O trabalho de Sergio Bernardes (1919-2002) ainda não havia sido devidamente registrado e nem tampouco compreendido. Arquiteto e urbanista, piloto amador de corridas, candidato a prefeito da cidade do Rio de Janeiro, autor de diversos projetos premiados e publicados, inclusive em mídias de grande circulação, Sergio Bernardes foi uma figura proeminente na sociedade brasileira na segunda metade do século 20, sendo esquecido após o seu desaparecimento. Foi uma personalidade pública, conseqüência de sua origem familiar, de seu sucesso e importância profissionais, mas também de sua personalidade expansiva, envolvente e carismática. Como profissional, Sergio constituiu um escritório de sucesso que teve continuidade através de seu filho Cláudio Bernardes (1949-2001), e de seu neto Thiago Bernardes. Cláudio, e posteriormente, Thiago estabeleceram uma longa parceria com Paulo Jacobsen, à qual se incorporou recentemente Bernardo Jacobsen, filho de Paulo (Bernardes & Jacobsen). A partir da década de 1970, além da rotina do escritório de arquitetura (Sergio Bernardes Associado), Sergio dedicou-se ao Laboratório de Investigações Conceituais (LIC, 1978), voltado para as questões urbanísticas e territoriais, geopolíticas, ecológicas e até mesmo planetárias. O Rio de Janeiro, o Brasil e a relação do homem/planeta foram temas de seus macroprojetos.
A principal razão da ausência de publicações deve-se ao próprio arquiteto, que resistia à idéia porque, para ele, conceitos envelhecem muito rapidamente. Sergio Bernardes foi uma rara personalidade que viveu o seu presente, voltado para o futuro. Essa preocupação com o futuro e com o emprego de novas possibilidades foi central em sua obra, impulsionando-o através da experimentação por direções variadas, pouco ou ainda não trilhadas. Nessas capacidades de experimentação e de inovação residem a diferença fundamental de Bernardes em relação aos demais arquitetos brasileiros de sua geração.
A presente publicação foi organizada pela jornalista Kykah Bernardes, companheira de Sergio, e pelo escritor e curador Lauro Cavalcanti, autor do único livro publicado sobre o assunto: Sergio Bernardes: herói de uma tragédia moderna, pela Coleção Perfis do Rio da Relume Dumará em parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro (1). O prefácio de Kykah Bernardes apresenta o caráter afetivo e as controvérsias da realização do livro, considerando as circunstâncias precárias do acervo não tratado e não inventariado, por falta de recursos e de condições necessárias. A situação do acervo de Bernardes não é muito diferente da de outros arquitetos importantes no país. O descaso a que estão submetidos os acervos arquitetônicos públicos e privados, revelam os múltiplos aspectos da relação da nossa sociedade com a memória do país. Diante das dificuldades mencionadas, a realização deste livro pode ser encarada como um ato de coragem, que aponta o quanto ainda a ser feito no sentido da preservação e do estudo dessa obra.
Fora do padrão corrente das publicações monográficas sobre arquitetos importantes, que apresentam uma seleção de projetos de maneira descritiva, o presente livro tem uma abordagem reflexiva. Constitui uma tentativa de compreender as diversas incursões de Sergio Bernardes em graus de profundidade, em campos variados que se interceptam, como arquitetura e design, urbanismo e ecologia.
Sergio Bernardes faz parte de uma geração de arquitetos modernos que concilia a essência ideológica eminentemente humanista do movimento com a necessidade de renovação de suas premissas iniciais face às transformações do mundo. Bernardes foi co-protagonista destas transformações, na medida em que suas propostas experimentalistas são fruto da reflexão e do desejado diálogo com aquele mundo em transformação. Sua visão criativa não conhecia limites e suas invenções imputaram-lhe a alcunha de visionário, além de um rápido esquecimento. No entanto, a riqueza e profundidade de sua obra, alçam-no ao patamar de variados seus contemporâneos internacionais, como Buckminster Fuller e o grupo do Archigram. Projetos como os vulcões de Paris, para o concurso do Parc La Villette (1982), do qual Bernard Tschumi foi vencedor, apresentam uma dinâmica, que interrelaciona sociedade, paisagem natural, e tecnologia em igual dosagem. A análise aprofundada da obra de Sergio Bernardes explicita além da relação da arquitetura brasileira com o contexto internacional, mas os limites e as características nossa própria modernidade, sob o rígido controle da ditadura militar.
