A herança do século XX
Há cinquenta anos atrás era possível imaginar que logo no início do século XXI iríamos nos distanciar definitivamente dos contrassensos e equívocos do século XX. A história do mundo iniciaria uma nova etapa em que a sociedade — ainda que mais complexa e numerosa —, solucionaria os erros políticos e econômicos que marcaram a evolução do capitalismo desde o século XIX, e do socialismo no século XX. Imaginávamos que seria possível atingir um equilíbrio entre sociedade e natureza; entre interesses nacionais e universais; entre etnias e crenças religiosas; entre individuo e comunidade. Infelizmente, isto não ocorreu; a radicalização das contradições locais e globais cada vez mais acentuadas preanuncia um futuro sombrio e duvidoso. Os valores racionais da herança humanista da Ilustração estão ainda submetidos à irracionalidade da religião; os princípios éticos e morais fundamentais para a evolução da cultura ocidental foram marginalizados pela voracidade econômica de pequenos grupos de poder que dominam o mundo atual, e que provavelmente não hesitarão em assumir posições insensatas que podem até deflagrar uma nova guerra de proporções planetárias. As contradições nacionais europeias tiveram como consequência a Primeira Grande Guerra (1914-18); A pretensão do nazi-fascista de dominar e recriar o mundo teve como consequência a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Por sorte, o embate entre capitalismo e socialismo, na Guerra Fria, que resultou no fim do sistema socialista no continente europeu, não teve consequências dramáticas. No entanto, hoje com as tensões entre Ocidente e Oriente; em particular com os países islâmicos — as ameaças de Ahmadinejad, presidente do Iran, contra Israel e o tema angustiante da bomba atômica —; estamos diante de condições que poderiam deflagrar uma terceira Guerra Mundial.
Daí que o tema da arquitetura representativa de um período de guerra não é tão alheio a nossa realidade cotidiana. Primeiro, devemos considerar a violência urbana e o desenvolvimento de sistema de proteção, questão que começou a ser tratada na segunda metade do século passado – lembremos o livro Defensible Space de Oscar Newman –, com a difusão de grades nos prédios e nos condomínios; guaritas, câmeras de vigilância. Segundo, com o atentado as torres do WTC de Nova York em 2001; o espaço de vida social se transformou em um contexto mundial vigiado e militarizado – especialmente nos grandes prédios públicos e principalmente nos aeroportos –; na guerra contra o terrorismo e o narcotráfico, desenvolvida basicamente pelos interesses econômicos dos países do Primeiro Mundo. Neste sentido, a temática desenvolvida por Cohen pesquisando a arquitetura elaborada no período da Segunda Guerra não está distante, apesar do tempo transcorrido e curiosamente pouco conhecida. Chamam a atenção os vazios que ainda existem na historiografia da arquitetura moderna, como ocorre com o período 1939-1945. Em geral, as histórias são elaboradas sobre os movimentos artísticos e estéticos, ou sobre as principais obras realizadas pelos “mestres”, na etapa estudada por Cohen foram executadas algumas poucas obras merecedoras de serem citadas nas histórias canônicas: os pavilhões de Brasil, Finlândia, Dinamarca e Suécia, na Feira Mundial de Nova York em 1939; a estrutura leve de concreto do hangar de Orbetello de Pier Luigi Nervi (1940); o Campus do ITT em Chicago de Mies van der Rohe (1940); o conjunto de prédios da EUR 42 em Roma de Adalberto Libera e Marcello Piacentini (1940-42). Mais significativa foi a produção teórica elaborada nestes anos: em 1941 Sigfried Giedion publica Space, Time and Architecture; José Luis Sert edita em 1942 Can Our Cities Survive; em 1943 Le Corbusier difunde la Charte d´Athénes e em 1944 o livro Les Trois Établissements Humaines; Bruno Zevi escreve em 1945 Verso un´architettura organica.
