Depois de Arquitetura do Século 20 e Outros Escritos (2006), Gregori Warchavchik (1896-1972) é tema de nova publicação da Cosac Naify. As 552 páginas de Warchavchik: fraturas da vanguarda, de José Lira, não impressionam apenas pelo volume, mas pela ambiciosa abordagem proposta pelo autor, professor associado da FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo). O que era inicialmente uma tese de livre docência ganhou o formato de livro, com uma iconografia variada e plantas dos principais projetos do arquiteto ucraniano.
Um dos diferenciais da obra de Lira é sua pesquisa nos arquivos de Odessa – uma das principais cidades da Ucrânia, localizada ao sul do país – onde Warchavchik, nasceu, e de Roma e Florença, onde trabalhou. A investigação resulta em uma perspectiva mais nuançada daquele que é um dos pioneiros da moderna arquitetura brasileira. Com isso, o autor gera uma edição que se torna importante documento biográfico sobre Warchavchik, aprimorando relatos anteriormente feitos por nomes como Pietro Maria Bardi (1900-1999) e Geraldo Ferraz (1905-1979).
O primeiro capítulo, Revoluções em Odessa, mostra como a cidade tinha um caráter multicultural, que influenciaria decisivamente a produção do arquiteto. Também uma descoberta importante é a que aponta a freqüência de Warchavchik na Escola de Arte de Odessa (e não no Instituto Politécnico), o que ajuda o futuro arquiteto, à época, a entrar em contato com um fértil ambiente de artes visuais, exemplificado em salões onde nomes de vanguarda exibiam seus trabalhos.
Na cidade, ele também vivencia momentos de conflitos, como o pogrom ocorrido em 1905. Tal tragédia aproxima a biografia de Warchavchik com a de Clarice Lispector (1920-1977). A escritora veio para Maceió quando tinha cerca de um ano de idade, mas nascera em Tchetchelnik, na província ucraniana da Podólia, um dos focos mais sangrentos dos pogrom. De acordo com Benjamin Moser, autor da biografia Clarice, (também lançada pela Cosac Naify), a Cruz Vermelha russa apontara a cifra de 40 mil judeus mortos na região. Houve pelo menos mil pogrom, empreendidos com violência atordoante.
No capítulo seguinte, Transição Italiana, conhecemos o começo da trajetória profissional do ucraniano e sua atuação no país, como a transcorrida no escritório de Marcello Piacentini (1881-1960), em especial no projeto do Cine Teatro Savoia, em Florença. Ele residiu na cidade entre o final de 1922 e o começo de 1923. Piacentini era professor de urbanismo na capital italiana e editava a principal revista de arquitetura no país naqueles anos, Architettura ed Arti Decorative. Hoje, o romano é mais lembrado pela simpatia que as linhas fascistas tinham por seus projetos.
Em capítulos posteriores, desenha-se a fase brasileira de Warchavchik, desde a sua participação profissional em empresas como a Companhia Construtora de Santos – liderada por Roberto Simonsen (1889-1948), nome-chave na indústria brasileira –, e o seu envolvimento com figuras do modernismo, eclodido na Semana de 22, como Mario de Andrade (1893-1945) e Lasar Segall (1891-1957).
Vanguardas
O primeiro manifesto de Warchavchik saudando as vanguardas da área é datado de 1925. Intorno all´architettura moderna foi publicado em Il Piccolo, veículo de destaque da colônia italiana. .Sem precedentes no debate arquitetônico local, muito se discutiu acerca das matrizes do que viria a se tornar o marco zero ou manifesto inaugural da arquitetura moderna no Brasil., assinala o autor.
Todos os projetos-chave de Warchavchik são minuciosamente analisados por Lira – a Casa da rua Santa Cruz, a Casa da rua Itápolis, o edifício Mina Klabin Warchavchik, a sede do Clube Paulistano e o edifício Cícero Prado, entre outros. Mas o autor também apresenta com grande detalhamento projetos menos conhecidos do arquiteto, como o Paço Municipal de São Paulo, o Pavilhão Marjorie da Silva Prado, no Guarujá, e o Projeto Cidadinha, de cunho mais popular.
Lira não revisita apenas de modo automático a celeuma que versa sobre qual grupo ostentaria a primazia do modernismo arquitetônico no Brasil, o do Rio – cujo emblema foi o projeto do Ministério da Educação e Cultura – ou o de São Paulo – cujo pioneirismo, além de Warchavchik, também teria de ser creditado a Rino Levi (1901-1965). O autor rememora o período no qual Warchavchik ministra aulas na Escola Nacional de Belas Artes, decisivo na formação de importantes profissionais da área, como Alcides da Rocha Miranda (1909-1999) e Abelardo de Souza (1908-1981).
Alguns dos mais importantes projetos da arquitetura brasileira, como a Casa Nordschild (demolida) e a Vila Operária da Gamboa (hoje muito descaracterizada), são resultantes do período .carioca. de Warchavchik. Naqueles anos, ele engata sociedade com Lucio Costa (1902-1998), e a dupla assina projetos atualmente célebres, como a vila da Gamboa, e menos em evidência, como a Casa Schwartz. .Se o centro de gravitação da produção mais avançada parecia transferir-se de São Paulo para o Rio, não restam dúvidas de que o nome, a obra e o pensamento de Warchavchik haviam cumprido papel decisivo na fermentação da pesquisa arquitetônica moderna no país., frisa o autor.
Como o historiador de arquitetura argentino Adrián Gorelik escreve na apresentação de Warchavchik: fraturas da vanguarda, Lira consegue empreender um relato de fôlego sobre a trajetória de Warchavchik, não restrito apenas a seus momentos de pioneirismo modernista. Lira distancia-se dessa perspectiva, não tanto porque ofereça uma explicação diferente desses topoi, mas porque discute a própria busca da origem, a vontade teleológica dos relatos tradicionais: para o historiador da cultura arquitetônica não se trata de canonizar figuras ou definir os rumos corretos do que foi a arquitetura moderna, mas de compreender, sublinha Gorelik.
sobre o autor
Mario Gioia é graduado pela ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), foi o curador, em 2010, de Incompletudes galeria Virgilio) e Mediações (galeria Motor), além de ter feito acompanhamento crítico de Ateliê Fidalga no Paço das Artes. Em 2009, fez as curadorias de Obra Menor (Ateliê 397) e Lugar Sim e Não (galeria Eduardo Fernandes). Foi repórter e redator de artes e arquitetura no caderno Ilustrada, no jornal Folha de S.Paulo, de 2005 a 2009, e atualmente colabora para diversos veículos, como as revistas Bravo e Trópico e o portal UOL, além da revista hispano-portuguesa Dardo. É coautor de Roberto Mícoli (Bei Editora) e faz parte do grupo de críticos do Paço das Artes.