e motivações dos principais atores envolvidos, ou que foram testemunhas do acontecimento: o Establishment político - representado especialmente pelo então presidente da República, Juscelino Kubitschek - a mídia, os intelectuais, bem como as pessoas comuns, o povo, convidado a participar do curso dos acontecimentos. Explora particularmente o simbolismo e o gesto ritual envolvido nessa grande tarefa assim como as interpretações e apropriações que o carioca dela fez. Uma série de ações claras, pensadas, maquinadas pelo próprio presidente e impregnadas de sentido simbólico, marcaram tanto os dias que antecederam quanto o dia mesmo da partida do poder. Apesar da aparente espontaneidade que caracterizou o modo Juscelinista de governar, ele, na verdade, não deixava nada ao acaso – nem mesmo o próprio acaso, como afirma Laurent Vidal. O que estava em jogo, nessa teatralização do poder, era a busca por uma transferência tranqüila, o menos traumática possível para a população da cidade, e evitar, tanto quanto possível, o ressentimento e a hostilidade do povo carioca contra o poder central em razão da sensação de vazio que o seu deslocamento poderia provavelmente causar. O presidente pretendia demonstrar que a transferência da administração federal para a nova capital se inseria numa continuidade histórica, inevitável, cuja responsabilidade recaía sobre os seus ombros e da qual ele não poderia se esquivar. A construção de uma nova capital como símbolo de um novo Brasil, o Brasil moderno, era a expressão maior desse determinismo histórico, diante do qual só restava aos cariocas a resignação.
O livro tem uma série de méritos que convém rapidamente destacar. Em primeiro lugar, a criatividade na escolha do tema. Normalmente, os estudos sobre mudança de capitais se voltam para a cidade receptora do poder. A cidade que perde esse status em geral cai no esquecimento, é eclipsada pelas luzes do novo centro onde o poder vai agora se estabelecer. O fato de Laurent Vidal ter desenvolvido anteriormente, como tese de doutorado, uma pesquisa extensa sobre os projetos para uma nova capital do Brasil desde o início do século XIX e que culminaram com a construção de Brasília, naturalmente devem tê-lo levado a se perguntar posteriormente sobre as antecipações, reações e conseqüências da construção dessa nova capital precisamente para aquela que deixava de sê-lo. Seja como for, a proposta de enfocar o Rio de Janeiro antes, durante e pouco depois do dia 20 de abril, data fatídica em que ela perde o seu título de capital, foi um insight de grande criatividade e sensibilidade.
Em segundo lugar, o tratamento das fontes. Laurent Vidal se vale de artigos de jornais, entrevistas com atores dos acontecimentos, tanto pessoas importantes como pessoas comuns, além dos escritos dos poetas e da iconografia, como a charge e a fotografia, a fim de dar vida e de “costurar” uma narrativa histórica coerente sobre os fatos analisados, através da análise de fatos e gestos presidenciais, assim como de acontecimentos comuns, corriqueiros. O desafio, para o cientista social e para o historiador em particular é fornecer um encadeamento lógico para a análise de fatos históricos, escolhendo uma opção interpretativa dentro do “cruzamento de itinerários possíveis”, como ele diz. É preciso cotejar as fontes, fazer com que elas dialoguem entre si, buscar coerências e elementos de superposição no intuito de retirar dessas mesmas fontes, nem sempre compatíveis, à vezes contraditórias, o discurso, a narração, a leitura dos fatos históricos. Nessa tentativa, o autor reconhece humildemente os seus limites. Por exemplo, para ele não há como apreender em sua inteireza o sentimento dos cariocas naquele dia, mas apenas apontar algumas pistas ou impressões para a sua compreensão.