Pode parecer um paradoxo, mas, no entanto, nos anos em que ocorreram as maiores destruições da história da Humanidade — lembremos o arrasamento das cidades de Guernica na Espanha, Coventry na Inglaterra, Rotterdam na Holanda, Varsóvia na Polônia, Hamburgo, Berlim e Dresden na Alemanha, e Hiroshima e Nagasaki no Japão —; foram concebidos sistemas construtivos criativos e inovadores e desenvolvidos os novos materiais que marcariam a evolução da arquitetura na segunda metade do século XX. Neste momento atual de crise econômica em que se resgata uma arquitetura baseada na tese de “mais com menos” ou “melhor com menos” — em que também se rejeita a arquitetura cenográfica “de autor” —; podemos valorizar as contribuições dos profissionais deste período que não privilegiavam os conteúdos estéticos sobre os atributos técnicos e construtivos. Daí que o livro permite uma valoração diferente do Movimento Moderno, não assumido como uma tendência estética, prolongada no International Style dos anos cinqüenta e demonizado pela visão “orgânica” de Bruno Zevi e pelo posterior regionalismo. Naqueles anos aconteceu um trabalho sério, baseado nas pesquisas sobre os componentes construtivos e novos materiais visando criar uma arquitetura com uma significação cultural distinta: uma escala de produção industrial que acabou por se impor com o término do conflito.
Um historiador engajado
Jean-Louis Cohen (1949), formado arquiteto em Paris e diretor do Institut Français d´Architecture (1998-2003), é na atualidade professor de história da arquitetura no Instituto de Belas Artes na New York University. De origem judaica, ele pertence à geração dourada dos intelectuais franceses que no período pós-guerra se identificaram com o marxismo e a Revolução de Outubro, antes da denúncia dos crimes cometidos por Stalin na URSS. Podemos considerá-lo como um herdeiro da linha desenvolvida por, Spiro Kostof, Manfredo Tafuri, e Kenneth Frampton. Na sua interpretação heterodoxa da história moderna vejo uma certa semelhança e um paralelismo entre ele e o historiador inglês Tony Judt (1948-2010); na visão cosmopolita e engajada com uma esquerda humanista, na procura dos temas “marginais” que evidenciam a existência de fatos, sempre esquecidos, que não aparece com relevância nos tratados canônicos. Na visão de Judt sobre a história da Europa a partir da Segunda Guerra Mundial, são aprofundadas as contradições surgidas entre a URSS e os países ocidentais na organização do novo mapa político; o desenvolvimento da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, com as suas consequências posteriores quando surgem os novos países com o fim do bloco comunista; assim como a dura e difícil reinserção dos judeus nas estruturas sociais em que tinham vivido antes do Holocausto.
As pesquisas de Cohen têm uma latitude que abrange desde a história geral da arquitetura e do urbanismo, até o estudo especializado de temas pontuais. Por um lado escreveu um panorama da arquitetura nos países desenvolvidos – The Future of Architecture Since 1889 –, e ministrou um curso em várias universidades – também no Brasil em 2007, no périplo entre São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador –, sobre o desenvolvimento urbanístico do século XX; ressaltando a configuração, as transformações e as contradições das principais cidades americanas e européias, tanto desde o ponto de vista formal e espacial, quanto dos condicionantes sociais e econômicos. Por outro, aprofundou estudos na obra de André Lurçat e de Le Corbusier, investigando a complexa e contraditória presença do Mestre na URSS nos anos trinta, em Le Corbusier and the Mystique of the URSS. Theories and Projects for Moscow (1928-1936). Também com a ex-esposa e pesquisadora Monique Eleb, pesquisou a arquitetura colonial africana, no livro Casablanca. Colonial Myths and Architectural Ventures. Também, como todos nós, teve que sucumbir na promoção e valorização da obra individual das figuras ilustres do Jet Set internacional, ao escrever monografias sobre Le Corbusier, Frank Gehry e John Lautner. Sem esquecer o original ensaio com uma interpretação critica das obras de Oscar Niemeyer construídas fora do Brasil. Mas sem dúvida, este novo livro constitui uma obra excepcional pelas revelações obtidas na pesquisa detalhada de um período pouco conhecido da história da arquitetura moderna. O material elaborado foi inicialmente apresentado na exposição no Canadian Centre of Architecture (CCA) em Montreal no ano 2011, e ainda será exibido no MAXXI em Roma no ano 2012.
