O termo metamorfose, cujo prefixo grego “meta” significa “para além” ou “o que vem depois”, designa uma sucessão de formas para um fenômeno, uma personagem ou um meio. É assim que em Ovídio (1), que retoma figuras mitológicas célebres, a mesma personagem muda de forma para realizar um projeto que, antes, era incapaz de realizar. Algo ou alguém se deforma, se desintegra, para se reformar de outro modo.
Metamorfosear os territórios existentes é se inscrever em seu devir, integrando ou não o que já aconteceu, e não mais, como na antiguidade greco-latina, um desafio do real reservado à mitologia ou, em outros contextos culturais, à bruxaria. Tudo se passa como se se tratasse, em meios habitados por uma potência de reinvenção, de formas de vida que se ajustam em função do tempo que passa ou que, ao contrário, sofrem mutações, transmutações. Em tais meios que são sistemas complexos auto-organizados, encadeamentos, todos os elos são solidários e, contudo, cada um, ao mesmo tempo que se prende aos outros, dispõe de iniciativa própria. Uma sistêmica ordena, naturalmente, os elementos de que se constitui, mas essa sistêmica não é nem mecânica nem necessária. Sempre existe entre um elo e outro uma possibilidade de variação, de descompasso, de mudança, apesar de os elementos constitutivos se ligarem uns aos outros em uma relação dinâmica. Um meio habitado se encontra, assim, animado por uma multiplicidade de laços interativos móveis.
O que poderia ser um urbanismo de religação e não de fratura? Como ativar a potência criadora de uma arquitetura rumo a possíveis aberturas entre local e translocal? Um conjunto arquiteturado difere de uma massa ou de uma extensão inertes. As metamorfoses buscadas por Igor Guatelli, que trabalha os encontros conceituais entre arquitetura e filosofia, particularmente a partir de Derrida ou de Deleuze e de Guattari, tendem a revelar e a transformar um meio. Elas operam por hibridação e deslocamentos, desarticulação e articulação, “grama e pro-grama”, mas também por invariantes que prevalecem sobre as deformações, resistindo a uma tabula rasa. Outras morfologias nômades e domesticadas, desligamentos e religações (2) produzem ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade. Tal arquitetura, que se torna um acontecimento por sua capacidade de deslocar os limites das regras habituais de ligação é um ativador paradoxal potente dos laços entre aqui e ali, isto e aquilo. Como o pensamento que é um trajeto (Michaux), ela leva um meio para além de seu limite de substância individuada assentada em seu topos. Sem abolir contudo a distância entre aquilo que é aproximado, abrindo um vasto campo de possíveis cenários , considerando as resistências e os recursos próprios a cada lugar, assim como as condições de implantação de um projeto. Esse processo exige que se decifre o “já posto” e que se captem suas forças.
A criação arquitetônica é espaço-temporal, ela estabelece um “entre” colocando em sinergia a parte e o todo por limites que distinguem, e por espaçamentos que separam tudo construindo proximidades. Mas também pelo estabelecimento de relações, passagens e porosidades entre as coisas e os seres. Essas conexões agem rumo ao entrelaçamento das esferas, que faz com que o espaço e o tempo, o grande e o pequeno, participem de um coritmo. O que é um modo de se figurar ao mundo e de configurá-lo.
notas
NE
O presente texto foi publicado originalmente na orelha do livro resenhado.
1
OVIDE, Les métamorphoses. Tradução Danièle Robert. Coll. Thésaurus. Paris, Actes Sud, 2001
2
MORIN, Edgar. La méthode – Éthique. Tomo 6, coll. Point. Paris, Seuil, 2006.
sobre a autora
Chris Younès é Doutora e HDR em filosofia, professora da École Nationale Supérieure d’Architecture de Paris-La Villette e da École Spéciale d’Architecture. Responsável pelo laboratório de pesquisa em arquitetura urbana e filosofia Gerphau.