Em 2001, o então aluno Renato Cymbalista me procurou com um conjunto de documentos que mostravam a criação de três cidades no interior da província de São Paulo a partir da presença dos mortos. Ao longo de 6 anos de muita pesquisa e com o desenvolvimento de um acurado arcabouço analítico multidisciplinar Renato finalizou seu trabalho, sintetizado em sua tese de doutorado, que agora é editada como livro pela Alameda Editorial.
O livro Sangue, ossos e terras: os mortos e a ocupação do território luso-brasileiro analisa como a construção da América Portuguesa – conjunto de vastos, dispersos e indefinidos territórios – significou a construção de um espaço a ser colonizado e de como este desafio, nos séculos XVI e XVII, foi indissociável do processo de catequização. Esta associação entre Império e Deus, conquista e catequese marca muitos dos estudos sobre o chamado período colonial e insere este livro em debate amplo e central sobre a constituição do Brasil. A partir deste marco geral, o autor dialoga com diversas matrizes teóricas e disciplinares e desenvolve um viés explicativo instigante: a ocupação da colônia deu-se na associação entre religião e território, materializada na construção de urbanidades e cidades marcadas pela presença e diálogos com a morte e com os mortos. Propõe ainda uma articulação específica entre sociedade e religião, entre construção, demarcação e unidade do território com a sacralidade. Neste viés o autor explicita seu argumento central: na colônia, não há território sem sacralidade.
Ao analisar o papel das relíquias sagradas na construção desta relação, Renato Cymbalista toma como um dos muitos exemplos a adoção das 11.000 virgens como padroeiras das cidades brasileiras. O autor argumenta que a cristandade tinha nas relíquias um elemento fundamental de expansão do cristianismo para lugares que não tivessem compartilhado da sua história original e que não fossem detentores de lugares de santos e mártires. A mobilidade das relíquias era elemento fundamental e fundador da construção e apropriação do território. Salvador recebeu em 1575 duas cabeças da 11.000 virgens que foram declaradas padroeiras do Brasil. Os portugueses “já sabiam da imensidão do território a ser controlado na América Portuguesa, e a construção de uma continuidade territorial era um desafio... do ponto de vista do regime religioso a adoção de um patrono único seria elemento de reforço desta unidade, e as 11000 virgens eram patronas perfeitas: poderiam vir da Europa tantas cabeças quantas fossem necessárias, cumprindo ao mesmo tempo o papel de consagração do território por meio do corpo físico do santo, e da homogeneização de um calendário festivo nos locais onde houvessem cabeças das virgens. Além de constituir parte do corpo da cristandade e do império, as cidades da América Portuguesa constituíam em si um corpo de identidade própria, cuja coesão era dada pelas cabeças das 11.000 virgens” (p. 157).
A relação entre sacralidade e constituição do território é, ao longo do livro, mediada pela noção de trânsito, seja o da mobilidade física, o das práticas culturais, o das regras e normativas e os que se estabelecem entre os grupos sociais. O oceano articula estes fluxos. Estes trânsitos analisados privilegiando ora a igreja, ora o estado, ora os povos que dialogam com a estrutura da sociedade. O autor propõe-se a resgatar nos seus termos, em seu tempo e espaço, a sacralidade. Neste sentido é fundamental a “aceitação de lógicas distintas das nossas na disputa e ocupação do território”. O autor procura “devolver coesão a todo um conjunto de elementos que os intelectuais de hoje podem considerar bizarros, mas que por muito tempo e para muita gente constituíram a verdadeira narrativa em torno da fundação e funcionamento das nossas cidades” (p. 23).
A pluralidade de fontes documentais (cartografia, iconografia, documentação oficial do estado português, hagiografias,plantas arquitetônicas e urbanísticas, testamentos e inventários) e referências bibliográficas (com utilização de matrizes explicativas da antropologia, arquitetura e urbanismo e história), assim como uma dispersão geográfica amarrada por um recorte cronológico preciso conferem ao trabalho uma de suas mais instigantes características: não se trata de um estudo monográfico. Ao contrário, construído com rara ousadia, o livro em seu percurso não abandona a indagação inicial frente a fundação de cidades na América Portuguesa e propõe a construção de um campo de reflexões e significados sobre as relações entre a(s) religião(ões) e a construção do território, atribuindo à morte uma centralidade urbanizadora. Mais do que isso: trata de um período – os dois primeiros séculos da colonização – em que temos dificuldade para enxergar a temática urbana em grande parte do território. Ao olhar para fontes e bibliografia, propondo sobre elas novas articulações, o autor problematiza os modelos e explicações de construção do território e da urbanidade da América Portuguesa.
O texto está articulado em torno de cinco capítulos. Cada um deles explora aspectos específicos de como os mortos participaram da urbanização e da constituição do território.
Nos dois primeiros capítulos, é privilegiada a análise das formas de relacionamento do clero com a conformação do território, seja na Europa católica seja na América Portuguesa. A análise de martírios e mártires estrutura o primeiro capítulo, destacando a ação de jesuítas e franciscanos na América Portuguesa. Revela, a partir da análise de diversas fontes, localizadas em arquivos e bibliotecas brasileiros, portugueses e italianos, a relação direta entre o martírio e a construção do território. Assim, por exemplo, nos apresenta José de Anchieta narrando a morte de Pedro Correia em 1554 ao tentar mediar um conflito entre índios Tupis e Carijós. A morte do jesuíta e seu companheiro João de Souza, transformando-os em mártires, faz com que Anchieta afirme que “agora sim acreditamos que o Senhor há-de estabelecer aqui a Igreja, tendo já lançado nos alicerces duas pedras banhadas em sangue tão glorioso” (p. 95). Para além de configurarem territórios, as narrativas de martírios atribuem significado excepcional aos seus lugares de morte e sepultamento.