Os sacrifícios pessoais
Um dos pontos mais atrativos e apaixonantes do livro é a descoberta das histórias pessoais dos arquitetos de renome que atuaram antes e depois da guerra, desaparecidos como em um grande vazio: um hiato silencioso da vida pessoal de cada um. É bem conhecida a migração dos alemães para os Estados Unidos – Walter Gropius, Marcel Breuer, Lázlo Moholy Nagy, Erich Mendelsohn, José Luis Sert –, mas pouco se sabia de outros profissionais destacados. Na guerra civil da Espanha, Luis Lacasa e Josep Torres-Clavé, participaram na defesa da República: o primeiro teve que migrar para URSS, e ficou definitivamente em Moscou; e o segundo morreu em 1939 na defesa da cidade de Lerida (local em que minha família morou a até 1492). Na Itália, do lado de Mussolini, estiveram na guerra: Luigi Moretti – autor do conjunto de Watergate em Washington –, Marco Zanuso e Giuseppe Terragni, soldado na frente russa; e Cesare Valle que elaborou o plano diretor de Adis Abeba na Etiópia. Ernesto E. Rogers, de origem judaica teve que fugir na Suiça; mas Bruno Zevi foi membro do exercito inglês na invasão da França; Gian Luigi Banfi e Giuseppe Pagano morreram nos campos de concentração e Ludovico Belgioioso (sócio de Rogers), conseguiu voltar de Mauthausen. Na Resistência contra a ocupação nazista, participaram Carlo Melograni, Giuseppe Campos Venuti e Lina Bo, entre outros.
Na França Le Corbusier e Pierre Jeanneret romperam por conta da participação do primeiro no governo fascista de Vichy. Jeanneret participou da Resistência com Jean Prouvé. Também apoiaram Vichy, Augusto Perret e Michel Roux-Spitz. André Lurçat foi preso e Alexander Persitz deportado para Auschwitz. Szymon Syrkus, conhecido arquiteto do Movimento Moderno polonês também foi enviado para Auschwitz, e teve que trabalhar na construção do campo; sua mulher, Helena Syrkus teve participação ativa na resistência em Varsóvia. No Japão, Kunio Maekawa, que foi estagiário com Le Corbusier e Antonin Raymond, tiveram um escritório em Xangai durante a ocupação japonesa da China. Nos Estados Unidos, o ambíguo Philip Johnson, admirador dos nazistas, visitou Polônia após a invasão do exército de Hitler. A participação de Bruce Goff e de Paul Rudolph no exército e na marinha norte-americana influiu nas obras que eles realizariam depois da guerra.
Na Alemanha, a situação foi mais complicada, já que a maioria dos profissionais teve que colaborar com as demandas nazistas. Além dos profissionais já citados que migraram para os Estados Unidos, Ernst May autor dos conjuntos habitacionais de Frankfurt, refugiou-se na Rodesia. E ficaram no país entre muitos outros, Friedrich Tamms, Herbert Rimpl, Ernst Neufert; Sergius Ruegenberg que tinha trabalhado com Mies van der Rohe, e colaborou com a Luftwaffe; e Fritz Ertl, aluno do Bauhaus, quem projetou a primeira unidade do campo de Auschwitz. Albert Speer, autor das obras megalomaníacas de Hitler, recebeu um tratamento especial no julgamento de Nuremberg pelo fato de ser, ao mesmo tempo, o responsável pela produção industrial baseada no trabalho escravo dos habitantes dos países ocupados e dos presos nos campos de concentração, sendo condenada a prisão perpétua pelos Aliados.
Os paradoxos da guerra
Como explica Cohen, a Segunda Guerra Mundial foi uma guerra essencialmente aérea e urbana, paralelamente as baixas dos soldados nas batalhas, nas cidades destruídas da Europa um número muito grande de civis morreram: isto teve início em 1937 em Guernica, como teste do sistema de carpet-bombing inicialmente aplicado pelos alemães, e posteriormente também empregado pelos Aliados durante a guerra. Foi injusto o bombardeio em massa ao centro da cidade de Dresden, a poucas semanas do fim da guerra; o longo cerco dos alemães à cidade de Leningrado; a batalha de Stalingrado, combatida no espaço urbano; a destruição de Varsóvia pelos nazistas, e o lançamento pelos americanos das duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.
