O livro Fordlândia: ascenção e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva do Prof. Greg Grandin foi escrito a partir de uma minuciosa pesquisa documental nos arquivos na Companhia Ford nos Estados Unidos e no Brasil. Embora não tenha o caráter acadêmico, o livro é representativo da linha editorial comum no mercado editorial norte-americano constituído por biografias e relatos não ficcionais. Além dos documentos, o autor realizou viagens a Amazônia, obteve entrevistas com brasileiros e americanos que viveram nas duas cidades mandadas construir por Henry Ford no final dos anos 1920 na localidade de Urucutituba, primeiro Fordlândia e depois Belterra, esta última distante 100 km de Santarém no Pará.
Talvez fosse o caso de se esperar um livro sem novidades para a análise do urbanismo das company towns na Amazônia. Pelo contrário, a sistematização de informações obtidas ao comparar as cidades de Ford da Amazônia com outras dezenas de cidades da companhia nos Estados Unidos revela as referências formais para a implantação de núcleos populacionais e a transposição de uma tipologia arquitetônica, que, até hoje, é considerada peculiar quando se visita o que restou das cidades na região de Santarém. Acredita-se que as informações da trajetória “urbanística” da empresa Ford na obra de Grandin pode dialogar com outras de caráter acadêmico sobre o tema das company towns construídas em décadas posteriores na Amazônia (1). Os trabalhos acadêmicos produzidos sobre o tema têm enfatizado o quanto a gestão das company towns revela o caráter segregacionista da empreitada industrial e utilização da cidade como parte da produção capitalista, logo, a experiência de Fordlândia é relativamente pioneira na forma urbanística, mas já apresenta o que estava por vir nas company towns da Amazônia (2).
O objetivo de Ford com a instalação das cidades era construir as bases para que os gerentes e trabalhadores na plantação de seringueiras pudessem produzir borracha para abastecer suas linhas de produção nos EUA, uma forma de se livrar dos preços praticados pelos asiáticos. Para a economia combalida do estado do Pará a iniciativa de Ford foi cercada de imensa expectativa de retorno para a Amazônia, pelo menos de parte do fausto da época de ouro da borracha para a região (1858-1912). O fato marcante e bastante explorado no livro, diferentemente da literatura sobre o período é a transferência (ou roubo) de mudas por Henry Wickham no final da década de 1870 para os Reais Jardins Botânicos de Londres e depois para a Ásia, seguida pela baixa no preço internacional e o início das pesquisas para a produção de borracha sintética. A narrativa histórica mostra o quanto a oportunidade de reerguer a economia de exportação do látex na Amazônia torna-se objeto de negociações envolvendo a companhia Ford, o governo do Pará e o governo federal brasileiro por meio de intermediários políticos e científicos envolvidos na viabilidade do projeto por meio da concessão de um milhão de hectares e renúncia fiscal. Por se tratar da empresa-símbolo da fase do capitalismo comercial, o autor articula a criação e as dificuldades encontradas com a manutenção das cidades com a personalidade de Ford e suas idéias sobre a sociedade e negócios. Entre inúmeros erros e poucos acertos as cidades foram construídas, ocupadas e por fim, reconhecidas como inviáveis, assim como a idéia de plantar seringueiras em substituição a coleta do látex de árvores nativas.
O livro é divido em três partes. Na primeira, o autor trata dos acontecimentos que antecedem a iniciativa de Ford em construir na Amazônia, explora seu temperamento difícil e narra fatos envolvidos na construção de Fordville, sua primeira experiência “urbanística” nos EUA. Na segunda parte estão presentes os bastidores do encontro de interesses entre brasileiros e americanos em torno da idéia de construir na Amazônia uma cidade empresa onde além da exploração da borracha, outros produtos como a madeira e produtos não madeireiros teriam competido para que a empreitada de Ford se tornasse uma realidade. Na terceira e última parte, o autor utiliza-se principalmente do material de suas entrevistas para fazer um confronto entre os informantes que viveram em Fordlandia e em Belterra para concluir o livro com um balanço comparativo do que foi Dearborn nos EUA e o que foi Belterra no Brasil. Por fim, o autor usa o fato de Ford jamais ter vindo ao Brasil, diferentemente de Getúlio Vargas que esteve em Belterra para sugerir que, assim como a espera por Ford, a região ainda espera pelo desenvolvimento.
