Diante da dificuldade em se melhorar a qualidade ambiental e de vida nas cidades, talvez não seja necessário olhar e refletir sobre a etapa anterior ao desenvolvimento das idéias e dos projetos urbanos? Porque não começamos a refletir sobre a educação dos profissionais que têm na cidade seu campo de ação, para que suas ações estejam baseadas em novas e outras relações entre o ser humano, o ambiente construído e a natureza? Como fazer isso? É o que Alfred Linares i Soler (1) propõe em seu livro, de forma apaixonada pela prática docente.
Esse livro enaltece e valoriza o professor de arquitetos, que é considerado um poeta pelo autor, ao fazer uma analogia à poética de Aristóteles. Defende o autor que o processo de ensino aprendizagem dos alunos de arquitetura equivale à construção de um poema, materializado no trabalho do aluno. É um livro inspirador para aqueles que se dedicam a formar futuros arquitetos. Para apresentar sua proposta pedagógica, o autor percorre oito capítulos onde trabalha com a definição de arquitetura e seus princípios (capítulo I: Una definicción de arquitectura) até o capítulo final (capítulo VIII: Poética y aprendizaje) onde defende a idéia central de seu livro sobre a possibilidade de se ensinar arquitetura como poética, processo no qual a aprendizagem se dá quando o projeto do aluno é reconhecido em um contexto arquitetônico específico, passando do individual, ao coletivo.
No discorrer dos capítulos o autor dialoga com arquitetos, filósofos, psicólogos e outros envolvidos com a temática da arquitetura, lingüística e da educação, entre eles: Jean Piaget, Rafael Moneo, Jauss Hans Robert, Umberto Eco, Roman Jakobson, Manfred Bierwisch, Ferdinand de Saussure, Aldo Rossi, Aristóteles, Robert Venturi, Josep Muntañola, entre outros, tornando a leitura rica através da inter-relação entre diferentes áreas de conhecimento.
Se, de modo simplificado, para Aristóteles a poética é a imitação (mimesis) e dentro desse contexto a arte é a imitação das idéias e da natureza, para Soler o projeto de arquitetura também é uma imitação, sem desvincular a criatividade inerente à arquitetura.
Para que essa criatividade não seja desenvolvida do nada, exclusivamente desde a subjetividade do aluno, o autor propõe que a criação em arquitetura deve ter referencias dentro de toda a instituição arquitetônica (princípios e marcos do conhecimento arquitetônico com os quais o professor elege trabalhar). De acordo com os conhecimentos, com a base conceitual e sólida previamente selecionada pelo professor, o aluno não cria a partir do nada, e sim de algo que já existia antes, e desse modo a criação arquitetônica se afasta da idéia de ser uma criação divina e assim pode ser transmissível a partir de metodologias e técnicas específicas. Como para o autor a capacidade arquitetônica, de pensar e de fazer arquitetura não é um dom divino, mas ao contrário, se adquire por meio da experiência, também segundo pressupostos de Piaget, essa experiência pode ser ordenada, e assim constitui-se em uma pedagogia.
Para o autor o professor de arquitetura atua como um poeta, que imitando uma ação, o projeto de um aluno, por meio de mitos com conteúdo social, produz no aluno um reconhecimento de sua ação, como pertencendo a um nível superior, o da instituição, que lhe confere sentido. E o processo de aprendizagem ocorre porque o professor consegue estabelecer uma relação cultural do projeto do aluno com um contexto determinado e em um entorno onde a arquitetura adquire significado. Ao realizar esse reconhecimento o professor consegue aproximar dos alunos a dimensão cultural que possui a arquitetura, em equilíbrio com outras dimensões mais comumente abordadas em sala de aula, como a dimensão física (dos materiais construtivos e da tecnologia) e a dimensão econômica (custos financeiros para execução das obras).
Para além de sua proposta pedagógica do ensino de arquitetura como a poética de Aristóteles, outra contribuição importante deste autor ao ensino de arquitetura é quando, no capítulo III (“De la institución de la arquitectura”) faz uma associação da arquitetura com a linguagem, utilizando conceitos do lingüista e filósofo suíço Ferdinand de Saussure (2). Sua analogia com a linguagem é que permite o autor construir sua pedagogia para a arquitetura.