Em terceiro lugar, e decorrente do item anterior, ele estrutura o seu trabalho de modo a buscar a coerência necessária à compreensão do evento. Assim, o livro está organizado em duas partes principais: na primeira, “quando o poder deixa a cidade”, o autor, após apresentar introdutoriamente o processo de ascensão de Juscelino à presidência da República, relata uma série de eventos e cerimônias oficiais ocorridos no Rio de Janeiro, promovidos pelo presidente entre os dias que precederam a mudança da capital e o momento de sua partida, às 10h:15min do dia 20 de abril, quando ele entra com sua família e comitiva no avião que o levaria a Brasília, que seria inaugurada no dia seguinte. Nada mais conveniente, como fez o autor, do que analisar esses acontecimentos como se fossem uma peça teatral, com os capítulos dessa primeira parte sendo analisados em cinco “atos”: “a cortina se levanta ... sobre a Cinelândia”, “quando a cidade entra em cena” , e assim por diante. Em cada um desses “atos” ele explora magistralmente o sentido simbólico de cada acontecimento, e o insere no seu devido décor urbano: as despedidas do palácio das Laranjeiras e do Catete, os discursos, o cortejo solene diante da população, etc. O centro do Rio, e em especial a Cinelândia e arredores, é o palco onde a ação se desenrola. Nessa análise, os mínimos detalhes não escapam ao seu olhar atento, pois mesmos estes são igualmente cheios de significados. Somos transportados àquele momento histórico, fazemos parte da cena. A descrição e interpretação dos fatos, narrados cronologicamente, hora após hora, apenas aumenta essa sensação.
Na segunda parte do livro, Laurent Vidal entrevista aqueles que viveram e testemunharam os acontecimentos, no intuito de explorar suas percepções no antes, no durante e no depois da transferência da capital. Ele se vale também de anúncios e reportagens em jornais da época, como também dos testemunhos dos poetas que, como os artistas em geral, têm maior sensibilidade e conseguem traduzir, através de seus poemas, enredos de sambas carnavalescos e outros, os sentimentos e reações da população. Não surpreende, portanto, que ele tenha intitulado essa segunda parte de “a poética do acontecimento”. Entre outras reações da população, que vão da tristeza à saudade ou ao rancor com o poder que se vai, sobressai a tentativa dos poetas e da mídia de “dar a volta por cima”, de valorizar a cidade, sempre maravilhosa, mesmo que novamente provinciana.
É preciso, finalmente, assinalar dois outros aspectos, que podem ser tratados em conjunto, mas que certamente não esgotam a lista de qualidades da obra. A primeira é a erudição com que o autor aborda o tema. Não se trata da erudição pela erudição, exposta apenas para impressionar o leitor, mas de referências a contextos, autores e situações que ajudam a esclarecer o tema. Assim é que, por exemplo, ele associa metaforicamente a figura de Juscelino Kubitschek ao deus romano Janus, o deus da passagem, da transição entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, por isso representado por uma cabeça com dois rostos, direcionados em sentidos opostos. Ora, Juscelino se pretendia a própria expressão de Janus, pois era ele que devia presidir a passagem da velha para a nova capital e, por conseguinte, do velho Brasil, arcaico, atrasado, para o novo Brasil, moderno, vislumbrante. Por último, mais do que um trabalho científico no sentido estrito da palavra, o livro constitui uma obra literária, poética, a começar pelo título, “As lágrimas do Rio” (Les larmes de Rio), passando pelo belo prólogo e continuando na estrutura “teatral” do trabalho, como já mencionado. O epílogo, explorando os escritos dos poetas Homero Homem e Carlos Drummond de Andrade, que parecem querer ressuscitar o Rio de Janeiro, apesar de tudo, fornece, assim, uma nota final otimista sobre a cidade e seu futuro. Alguns poemas explorados são transcritos integralmente e anexados ao final do livro. A sensação de que, em alguns poucos momentos, as interpretações de alguns eventos carecem de maior fundamentação, nem de longe desqualifica o livro como um todo, com suas tantas qualidades. Felizmente, a tradução dessa obra, escrita originalmente em francês, está em vias de ser publicada em português pela Martins Fontes. De fato, uma obra relevante, não somente para o público carioca, mas para o público brasileiro em geral. Afinal, as “lágrimas” do Rio podem servir também como expressão das emoções diversas que certamente sentiremos ao ler este belo livro.
notas
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em junho de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
sobre o autor
Rubenilson Brazão Teixeira, Doutor em Estudos Urbanos (EHESS/Paris) e Mestre em Habitação (McGill University, Montreal). Professor do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – da mesma universidade.