Este lançamento traz ao público mais uma obra que ajuda a compor uma compreensão em torno às ideias e teorias do arquiteto catalão Josep Lluís Sert. Personalidade emblemática, Sert é um dos valiosos pensadores contemporâneos, cuja própria história se confunde com o desenvolvimento do ideário moderno no contexto arquitetônico e urbanístico do século XX. A obra de Sert permaneceu esquecida no baú do tempo até poucos anos atrás, quando quatro autores fundamentais começaram lhe por em destaque: Knud Bastlund, Jaume Freixa, Josep Maria Rovira e Patricia Juncosa – esta última a responsável em editar o livro que aqui nos centramos. De acordo com Rovira, “a arquitetura de Sert hoje não vende, frente a difusão mediática das estrelas, mas é uma lição de ética e novidade, que contribui a uma arquitetura da razão, da tranquilidade, do sentido comum, o que se pode enxergar como uma crítica ao excesso atual” (1).
Com o subtítulo “Lugares de encuentro para las artes”, este pequeno livro reúne oito textos, alguns inéditos, de Josep Lluís Sert (antecedidos por uma entrevista realizada por John Peter), procedentes de um simpósio organizado por Philip Johnson, celebrado no MoMa de Nova York em 1951, no qual se apresentaram Henry-Russell Hitchcock, James Johnson Sweeney, Frederick Kiesler, Ben Shahn, além de Sert; onde o arquiteto pôde expressar suas ideias a respeito da integração das artes com a arquitetura. Nestes textos, nos deparamos com um profissional que teve a oportunidade de pensar e desenvolver uma teoria sobre a necessidade da arte na concepção arquitetural moderna, e também teve a oportunidade de pôr em prática essa teoria, trabalhando intensamente em diversos projetos que contaram com a participação de inúmeros artistas internacionais, em diferentes países.
O vínculo de Sert com o mundo artístico é um antecedente que não se pode desdenhar: seu pai, um industrial têxtil e sua mãe, proprietária da Compañía Transatlantica Española; teve um dos membros de sua família entre os protetores de Antonio Gaudí e um de seus tios, Josep Maria Sert, foi um pintor de grande reputação, realizando, entre outras obras, pinturas murais no vestíbulo do edifício RCA no Rockfeller Center em Nova York. Por conta deste tio, se interessa muito pela pintura e escultura, ao ponto de afirmar que seu desejo inicial era converter-se em pintor – e não em arquiteto. Nasce em Barcelona em 1902 e em sua cidade natal, cresce num ambiente culturalmente fértil, conhecendo artistas e mecenas; adquirindo livros de arte e aprofundando o contato com algumas obras. Em um dos textos apresentados nesta compilação, relembra assistir os balés de Sergéi Diágilev; visitar uma mostra sobre a pintura francesa moderna; outra de pós-impressionistas; além de conhecer, ali mesmo em Barcelona, os quadros da fase cubista de Picasso.
Através dos textos, leves e muito otimistas, vamos recompondo a personalidade de Sert desvendando sua trajetória profissional e descobrindo que na sua vida, dividida em capítulos (Barcelona, Paris, Nova York e Boston – como ele se descreve), se dedica desde cedo a investigar a relação entre as artes e os lugares onde estas poderiam se reunir na cidade moderna.
Na adolescência, através de algumas amizades, começa seu despertar pela arquitetura e, mesmo confessando que seu grande interesse estava na pintura, inicia os estudos para formar-se arquiteto. Durante uma viagem a Paris (entre 1924 e 1925) descobre os primeiros livros de Le Corbusier que acabavam de ser publicados: “Vers une architecture” e “L´urbanisme”, que lhe provocaram uma nova orientação em seu futuro profissional, estreitando seus contatos com a doutrina urbanística do mestre franco-suíço, e transformando-o em um influente propagador destas ideias e ativo pensador sobre as necessidades das cidades em expansão. Constituirá o GATCPAC (Grup d´Arquitectes i Tècnics Catalans per al Progrés de l´Arquitectura Contemporánia, 1930-1936) e desde então não cessarão suas contribuições para o raciocínio da vanguarda arquitetônica e urbanística.
Seu fascínio pelas artes se fortalece em uma época de grandes transformações na sua carreira como arquiteto: entre 1928 e 1931, em um dos períodos em que esteve em Paris trabalhando no atelier de Le Corbusier, pôde conhecer a Fernand Léger y Pablo Picasso. Após o terceiro CIAM (1929 - Bruxelas) se torna primeiro delegado espanhol, ao mesmo tempo em que trabalha para o governo republicano espanhol em Paris, organizando exposições em pequenos espaços no Boulevard de la Madeleine. Um grande marco na sua carreira foi o projeto para o pavilhão espanhol na Exposição Internacional de Paris de 1937, que marcou uma busca do arquiteto em fortalecer as relações entre a arquitetura e as artes, sintetizando neste espaço efêmero um conceito que será revivido uma e outra vez em suas obras. Não muito longe do pavilhão espanhol, se olhavam os monumentais pavilhões da União Soviética e da Alemanha de Hitler. No borbulhante caldeirão da política destes anos, o aberto e dinâmico pavilhão de Sert se destacava por denunciar a tragédia da Guerra Civil Espanhola: era exposta ali pela primeira vez, a Guernica de Picasso, junto a obras de Miró, Julio González, Alberto Sánchez e (excepcionalmente) do artista americano Alexander Calder. O impacto da pintura de Picasso ressoou mundo afora, mas não evitou o regime Franquista, provocando um forçado exílio de muitos artistas espanhóis, entre eles, Josep Lluís Sert.
