Um dos maiores paisagistas do Japão respondia pelo nome de “Musô”. São dois ideogramas, que significam “Sonho” e “Janela”. Sim: o jardineiro se chamava “Janela do Sonho”, nome inspirador e que dá pistas para entender melhor o livro Jardim japonês. A magia dos jardins de Kyoto”, de Sarkis Sergio Kaloustian.
Musô Soseki (1275-1351) iniciou cedo os estudos do zen-budismo e logo se tornou um dos mais famosos monges de sua época. Mestre na metafísica confucionista, Musô era também exímio poeta, pintor, calígrafo de shodô, entendia de arquitetura, fazia design de jardim, e produzia cerâmica. A interação entre filosofia, as artes e os ofícios o tornava um artista completo.
Musô configurou os jardins como um artifício para desvincular o observador do mundo real, para transportá-lo para um mundo idealizado. Poderíamos chamar esse mundo de utopia. O antagonismo entre a realidade e a fantasia já nasceu junto com seu nome. O sonho interioriza. A janela exterioriza. Dentro e fora parecem se confundir na mesma pessoa. Assim como os seus jardins, que ao mesmo tempo em que transportam as pessoas para um momento de interiorização na busca da tranquilidade, remetem a um universo onírico e inatingível do mundo idealizado.
Mas essa utopia estava além do que Musô poderia imaginar. O jardim do templo Saiho-ji, uma das obras paisagísticas mais importantes de Musô e magistralmente retratado no livro, é considerado o “templo dos musgos” e tombado pela Unesco. Kaloustian reporta 120 tipos de musgos que formam “um impressionante tapete contínuo que se estende infinitamente em todas as direções”. Certamente, Musô não chegou a ver essa configuração do tapete de musgos, resultado de centenas de anos de umidade e sombra. Teria Musô de fato, previsto este efeito enquanto desenhava este jardim? Somente as sombras saberão responder. E é exatamente a este mundo das sombras, da penumbra que nos convida ao vazio, conceito este que permeia toda a estética japonesa, que os jardins de Kyoto nos remetem. O vazio não significa ausência na arte japonesa, mas uma estratégia de expressão. O vazio que potencializa as vozes, os sons, as formas. O vazio que dissolve os egos dessas vozes, desses sons, dessas formas.
Os jardins japoneses são considerados minimalistas porque rejeitam a ostentação das perspectivas majestosas e dos monumentos heroicos. A minimalização reside na busca do essencial, para fortalecer o conjunto. Um preceito que lembra Bauhaus, certamente, e que de certa forma, conectam a tradição japonesa às tendências da arte moderna.
É acertada, pois, a inserção de um capítulo dedicado aos jardins contemporâneos e como define o autor trata-se de um “desafio”, frente às imposições das formas da arquitetura, e do meio urbano que o circunda. Afinal, que “vazio” é permitido na cidade atual? Há margens para “sugestões”, sonhos e utopias, esses desejos que os paisagistas japoneses tanto apregoavam?
É possível descrever o autor, Sarkis Kaloustian, como um sobrevivente de uma geração romântica que perseguia ostensivamente as utopias do século XX. Archigram, Paolo Soleri, os metabolistas japoneses foram algumas de suas inspirações, que geraram desejos e pensamentos de uma arquitetura que jamais seria construída. Quando chegou ao Japão, como bolsista do governo japonês, presumo que o autor, então jovem pesquisador, tenha saído à procura dessas utopias, cujos rascunhos ele encontraria, em uma ou outra obra de arquitetos como Kenzo Tange ou Kisho Kurokawa, visionários de uma cidade do futuro, que seria erguida sobre uma plataforma de tecnologia. Pela sorte que o destino lhe reservava, Kaloustian foi alojado na mais tradicional das cidades japonesas, celeiro das mais importantes obras de jardins, e portanto longe das experiências pós-modernas de arquitetura. Percorrendo os sinuosos caminhos dos jardins, teria ele encontrado então a Utopia, tão desejada e tão assediada. No silêncio dos espaços misteriosos, e na companhia de musgos e pedriscos, Kaloustian percorreu diversas vezes os insinuantes labirintos que os jardins de Kyoto insistiam em lhe convidar. Os anos de permanência na mesma cidade lhe permitiram observar a dinâmica desses jardins, que se transformam a cada estação, favorecendo novos olhares e novas leituras, e porque não, novas sombras, numa rica e densa apreensão de suas formas. Essa garimpagem, diga-se de passagem, tornou-se obsessiva para o jovem pesquisador, que de arquiteto que vislumbrava as utopias estruturais, passou a ser arqueólogo das imagens utópicas desenhadas há centenas de anos por monges-jardineiros.
Apesar de toda a conotação filosófica que se costuma atribuir aos jardins japoneses, o livro de Kaloustian se propõe extremamente didática, analisando-os através do prisma de seus códigos, que são as estratégias de configuração dos jardins, das tipologias, que nos esclarecem sobre as finalidades funcionais de cada uma, e por fim, sua contextualização na paisagem urbana da Kyoto atual.
Como toda obra de arte japonesa, o livro de Kaloustian se abre para outras leituras. A partir de suas páginas, ricamente ilustradas por fotografias originalmente capturadas em slides, escaneadas e digitalizadas com precisão pelo editor, é possível projetar novos vôos, inclusive para o seu próprio interior: uma “janela do sonho”, escoltada por imagens inspiradas, de onde se abduziu a figura de turistas ou observadores, para que este vôo interior seja de fato, particular e exclusivo.
sobre o autor
Jo Takahashi é arquiteto e administrador cultural. Consultor especial de arte e cultura da Fundação Japão e fundador da produtora Dô Cultural.