Utilizando os conceitos de Saussure, Solar nos conta que a língua se constrói como a soma de conhecimentos individuais, e continua afirmando que o uso da língua é sempre individual, e não social e que sua execução, o falar, o que Saussure denomina como “habla” nunca está na massa, no coletivo e sim no individuo. Sendo a “habla” um ato individual, de vontade e de inteligência. Após apresentar as idéias de Saussure, o autor faz uma analogia da linguagem a arquitetura, da “habla” com o “projeto” e nos explica que nem toda “habla” experimentada, criada, pode fazer parte da língua, como ocorre com a linguagem infantil. Com isso, o autor quer dizer que nem todo projeto desenvolvido pelos estudantes de arquitetura podem fazer parte da instituição arquitetônica, do que já está consolidado como conhecimento arquitetônico porque são “hablas” incapazes de modificar o conjunto da instituição.
Mas para que o professor poeta atue, para que sua capacidade poética seja desenvolvida, o autor enfatiza que esta não depende em absoluto do objeto que o aluno apresenta. A partir da entrega do trabalho, o professor começa a construir o poema com os dados que o aluno proporciona, e como resultado, o processo de aprendizagem pode inclusive ocorrer com um sentimento negativo por parte do aluno se sentir que seu trabalho não pertence a um contexto ou entorno que o valore e atribua significados. Ao propor que o projeto do aluno seja contextualizado na instituição arquitetônica, ou seja, na história já consolidada da arquitetura, o autor parece solucionar um dos problemas que os professores de arquitetura enfrentam em como objetivar a invenção, como objetivar a subjetividade do aluno.
Esse reconhecimento, seja com sentimento positivo ou negativo, que supõe uma emoção, tem para o aluno um grande valor pedagógico. E com essa emoção é que ocorre o processo de aprendizagem, de acordo com a argumentação de Soler.
Com sua proposta pedagógica, o autor tenta apresentar aos interessados no ensino de arquitetura um método diferente daquele usual, tradicional em muitas escolas, onde a transmissão do conhecimento é produzida como uma extensão das atividades dos escritórios de arquitetura, quando arquitetos ensinam do mesmo modo que fazem arquitetura. Sobre os métodos de ensino muito utilizados em disciplinas de arquitetura o autor também faz uma crítica àqueles métodos que se compõem de etapas, ou de aspectos que os alunos têm que considerar no desenvolvimento de um projeto, que mais parece uma lista de problemas a resolver do que um sistema de aprendizagem que permita um aprendizado. Além disso, esses métodos nos quais os alunos têm que seguir um modelo de processo de criação, pode inviabilizar ou prejudicar o que é essencial na arquitetura, como também em outras disciplinas artísticas que é a singularidade de cada aluno
Para além de todos os métodos e técnicas de ensino que um professor pode utilizar para construir sua didática em sala de aula, pensar sua relação com o aluno como sendo a construção de um poema é algo que emociona. Apesar de existirem muitos trabalhos sobre didática e metodologias de ensino superior, poucos são específicos ao ensino de arquitetura, e quando existem, poucos se arriscam tanto no campo de outra ciência, como faz Alfred Linares i Soler em sua obra La enseñanza de la arquitectura como poética.
notas
NE
A publicação em Vitruvius aconteceu em junho de 2011, em procedimento de acerto da periodicidade da revista Resenhas Online.
1
Alfred Linares i Soler é professor e diretor do departamento de Projetos Arquitetônicos da Escola Técnica Superior de Arquitetura de Barcelona (ETSAV) na Universidade Politécnica da Catalunya (UCP), na Espanha.
2
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística general. Buenos Aires, Losada, 1970.
sobre a autora
Graziella Cristina Demantova é arquiteta (FAU PUC-Campinas, 1999), mestre em Planejamento e Desenvolvimento Rural Sustentável (FEAGRI/UNICAMP, 2003), doutora em Eng. Civil (FEC Unicamp, 2009), pesquisadora colaboradora depto. De Saneamento e Ambiente (DSA/FEC/Unicamp), realiza pós-doc dentro do convenio Erasmus Mundus BrazilStartUP na Universidade Politécnica da Catalunya (UPC, Espanha) intitulado A dimensão socioambiental do espaço no ensino de arquitetura: técnicas de ensino, conceitos e percepções” (2010-2011).