O capítulo dois trata de um recorte que privilegia os sentidos e significados atribuídos às relíquias sagradas – restos físicos dos corpos dos santos e mártires, como ossos cabelo, unhas, peças de roupa – objetos móveis, mediadoras entre o mundo divino e o terreno. Os intensos movimentos de traslado e a importância atribuída às relíquias sagradas revelam o papel destes objetos em integrar as novas terras à narrativa simbólica cristã. A partir de finais do século XVI intensificaram-se os movimentos de traslados das relíquias, coincidindo com a ocupação permanente da colônia. Esta ocupação expressava-se na organização de uma institucionalidade, através do estabelecimento de câmaras municipais, padroado, justiça, etc mas também – e simultaneamente – da contrapartida espiritual seja pela construção de edifícios, assistência religiosa e “transferência das provas materiais da verdade do passado cristão, entre as quais as relíquias estavam entre as mais cobiçadas” (p.139). Por fim o autor revela como a doutrina católica, na sua busca de contatos com o gentio terá nas relíquias um importante elemento de comunicação. A Igreja rejeitava idolatrias, dentre as quais incluía o xamanismo e o animismo, mas aceitava o uso das relíquias em processos de cura e de comunicação entre os mundos das coisas, das pessoas e dos animais (p. 169).
No capítulo três o foco da análise estará nas ações dos reis no que dizia respeito à territorialidade da morte. O autor mostra a relação entre centralização do poder e monumentalização dos locais de sepultamento dos monarcas e de como os procedimentos relacionados aos martírios, mártires e relíquias estavam legitimados pelos reis, indicando mais um dos muitos trânsitos e fronteiras entre os corpos do reino. A análise realizada sobre o Mosteiro dos Jerônimos demonstra como “nenhum edifício expressa melhor o esforço de associação entre os sepulcros reais e o império português do século XVI” (p. 185).
Nos capítulos quatro e cinco Renato Cymbalista detém seu olhar sobre a relação entre a morte e a constituição do território a partir da análise dos mortos comuns sejam aqueles inseridos no universo católico sejam os povos nativos da América.
Sobretudo no capítulo quatro, recupera a idéia originária do trabalho, ao revelar como as cidades aqui e na Europa serviam “tanto aos vivos quanto aos mortos”, povoadas por uns e outros. Mostra como a morte funda o território e as cidades seja pela necessidade de condições cristãs para o sepultamento seja pela dimensão de perenidade e centralidade que o túmulo original deve ter sobre a cidade dos vivos, a ser construída. Assim tanto os oficiais da Câmara de São Paulo em 1598, quanto Domingos Fernandes ao fundar Itu em 1652 compartilhavam um mesmo ideário sobre as cidades, expresso por Padre Antônio Vieira em seu Sermão de Quarta feira de Cinza, sobre a imagem de Roma”cidade sobre as ruínas, o corpo sobre o cadáver, a Roma viva sobre a morta. Que coisa é Roma senão um sepulcro de si mesma?” (p. 250).
Por fim ao lançar seu olhar sobre os índios, sobretudo os Tupi, procura compreender o que ele mesmo nomeia de “choque de territorialidades” e as distintas formas de comunicação entre os mundos dos vivos e dos mortos. Este capítulo final, distinto dos demais, lança questões centrais para a compreensão do choque de culturas que constituíram a colonização.
Vale ainda destacar dois aspectos do texto. Um é o glossário de personagens que localiza, como pequenos verbetes, os múltiplos homens e mulheres cujas trajetórias foram mobilizadas pelo autor na construção de sua tese. Outro é o primoroso projeto gráfico que valoriza as imagens e sua relação constitutiva com o texto.
As conclusões expressam o posicionamento do autor no debate sobre a construção do território e urbanização na América Portuguesa. Neste momento, o texto tão cheio de portas de entrada e caminhos, múltiplo e diverso, retoma sua unidade ao recuperar o argumento articulador, ou seja a existência de uma urbanização relacionada com a morte e os mortos, dotada de autonomia. Como afirma no início do livro “estudar a ocupação do território sob este ponto de vista pode produzir resultados interessantes, pode revelar sentidos, disputas e conquistas e sofrimentos vindos de lugares onde um olhar exclusivamente focado no político e no econômico só enxerga ausência, precariedade, miséria” (p. 21).
Assim, o agora professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP alerta ao seu leitor que “devolver a voz, a coerência, a dignidade às partes silenciadas de nosso passado, é algo altamente instrumental para orientar nossas ações no presente. No início do século XXI, conhecer melhor um mundo e uma humanidade cujas ações são motivadas pela religiosidade e pela espiritualidade não é um capricho mas uma urgência” (p. 23).
sobre a autora
Ana Lúcia Duarte Lanna é Professora Titular da FAU-USP. Diretora do IEB-USP (2007-2010) e do Centro de Preservação Cultural da USP (2003-2006).