A publicação foi dividida em duas partes, os textos analíticos de articulistas, e textos do próprio arquiteto, contemplando de certa maneira o desejo do mesmo, de promover a reflexão em outros, a partir de suas próprias idéias. As análises dos autores abordam a múltipla obra de Bernardes. Como objeto, o livro é um belo exemplar, com capa dura, fonte em corpo legível, gramatura consistente e diagramação por cores vivas. A publicação é fartamente ilustrada, embora ainda insuficiente, em grande parte por originais que fazem parte do acervo do arquiteto, contendo ainda 7 projetos redesenhados pelo escritório Bernardes & Jacobsen Arquitetura.
A introdução de Lauro Cavalcanti sintetiza os temas tratados pelos outros autores. A fluidez e a clareza de escrita permitem que tanto o leitor leigo quanto o especializado contextualizem a obra e a trajetória de Bernardes como “uma radicalização e crítica do projeto moderno de mudança de realidade social por intermédio da arquitetura e do urbanismo”.
Farés-el-Dahdah aponta o pioneirismo de Sergio Bernardes no aeroporto projetado em 1958 para Brasília (não construído). Segundo o autor, a tipologia espacial empregada, terminal central e funções subterrâneas, pode ser considerada um protótipo para aeroportos projetados posteriormente, como no aeroporto Charles de Gaule-Roissy, em Paris, em 1967 por Paul Andreu.
Murillo Boabaid, companheiro de trabalho de Bernardes por mais de três décadas, apresenta descrições precisas dos projetos para o pavilhão da Companhia Siderúrgica Nacional no Parque Ibirapuera (1954), da Exposição Internacional de Bruxelas (1958), e do Pavilhão de São Cristóvão (1960), verdadeiras preciosidades da arquitetura moderna, que deram notoriedade à Bernardes.
Sergio Bernardes foi reconhecido inicialmente, nas décadas de 1950 e 1960, pelos projetos residenciais. André Correa do Lago analisa alguns destes projetos, pontuando as diferenças entre esses e de outros arquitetos que empregavam um vocabulário já consagrado com certos dispositivos formais como curvas, brise soleils e cobogós. Bernardes, ao contrário, dedicou-se à busca de novas soluções empregando estrutura e telhas metálicas, em correlação com as Case Study Houses, construídas no final dos anos 40 na Califórnia.
Mônica Paciello Vieira faz uma análise de dois de seus últimos projetos residenciais, dos quais o arquiteto participou de todas as etapas do processo. Batizadas por Bernardes de Palácio dos Reflexos e de Espaço dos Sete Mundos, estas residências evidenciam como o arquiteto transcende os aspectos meramente funcionais e estéticos da arquitetura, conceituando cada projeto de maneira singular, sempre atento ao Homem, à Natureza, e aos pequenos indivíduos que a habitam. Vieira ressalta ainda aspectos do processo de trabalho de Sergio Bernardes, do conhecimento da artesania e da industrialização, que se reafirmam na presença constante no canteiro de obras. Há traços mais pessoais e afetivos descritos, como a relação de amizade com o cliente e o respeito aos operários.