Desde a Primeira Grande Guerra surgiram novos temas associados com a questão das defesas territoriais, que com o desenvolvimento da aviação, e a movimentação rápida dos exércitos ficaram totalmente obsoletas. De todo modo, estas obras tiveram como resultados extensas e originais paisagens nas áreas de fronteira que ainda hoje, segundo Reyner Banham, tem um valor plástico e escultórico inusitado, pela originalidade das construções das casamatas e refúgios, estruturas que são mais interessantes que os anônimos muros erigidos hoje nas fronteiras dos Estados Unidos e de Israel. Lembremos a Línha Maginot na França; a Línha Siegfrid na Alemanha, de 560 km de extensão; e a mais complexa e extensa: a “Muralha Atlântica”, de 2.685 km, a maior do século XX, que utilizou 15 mil elementos de concreto armado e 45 milhões de toneladas de material, com a participação do trabalho escravo de 1.5 milhões de pessoas. Esforço inútil para barrar a invasão dos Aliados na Normandia em 1944, que ocorreu onde menos os alemães a esperavam. Também indestrutíveis eram as gigantescas estruturas de concreto armado para proteger as bases de submarinos, localizadas no Báltico e no Canal da Mancha.
Mais úteis foram as grandes obras desenvolvidas nos Estados Unidos e na Rússia: a concentração de todos os ministérios militares promovida por Roosevelt em Washington no monumental edifício do Pentágono – de 46 mil m2, com uma estrutura de concreto armado de 41.492 colunas, 26 km de corredores e um estacionamento externo para 10 mil carros –; símbolo universal do poder militar norte-americano, uma fortaleza que Bin Laden tentou, mas não conseguiu destruir. A criação da nova cidade secreta de Oak Ridge no Tennessee (1942) de 70 mil habitantes, projetada pelo escritório de Skidmore, Owings & Merrill (SOM) de Chicago, seguindo os parâmetros de projeto empregado nas obras do Tennessee Valley Authority (TVA), dedicada ás pesquisas do Manhattan Project para a criação da bomba atômica. Menos pretensiosa, formalmente, foi a expansão da cidade de Magnitogorsk na URSS para acompanhar o desenvolvimento da indústria de guerra, com os novos bairros projetados por Andrei Ol, Evgueni Levinson e Georgui Simonov.
Os capítulos mais originais do livro são aqueles dedicados a defesa e proteção das cidades, com a construção dos refúgios e as inovadoras invenções dos sistemas de camuflagem, com uma significativa participação de arquitetos, artistas e designers. Primeiro foi o tema da proteção (ou destruição) dos monumentos históricos. Os alemães, nos ataques as cidades inglesas, procuravam localizar nos guias turísticas Baedeker os principais monumentos para destrui-los e assim abalar os sentimentos patrióticos locais. Os americanos ao contrário, procuraram proteger os edifícios históricos das cidades européias, e criaram uma comissão de assessoramento em Washington, que contou com a colaboração de prestigiosos críticos e historiadores da arte européia: entre eles, Erwin Panofsky, Paul Frankl, Lionello Venturi, Sigfried Giedion.
As dificuldades econômicas e técnicas dos principais países beligerantes, não permitiram elaborar obras significativas para a proteção da população civil das cidades bombardeadas; e a solução mais imediata foi utilizar as instalações do metrô, em Londres e em Moscou. Mas também foram projetados diversos tipos de refúgios, tanto individuais, quanto coletivos nas áreas próximas aos conjuntos residenciais. Em Londres foi desenvolvido um projeto original elaborado pelo grupo Tecton – semelhante a piscina dos pingüins de Berthold Lubetkin –, com a colaboração do engenheiro Ove Arup, que permitia a proteção subterrânea de 7.500 pessoas e também de carros que desciam por uma rampa helicoidal. Foi significativa a participação de Gordon Cullen, autor dos expressivos desenhos de um manual que explicava como se proteger dos bombardeios: Design, construction and everyday life in anti-aircraft shelters.