As dificuldades de construir em meio a selva amazônica não eram os únicos desafios, em se tratando de uma company town, o livro narra a segregação do espaço ocupado pela a gerência e os bairros dos trabalhadores. A tensão constante em torno de direitos trabalhistas funciona no livro como fio condutor para a análise urbanística. Segundo, o livro as idéias de Ford acerca de vantagens trabalhistas em termos salariais como forma de evitar a organização sindical já vinham de longa data. Daí a criação de cidades para os trabalhadores, forjar elementos que passaram a ser associados com a cunhagem do termo fordismo, ultrapassando a relação com o pioneirismo da linha de montagem e o controle do tempo para a montagem de carros.
A abordagem da cidade empresa no livro é feita com a composição das idéias de Ford sobre sua utilidade para a produção industrial tanto como local de moradia como também sua função social para as comunidades no entorno. A construção dos bairros residenciais dos americanos e dos brasileiros em Fordlândia é relacionada ao seu perfil modernizador e capitalista de Henry Ford. Os métodos utilizados pelo industrial para criar a companhia nos EUA e suas idéias reformadoras – tido como um pacifista em seu país, defensor da sociedade global sem guerras, antissemita, contra a bajulação do governo– são tratados ora como contraponto, ora como parte constituinte da instalação das cidades e sobre a conduta de seus gerentes e representantes. O autor associa da arquitetura do estilo Cape Cod das casas com águas furtadas e coberturas de duas águas a práticas de jardinagens e ações contra o consumo de leite de vaca como parte do gerenciamento da cidade.
As company towns de Ford antes da experiência amazônica de Fordlândia foram laboratórios para que o urbanismo funcionasse como parte de uma utopia de produção e consumo capitalista, cada morador trabalhador era responsável por um modo de vida fordista e industrial onde deveria seguir uma norma de conduta e cuidar do ambiente doméstico e urbano. Enquanto as company towns eram criadas nos EUA, o “controle” da “sociedade” ou da comunidade de trabalhadores atraídos por Ford esteve constantemente sob as visitas feitas pelo Departamento de Sociologia da empresa no afã de controlar o álcool e o adultério no interior das company towns e propriedades de Ford.
A cidade funcionava como meio para que a empresa exercesse ações de controle da vida dos seus trabalhadores. Para Ford, a vida dos empregados estava tão imbricada com a empresa que o controle exercido pelos gerentes deveria ir além das horas de trabalho, havia um serviço social que visitava os moradores para aferir e prevenir casos de alcoolismo, plantio de flores e legumes nos jardins e quintais nas cidades da empresa nos EUA e no Brasil. Um verdadeiro código moral era parte integrante da gestão da fábrica e das cidades de Ford.
No Brasil, ao mesmo tempo em que ocorriam experiências de manipulação genética (até certo ponto mostradas como amadoras devido ao descrédito de Ford para com a ciência), o autor mostra que há uma contraposição entre a produtividade, representada pelas frentes de trabalho ocupadas em abrir áreas para instalação dos seringais e a exploração da madeira e a gestão da cidade. O grupo gestor liderado por vários funcionários de confiança de Ford, é caracterizada por uma posição de mediação constante entre os trabalhadores ocupados da construção de edificações, e funcionamento do hospital da escola e de manutenção de serviços sanitários.
Quando da escolha da referência tipológica para a construção de Belterra optou-se pelo mesmo mandado construir em sua cidade Irma de Alberta (hoje um campo experimental da Universidade de Michigan). Belterra parecia uma cidade do Meio Oeste com uma praça, Modelos T e A rodavam em suas ruas retas, ladeadas por hidrantes anti-incêndio, calcadas, postes de iluminação e bangalôs verdes e brancos dos trabalhadores, com quintais e jardins bem cuidados. Onde o centro da cidade teria que ser ocupado por estabelecimentos comerciais e o layout das áreas residenciais deveria ser quadriculado. Apesar de Ford ter sido contemplado com uma concessão de terra de 1 milhão de hectares, dos quais era obrigado a plantar 400 hectares, o que nunca ocorreu, a escolha do local para a instalação da cidade não foi feito de maneira exitosa. A presença do rio e da floresta não era referência para a cidade e para a plantação. O autor relata os erros cometidos para os dois objetivos. Para a cidade não havia condição de acesso pelo rio, daí a primeira cidade ter sido abandonada após um incidente envolvendo os trabalhadores. Quanto a escolha da área para plantação, há evidências de que Ford não levava a sério a necessidade de contratar biólogos para instruir o manejo necessário para que o projeto fosse efetivado.
Há paralelos entre Alberta e Belterra. A primeira construída A exploração madeireira não era uma novidade para Ford. A construção de outras cidades nos EUA, como é o caso de Dearborn trouxe, assim como Fordlândia e Belterra, a possibilidade de exploração de madeira para as indústrias Ford. Os modelos de carros dos anos 20 e 30 continham peças em madeira, moldadas em espécies obtidas das florestas no entorno das suas cidades.
