Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
A partir da exposição “O coração da cidade – a invenção dos espaços de convivência” o artigo tem como objetivo discutir a noção distanciada de convivência que a exposição imprime

english
From the exhibition “Arquitetura Brasileira. O coração da cidade – a invenção dos espaços de convivência” the article aims to discuss the distant notion of coexistence through the exhibition

español
A partir de la exposición “Arquitetura Brasileira. O coração da cidade – a invenção dos espaços de convivência” el artículo tiene como objetivo discutir la noción distanciada de convivencia que la exhibición muestra

how to quote

CANUTO, Frederico. A arquitetura contemporânea e a cidade prevista. Sobre a exposição “O coração da cidade – a invenção dos espaços de convivência”. Resenhas Online, São Paulo, ano 11, n. 131.02, Vitruvius, nov. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/11.131/4568>.


Os sinônimos “viver junto” ou “viver com outros”, “conviver” enfim, dizem respeito a um tema central desde os primeiros anos do século XIX até hoje, quando a cidade se configura como lócus central para uma vida pública (1). O viver com outros aponta tanto para as diferenças entre todos, assim como para o que nos une. Questão política mais do que central na contemporaneidade, o reconhecimento das diferenças e/ou o estabelecimento de um lugar comum de convivência delas faz com que se pense no que é viver na cidade ou o viver urbano, como a exposição, tema de debate da mesa, propõe. Tal proeminência da convivência como ponto de discussão central ganha espaço em diversos campos disciplinares e do conhecimento e eventos como, por exemplo, em bienais de arte, como foi o caso da 27a Bienal de Arte de São Paulo, em 2007, cujo tema foi “como viver junto” [sem ponto de interrogação]. O tema está presente também em debates sobre a cidade e o espaço público produzido numa negociação sobre e no espaço por legisladores, urbanistas, planejadores urbanos, poder privado e sociedade civil, organizada ou não em assembleias, pleitos ou no próprio espaço da cidade, em passeatas, plenárias e, até mesmo, de alguma forma, nos ditos quebra-quebras. E para marcar ponto de partida para as questões que serão colocadas, esse tema diz respeito aos modos de viver em períodos de exceção, como quando da notícia de uma possibilidade de terremoto em Lisboa, após o ocorrido no Haiti em 2010. Logo após o tremor de terras de fevereiro de 2010 em Port-du-Prince, capital do país, uma emissora portuguesa chamou para um debate televisionado um filósofo, um engenheiro especializado em resistência das construções, um político e um gerente de catástrofes – profissional responsável por, em caso de maremotos, terremotos ou outras tragédias naturais, gerenciar o caos das primeiras horas do desastre, algo análogo à “defesa civil”. Em pauta no programa, estava a possibilidade de semelhante terremoto ocorrer em terras portuguesas, visto que, em 1755, havia ocorrido um em Lisboa, devastando a cidade. Segundo a moderadora do debate, estudos científicos informam que, nos 50 anos seguintes à data de exibição do programa, um outro grande terremoto certamente aconteceria. Ao discutir se a cidade e seus organismos emergenciais estavam preparados para uma eminente catástrofe, o filósofo apresentou de forma sucinta sua maior preocupação em caso dessa ocorrência. Segundo ele, é sabido que as primeiras horas após um terremoto são de caos completo. Sem comunicação, água limpa e potável, alimento, policiamento, entre outros – tal como o vivenciado em New Orleans após o furacão Katrina –, o caos impede qualquer organização. Criticando diretamente a limitação não visualizada pelo gerente de catástrofes ao seu lado, o filósofo afirmou não haver gerenciamento que seja capaz de organizar tal desmantelamento civilizatório. Sua preocupação, então, era se, durante e logo após o terremoto, nas primeiras 72 horas, vizinhos seriam capazes de se ajudar mutuamente. Esse raciocínio, o interessante e colocado em questão é a nossa dependência de instituições mediadoras entre vizinhos, entre um e outro. Discutimos e negociamos espaços não em conversas, mas pagando nossa conta de luz, obedecendo a normas condominiais, legislação, código de posturas, direito civil, entre outros documentos e normas. Esta questão é intrigante também porque expõe, talvez, nossa incapacidade de ajudar ao próximo por medo desse que mora ao lado: aquele que se desconhece ser o nosso vizinho.