Desde a Primeira Grande Guerra, o tema da camuflagem de barcos, aviões e veículos terrestres foi uma das principais preocupações dos militares. Ficaram famosas as pinturas de Norman Wilkinson sobre os barcos de guerra ingleses, que pareciam quadros abstratos. O mesmo aconteceu com os carros franceses, que Pablo Picasso e Gertrude Stein acharam que naquele desfile militar inusitado em Paris a pintura cubista estava presente. Por isso, Salvador Dalí, nos anos quarenta, elaborou a “teoria radical do invisível” sobre a camuflagem, que segundo ele, devia ser surrealista e “dalista”. Mais complexo foi o estudo sobre o ocultamento de prédios e cidades, o que exigiu a participação de arquitetos e designers na elaboração de soluções inéditas e inovadoras. A criação de cidades falsas começou na Primeira Grande Guerra quando o engenheiro elétrico Fernando Jacopozzi, criou um sistema de luzes no subúrbio de Paris que simulava a existência do centro da cidade. Também foi criada uma simulação do centro de Hamburgo; uma cobertura gigante sobre o Monastério de Smolny em Leningrado, de Nikolai Baranov, e fábricas subterrâneas nos Estados Unidos e Alemanha, ocultas debaixo de uma falsa paisagem bucólica. O fato mais emocionante foi a participação dos especialistas formados na Bauhaus, e o compromisso assumido pelas instituições universitárias norte-americanas na elaboração dos projetos e manuais, como o Pratt Institute – que publicou o Industrial Camouflage Manual de Konrad F. Wittmann – e a Grand Central School of Art em Nova York; a universidade de Princeton, e a School of Design em Chicago, que apoiaram a criação de sistemas complexos de camuflagem para pessoas, objetos e prédios.
Nas pesquisas se destacaram Norman Bel Gueddes, Percival Goodman, Percy Johnson-Marshall, Jean Labatut, Arshile Gorky, Lázlo Moholy Nagy e György Kepes, assim como o teórico da Gestalt, Wolfgang Kölher. Sem esquecer que os militares se aproximaram dos estúdios de Hollywood para obter propostas de camuflagem para as grandes fábricas de aviões situadas na costa do Pacífico. Na Itália, Paolo Soleri jovem aluno do Politécnico de Turim, sobresaiu neste tema; e na Inglaterra se difundiram os estudos cromáticos de Hugh Casson para o ocultamento de instalações militares. É também um episódio original a iniciativa da força aérea norte-americana em promover estudos do tipo das construções civis e industriais nas cidades da Alemanha e do Japão, na escala real, para verificar os materiais ali utilizados e comprovar a eficácia da ação das bombas idealizadas para destrui-las. Assim com a ajuda dos especialistas que moraram naqueles países, construíram conjuntos de casas e armazéns, para verificar o comportamento real durante um bombardeio. Participaram deste projeto Konrad Wachsmann e Erich Mendelsohn, o historiador de arquitetura Paul Zucker e o designer de móveis Hans Knoll; no caso do Japão, o arquiteto Antonin Raymond, que havia residido quase duas décadas em Tókio, teve participação importante.
Produção, tecnologia e habitat
Ao longo dos cinco anos da guerra, os principais países que participaram no conflito bélico dedicaram a maior parte do esforço produtivo orientando-o para a fabricação de armamentos, esforço que ocupava um grande percentual da população ativa: 37% na Alemanha, 45% na Inglaterra, 54% na URSS, 35% nos EEUU. Criaram-se grandes conjuntos industriais para produzir navios, aviões, tanques, bombas e produtos químicos. Os alemães os distribuíram também nos territórios anexados da Polônia e Checoslováquia, e nelas utilizavam a mão de obra escrava dos habitantes desses países. Por isso eles integraram no sistema industrial os campos de concentração, cujo exemplo mais conhecido foi Auschwitz, grande centro químico da I.G. Farben. Em uma das fábricas, trabalhavam 135 mil prisioneiros, e quando começou a matança dos judeus, ali se construíram as câmaras de gás e os crematórios onde foram assassinados 1.1 milhões de pessoas. Na fábrica secreta subterrânea dos mísseis V1 e V2 em Peenemünde, no Mar Báltico, trabalharam 60 mil prisioneiros, 20 mil dos quais morreram trabalhando.