Um dos pontos abordados no livro diz respeito a um aspecto ligado a decisão de construção de cidades novas: partir ou não do zero em termos da pré-existência de comunidades organizadas em pontos específicos do território. Embora haja relatos de que Ford era contra a idéia de construir em áreas sem ocupação anterior, após as primeiras experiências com o “aproveitamento” de comunidades, a empresa passa a construir em locais onde não havia absolutamente nada. As razões apontadas pelo autor referem-se às dificuldades encontradas pela empresa em razão do alto custo pelo fornecimento de serviços médicos e educacionais que passam a substituir o poder político local. Para os recebedores torna-se uma situação bastante interessante. Especialmente na Amazônia dos anos 1920 e 1930, quando levas de nordestinos deslocam-se em busca de emprego. Os hospitais de Fordlândia e Belterra eram considerados os mais equipados da região.
A pesquisa acadêmica sobre company towns tem se constituído problema recorrente. Há posicionamentos sobre a gestão dos espaços urbanos, dos impactos causados pelos próprios projetos econômicos envolvidos na instalação das plantas industriais e correlacionados com a localização e morfologia das cidades, assim como uma discussão sobre o envolvimento político das cidades como instrumentos de ocupação regional. Ao abordar Fordlândia e Belterra por meio de uma série de posicionamentos sobre a sociedade explícitos de Ford, Grandin sugere que diferentemente de outras cidades, os pressupostos já eram claros e diferentemente, se assim for possível fazer um paralelo, não estavam ocultos ou embutidos em um discurso desenvolvimentista como é o caso de Barcarena, Serra do Navio ou Carajás. A promoção dessas cidades segue condicionantes voltados ao potencial energético da Amazônia, principalmente o hidrelétrico. Porém, ao incluirmos a argumentação de Grandin neste fluxo de idéias, estaríamos, em pleno anos 1940s, antes das mudanças do comando político no Brasil e do “politicamente correto” no mundo, ou seja, as exigências ideológicas impossibilitam o tratamento de forma tão explícita questões que, por mais que estejam presentes nos debates dos anos 1990s na Amazônia, já estavam colocadas na cooperação entre Ford e o Estado brasileiro. É por exemplo a queimada da floresta, a caça, a depredação em nome da ocupação necessária da floresta. Atitudes “normais” nos tempos de Fordlândia e Belterra. Hoje, as company towns construídas por seis décadas na Amazônia são evidências do acúmulo de inadequações cometidas na tentativa de ocupar a floresta.
notas
1
Após a experiência de Fordândia e Belterra seguem outros exemplos, caso de Vila Amazonas e Vila Serra do Navio no Amapá (ambas ligadas a Industria e Comércio de Minérios – Icomi), Vila Cachoeirinha em Rondônia (ligada a Mineração Oriente S.A.). No Amazonas foram instaladas Vila de Pitinga (ligada a Empresa de Mineração Taboca do Grupo Paranapanema) e Vila de Balbina (das Centrais Elétricas Norte do Brasil – Eletronorte). No Pará há o maior número de cidades empresa: Monte Dourado (Projeto Jari), Núcleo Urbano Carajás (Companhia Vale do Rio Doce), Núcleo Urbano de Carajás (Eletronorte), Porto Trombetas (ligada a Mineração Rio do Norte S.A.) e Vila dos Cabanos (ligada a Albras Alunorte). Cf. TRINDADE JR., Saint-Clair; ROCHA, Gilberto. Cidade e empresa na Amazônia: gestão do território e desenvolvimento local. Belém, Paka-tatu. 2002.
2
Cf. RODRIGUES, Roberta. Company Towns e empresas de extração e transformação mineral na Amazônia Oriental. Especificidades, processos e transformações de um modelo urbanístico. Dissertação de mestrado. Belém, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, 2001; VICENTINI, Yara. Cidade e história na Amazônia. São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1994.
sobre o autor
José Júlio Lima é arquiteto (UFPa, 1986), mestre em engenharia (Univ. de Fukui, Japão, 1991), mestre em Desenho Urbano (Oxford Brookes University, 1994) e PhD (Oxford Brookes University, 2000). Foi secretário de Planejamento do Governo do Estado do Pará de 2007 a 2010. Atualmente é professor associado I da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPa e coordena o Laboratório Cidades na Amazônia. É pesquisador da ocupação urbana, desenho urbano e planejamento urbano e regional na Amazônia.