O arquiteto descreve sua ida aos Estados Unidos em 1939, onde trabalhou - desde a biblioteca da Graduate School of Design de Harvard - na preparação de seu livro “Can our cities survive?”, um livro que reúne seu moderno pensamento urbanístico, com base nas ideias desenvolvidas no CIAM IV (1933, Atenas). Pensador ativo, será desde Nova York que fundará a Town Planning Associates, trabalhando junto com Paul Lester Wiener, na elaboração de diversos planos urbanísticos para as Américas, entre eles, o plano para o Brasil da Cidade dos Motores (1946). Com a experiência, pondo em prova sua própria base teórica, o arquiteto começa a pôr em xeque alguns dogmas do racionalismo maquinista de Le Corbusier e buscará um caminho de “humanização”, “organicidade” e “re-centralização” (como ele mesmo gostava de descrever), deste funcionalismo puro e duro, preocupando-se por reavivar o coração das cidades ao invés de reconstruir o tecido urbano pela regra da tábula rasa.
Quando aborda os problemas do planejamento e da reestruturação das cidades, Sert invariavelmente defende a importância dos espaços abertos entre o agrupamento de edifícios públicos, lançando mão da união das artes para que o conjunto adquira uma expressão arquitetônica mais generosa. Serão nestes espaços, onde o urbanista poderá restabelecer os centros da vida comunitária ativa e serão estes lugares que poderão disseminar a arte moderna, que até então vinha se fechando aos círculos reduzidos dos colecionadores de arte e nos museus. Essa ideia de Sert, de querer reaproximar o cotidiano a arte, é um aspecto bastante interessante na sua trajetória, pois no seu ponto de vista o cotidiano já estava dominado pelos anúncios comerciais e pelos estímulos de consumo, ao passo que as obras artísticas não exerciam sobre a sociedade o mesmo magnetismo visual, estando condenadas a pertencer à história lado-a-lado no “congelador” dos museus. Reunir pintura, escultura e arquitetura nos centros vivos das comunidades é a condição que o arquiteto provoca na busca pelo encontro de uma nova expressão urbanística.
Em outro texto, Josep Lluís Sert discorda da expressão que diz que a arquitetura é a “mãe de todas as artes”, revelando que a cidade é a verdadeira “mãe de todas as artes”, já que foi no seu âmbito onde nasceram. Sendo um produto de nossa cultura cívica – prosperando e se desenvolvendo na cidade – as artes já tiveram seu lugar na história quando desenvolvidas em sintonia com o homem e com o espaço construído. Sert chama de “divórcio” o desprendimento do homem com suas questões contemporâneas, o que levou a arte a fechar-se em si mesma sendo representada através de símbolos e códigos do passado, causando verdadeiro distanciamento entre as artes vivas do período e a própria arquitetura. O resultado foram os estilos e modismos que efetivaram verdadeira crise no espírito das artes no final do século XIX.
As estreitas relações de Sert com algumas personalidades do mundo artístico também são mostradas em alguns dos textos reunidos neste lançamento, o que confirma essa preocupação do arquiteto, em estar atento a produção artística contemporânea, lhe levando a promover uma arquitetura que se desenvolva em sintonia com o seu tempo e seja suporte de obras que aproximem o público em geral da arte.
Das conversas com grandes amigos, nos tempos de Paris nos finais da década de 1920 e princípios de 1930 (no mítico Café de Flore), como Fernand Léger, Sigfried Giedion, Alexander Calder, Joan Miró, entre outros, juntos tentavam imaginar como se poderiam reunir as artes e a arquitetura em lugares que não fossem nos grandes museus. Uma vez exilado nos EUA, as conversas seguiam com os recém-chegados europeus: Marc Chagall, André Breton, Yves Tanguy, Jaques Lipchitz, André Massom etc.
Aimé Maeght, o famoso marchand parisiense, logo após o término da II Guera Mundial leva a cabo um antigo sonho. Convoca a Sert, Joan Miró, Marc Chagall, Georges Braque, Alberto Giacometti e Eduardo Chillida, a criarem juntos, um grande espaço de encontro das artes, que veio a ser a Fundação Maeght, em Saint-Paul-de-Vence, na França. Arquiteto, pintores e escultores, refletiram juntos sobre a necessidade e o deleite da contemplação de obras de arte, construindo um lugar para interagir e absorver, muito mais que consumir arte passivamente.
Sert está entre os melhores representantes do pensamento arquitetônico de nossa época, refletindo em sua produção as inquietudes de um profissional que viveu em duros tempos de guerras e que presenciou o nascimento de um novo vocabulário no mundo da arquitetura. Durante sua trajetória, ousou não apenas defender esse novo vocabulário, mas renová-lo buscando equilibrar o ser humano entre paisagem, arquitetura e obras de arte.
Recebendo em seu exílio o reconhecimento através de obras que contribuíram para o avanço do raciocínio construtivo baseado no bem-estar coletivo e na liberação das artes do intelectualismo seletivo, tentou sempre elevar o cotidiano e o popular as mais altas esferas artísticas ao invés de rebaixar a arte ao popular, (um sintoma que foi difícil de evitar a partir dos anos 1970).
Sert ousou nada mais que ser contemporâneo, utilizando de suas relações com grandes artistas para divulgar seus ideais integradores e fazer chegar a todos uma nova concepção de cidade.
Foram épocas de artistas modernos, de arquitetos idealistas e mecenas sonhadores.
Foram outras épocas...
nota
1
El País, 18/09/2006. Declaração de Josep Maria Rovira, quando curador da exposição “Sert: Medio siglo de Arquitectura, 1928 – 1979”.
sobre o autor
Roberto Bottura é arquiteto e urbanista, formado pela PUC-Campinas e vive em Barcelona. É investigador no mestrado de Teoria e História da Arquitetura pela Universitat Politècnica de Catalunya onde estuda as relações entre Cidade, Poder e Arquitetura.