O arquiteto Albert Kahn, de origem alemã e radicado nos Estados Unidos desde 1911, foi o grande protagonista da arquitetura industrial norte-americana, tanto com as primeiras fábricas em Detroit, idealizadas antes da guerra, quanto nas gigantescas instalações projetadas especificamente para a produção militar. Nos anos trinta, tinha sido convidado pela URSS para construir várias instalações industriais, desenvolvidas com a colaboração de Andrei Burov, também assistente de Le Corbusier. Seu escritório passou de 150 técnicos a 600 durante os anos de guerra. Entre as obras principais, citemos a Chrysler Tank Arsenal, em Warren Township, Michigan que produziu 25 mil tanques; e a Ford Motors Company Airplane Parts Manufacturing Building, na qual era produzido um avião por hora e empregava 100 mil trabalhadores. Eram instalações “minimalistas” com estruturas moduladas de aço e extensas fachadas de vidro, com o purismo expressivo miesiano.
A guerra promoveu as pesquisas sobre novos materiais, com o objetivo de criar objetos mais leves e econômicos que pudessem ser produzidos em série e que fossem capazes de substituir os materiais necessários para a indústria da guerra. Surgiram o Rosiltex, o Isoflex, Onazote, Fiberglass, Cemesto, Populit, Plexiglas, Thiokol, Neoprene, Buna, entre outros. Outro tema importante foi o desenvolvimento do conceito de padrão (standard) e a normatização de medidas para a produção industrial, fato de significativa importância para a Alemanha, que desejava estabelecer normas de produção e de construção nos países ocupados. Além das já consagradas Normas DIN (Deutsches Institut Für Normung), foram adicionadas as Normas Todt, que os aliados publicaram em 1945 com o Handbook of the Organization Todt, devido ao seu rigor e eficiência.
Neste processo ocorreram mudanças definitivas nos projetos de móveis e de equipamentos para as habitações reduzindo-os a sua expressão mínima; o que obrigou a ser abandonadas as pesadas decorações vitorianas tão desejadas pela burguesia anglo-saxônica. Daí o apoio a esta mudança pelo crítico de arte Herbert Read e pelo historiador de arquitetura Nikolaus Pevsner, que apregoaram a difusão de uma nova estética doméstica na revista inglesa Architectural Review. Dinâmica que se espalhou na Europa e nos Estados Unidos; em particular associada ao novo uso industrial da madeira. Lázlo Moholy Nagy desenharia um colchão em que as peças de aço são substituídas por elementos de madeira; o casal de Charles e Ray Eames desenvolvem novas técnicas no uso do plywood; e surgem projetos de cadeiras de madeira do francês Jean Prouvé, do italiano Carlo Mollino e do finlandês Ilmari Tapiovaara. Mobiliário doméstico que em 1942 foi apresentado pelo MoMA em Nova York, na exposição Useful Objects in Wartime.
A maior contribuição deste dramático qüinqüênio foi o desenvolvimento de uma arquitetura “racional”, não associada à estética das caixas brancas, mas baseada em sérios e rigorosos princípios econômicos, técnicos e funcionais. Aqui devia aplicar-se com intensidade a tese miesiana de produzir “mais com menos”, ou as propostas do CIAM do existenzminimum. Isto foi interpretado pelos nazistas com uma crueldade e desumanidade nunca antes vistas. E o instrumento para criar o sistema habitacional dos campos de concentração – quase um armazém de seres humanos cujo espaço das barracas era limitado à dimensão de um espaço mínimo para o leito; que provinha do estudo sobre as dimensões mínimas contidas no Manual – Bauentwurfslehere (1936) – de Ernst Neufert – também estudante da Bauhaus – que ainda hoje é utilizado nas escolas de arquitetura de todo o mundo. Neufert colaborou com o Ministério da Aeronáutica, e projetou os alojamentos de madeira para os trabalhadores “escravos”.
Foram significativas as inovações arquitetônicas de caráter progressista voltadas para a solução dos enormes problemas que a guerra criava, tanto para a população civil quanto para a colossal mobilização de milhões de soldados. Por uma lado, Le Corbusier e Jean Prouvé projetaram na França escolas móveis e desmontáveis; a seguir o Mestre criou a solução artesanal das Maisons Murondins para os refugiados que abandonaram as cidades; depois desenvolvida para as casas com abóbadas cerâmicas, semelhantes àquelas que nos anos setenta foram desenvolvidas em São Paulo por Sérgio Ferro e Rodrigo Lefebvre. Prouvé também projeta um hangar desmontável – também produzido por Konrad Wachsmann com o seu sistema de nós metálicos –, e o norte-americano Wallace Neff inventa uma forma de lona inflável para construir cúpulas de concreto, como a que foi utilizada no ano 2010 no Centro Cultural de Avilés de Oscar Niemeyer. E William Holford – que participou no júri do concurso de Brasília – desenhou na Inglaterra conjuntos residenciais femininos para as trabalhadoras das fábricas de munições.