João Pedro Backheuser trata a obra arquitetônica de Bernardes a partir da noção de estrutura, apresentando projetos, nos quais a concepção estrutural é definidora. Analisa as estruturas dos projetos para o estádio do Corinthians (1968), a sede do Instituto Brasileiro do Café (1968), o Mausoléu Castelo Branco (1970) e a Escola Superior de Guerra (1960). Este entendimento de arquitetura como estrutura, é compartilhado por Ana Luiza Nobre, que apresenta uma análise da pesquisa e do emprego da estrutura metálica por Bernardes, demonstrando que se não foi o único a pensá-la nos idos de 1950, foi um dos principais. A autora contextualiza-o a partir de uma breve apresentação sobre a industrialização no país, considerando a dinâmica de seu embate com a produção industrial, seja pela lógica serial, seja o entusiasmo com que lida com os novos materiais, como o alumínio, o plástico e a fibra de vidro. A análise feita a partir do emprego das malhas, redes e cabos, constrói relações entre história e teoria, expondo por exemplo, relações entre raciocínio estrutural e espacialidade.
Outro ponto importante levantado é a relação entre Bernardes e Buckminster Fuller, arquiteto e designer norte-americano considerado visionário, desenvolvida no artigo de Rafael Cardoso. O autor reflete sobre Bernardes designer, não por inserção profissional, mas pelo “arquitudo” que era. Para colocar em prática as soluções totalizantes que propunha, Bernardes não podia deixar de se valer das ferramentas da produção de massa. Para os macroprojetos, seriam necessárias soluções na área de transportes, daí sua dedicação ao projeto, de bicicletas a aviões, além do design de móveis já comumente realizados pelos arquitetos modernos. No entanto, ao projetar uma cadeira Sergio permanece original, dedicando-se à reflexão sobre o sentar, ao invés de limitar-se apenas à investigação formal. Pensar o objeto de modo relacional, através de sistemas, tal como aponta Cardoso, é uma característica do arquiteto.
Guilherme Wisnik analisa os macroprojetos do urbanista, comparando-os às megaestruturas da época. Wisnik aponta também o caráter precursor e atual de Bernardes ao explicitar a dimensão política da questão ecológica, entre outros aspectos que só recentemente se tornaram questões urgentes e relevantes. Face às necessidades sócio-ambientais contemporâneas, os projetos territoriais de Sergio Bernardes, independentes de sua exeqüibilidade, nos fornecem um modelo de pensamento sistêmico.
A preocupação e paixão de Bernardes pela cidade do Rio de Janeiro é abordada por Alfredo Britto que apresenta, em linhas gerais, os mais de quarenta anos de dedicação do arquiteto a propor soluções para os problemas da cidade. Transporte público, despoluição da Lagoa Rodrigo de Freitas e da baía de Guanabara, desfavelização, reestruturação da área portuária, temas fundamentais deste século, já haviam sido abordados por Bernardes várias décadas antes.
Pelas questões levantadas, Lauro Cavalcanti e os articulistas apontam a importância da revisão atual da obra de Sergio Bernardes. Sua múltipla atuação permite reflexões sobre as fronteiras do campo da arquitetura, e do design, tal como invocam os textos de Nobre e Cardoso. Como livro contempla a parcela mais conhecida da vasta obra do arquiteto, ainda há muito a ser apresentado, sobretudo a produção a partir da década de 1980.
No momento atual, no qual passamos por uma crise de valores, a obra desbravadora de Sergio Bernardes pode nos fazer vislumbrar outros caminhos. Suas concepções alinham-no com o pensamento mais inovador dos idos dos anos 1960 aos 1980, e traduzem- se em possibilidades e conseqüências para a contemporaneidade.
nota
1
CAVALCANTI, Lauro Augusto de Paiva. Sergio Bernardes. Herói de uma tragédia moderna. Coleção Perfis do Rio. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2004 <www.vitruvius.com.br/pesquisa/bookshelf/book/703>.
sobre a autora
Maria Cristina Cabral é arquiteta e urbanista, doutora em História e professora adjunta do PROURB FAU UFRJ.