Nos Estados Unidos concretizou-se a maior quantidade de iniciativas construtivas, cíveis e militares. Uma unidade multifuncional de estrutura metálica leve e fechamento de chapa de aço corrugada, inventada por Peter Norman Nissen em 1916 e utilizada na Primeira Grande Guerra, o Quonset Hut (de 4.8m. x 10.8m) foi melhorada para a Segunda Guerra Mundial. As 153 mil unidades produzidas serviram para alojamento dos soldados, escritórios, depósitos e centros hospitalares. Eram duráveis e de uso versátil, por exemplo, na Cidade Universitária de Tucumán, na Argentina dos anos cinquenta, os alunos tinham seus ateliês em Quonset Huts; ainda existe um em pleno uso no Rio de Janeiro, na favela dos Funcionários no Cajú, no qual atividades culturais da comunidade são desenvolvidas. Em 1941, Buckminster Fuller projeta a Dymaxion Depoyment Unit, inspirada nos silos de grãos, que serviria como habitação individual mínima, e utilizada pelo exército em Alaska para a proteção dos radares. Uma unidade sanitária móvel instalada em um caminhão foi imaginada pelo arquiteto Bertrand Goldberg de Chicago.
Com a Housing Act (Lanham Act, 1940) o governo norte-americano apoio a construção em massa de moradias e de conjuntos habitacionais para abrigar os trabalhadores das indústrias militares em diferentes regiões do país. Entre 1940 e 1944 foram produzidas 625 mil unidades, das quais 580 mil foram consideradas temporárias, o que foi duramente criticado por Richard Neutra quando alguns conjuntos se transformaram em slums para a população pobre, e em particular negra e segregada, como aconteceu com os empregados da fábrica Ford. Contemporaneamente também foi construídas 200 mil unidades pré-fabricadas e 50 mil unidades em trailers. A participação dos melhores profissionais nestes grandes projetos foi importante. Para a elaboração de estudos, tanto sobre a tecnologia construtiva, quanto sobre a tipologia da casa, podem ser citados: Paul Nelson, Eero Saarinen, George Howe, Frederick Ackerman, Catherine Bauer, Clarence Stein. Os melhores projetos urbanísticos foram desenvolvidos por Walter Gropius e Marcel Breuer com o sistema The Packaged House System na Aluminium City; e por Richard Neutra na Avion Village e no Channel Heights Complex (1942) em San Pedro, Califórnia, considerado por Max Bill, o melhor conjunto urbano construído nos anos da guerra.
Concluindo, este livro não narra uma história passada e distante, mas coloca em evidência o quanto ainda dependemos da prática e da teoria arquitetônica elaboradas na primeira metade do século XX. Mas não todas as experiências inovadoras foram aplicadas no pós-guerra. As casas modernas de good design foram substituídas pelas anônimas casas Levitt; e no mundo socialista e capitalista se espalharam milhares de blocos de apartamentos sem nenhuma qualidade estética. Hoje, os problemas são outros, mas as necessidades humanas continuam sendo as mesmas, e de uma população mundial que é quase o dobro daquela existente no início da primeira metade do século passado. As soluções habitacionais propostas pelos arquitetos do Movimento Moderno, em particular nos anos difíceis da Segunda Guerra Mundial, ainda tem validade, mesmo considerando que a linguagem e os valores estéticos da atualidade mudaram; ainda assim, sem esta base, não existiriam os projetos de Shigeru Ban, de Glenn Murcutt, de Anne Lacaton, de Diébédo Francis Kéré ou de Alejandro Aravena.
nota
NA
Revisão de texto de José Barki.
sobre o autor
Roberto Segre, arquiteto e crítico de arquitetura, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, pesquisador do PROURB FAU UFRJ.