Tal questão o filósofo Jacques Derrida coloca certeiramente ao discutir a noção de hospitalidade a partir de um caso francês: o que ocorreu na França nos últimos anos, com um governo conservador, foi um recrudescimento em relação aos emigrantes com a criação da lei chamada Crime de Hospitalidade (2). Tal lei, objeto de discussão para o pensador, surgiu pois alguns franceses estavam oferecendo asilo – ou seja, casa, alimentação, entre outras necessidades básicas – para emigrantes ilegais. O Estado então criou a lei para impedir que se continuasse esse gesto, que é o mais hospitaleiro possível: o de aceitar em sua casa aquele que é desconhecido perante a lei, ou seja, à margem ou fora dela.

O que o Estado faz, ao criar essa lei, é justamente colocar-se como mediador, impedindo a autonomia do indivíduo em relação a suas decisões. Este exemplo, juntamente com o do terremoto, passa pelos modos como o espaço se constitui hoje – seja o da casa, no caso de Derrida, ou de uma cidade pós-terremoto – como mediador de relação entre pessoas apoiado em instituições diversas, inclusive e majoritariamente públicas – o que não é o mesmo que público. Como bem se sabe, o chamado poder público tem uma agenda e compromissos políticos desenhados em debates e em lugares próprios, segundo uma noção de bem comum dada de acordo com determinados cenários políticos. Isso difere totalmente da noção de público que diz respeito à imagem de pessoas juntas, independentemente de posição política, econômica ou social, e que normalmente associamos a multidão. E mesmo essa noção de público pode também variar de acordo com um pertencimento a certos estratos sociais, econômicos ou culturais: um público e não o público é o recorte.

Por outro lado, público é uma noção elástica que a arquitetura sempre dependeu historicamente, tendo em vista que a formulação ou problematizacão de uma questão espacial demanda que haja um cliente interessado numa mudança. Neste sentido, a profissão sempre foi passiva e vê a si mesma a serviço do público e não como parte dele. Normalmente, o projeto surge quando o profissional é chamado a fazer e não porque há uma compreensão de que deve ser feito, independente do fato de as pessoas o desejarem ou não. Apesar de haver uma “história não dita” ou que está “à margem” das narrativas e histórias oficiais do campo disciplinar, onde arquitetos se colocam como empreendedores pró-ativos, é senso comum de que o arquiteto se vê como à parte do chamado público desde sua graduação, num ciclo vicioso perpetrado por uma disciplina e professores (3).

Por isso, foi dividido em três momentos este texto a partir da exposição em discussão, pautando-se pela análise da arquitetura, suas operações, suas apresentações e a relação com um cliente ou usuário presentes ou não a partir dessa exposição sobre espaços e convivência, para depois pensar nesses limites e para além deles. Numa primeira parte, será discutida a relação arquitetura e público como convivência forçosamente mediada; depois, arquitetura e a imagem que dela é feita como disrruptores de uma empatia que poderia ser transformada num olhar interessado em conceber um viver junto; e, finalmente, esta relação como potencial de invenção de convivência para a cidade de hoje.

1.


Gordon Matta Clark [divulgação]


Historicamente, como dado pela exposição aqui tratada, temos uma arquitetura de caráter público e coletivo sendo feita por arquitetos que majoritariamente tiveram e têm como cliente o poder público – exceção mais visível é o Sesc Pompéia de Lina Bo Bardi. Ou seja, uma arquitetura que sempre operou e opera dentro e a partir de considerações do poder público e de suas agendas e objetivos. Tal manifestação de si mesma como um estabelecimento espacial de formas de poder ou de discussão dessas mesmas formas, vem desde o movimento moderno e sua relação com governos progressistas até chegar à atual politização democrática da cidade, dada pela abertura e compreensão da arquitetura como espaço edificado que diz respeito a todos, o que, por sua vez, dá uma dimensão urbanística a uma profissão sempre relacionada ao único e ao isolado. Não estranhamente, tem-se hoje a função social da propriedade e outros operadores, como IPTU progressivo, estudo de impacto de vizinhança e desapropriações, como conceitos articuladores e renovadores de uma dimensão pública e política do urbanismo no documento federal Estatuto das Cidades. Urbanístico, aqui sublinho, pois a arquitetura, em grande parte de acordo com a exposição ora realizada, continua à margem de uma nova possibilidade de relacionamento entre o que é público e o que é privado – dimensões centrais acerca das quais se pensar, porque o documento mencionado, o estatuto das cidades, já é um ganho inestimável. O espaço público é “lá fora”, e o privado, “lá dentro”, a não ser quando continuado tendo em vista a capitalização e/ou espetacularização da vida cotidiana como desde Walter Benjamin e Guy Debord já é discutido. Como exemplo, tem-se na reportagem transmitida pela BBC Brasil em 25 de abril um lote vago [“lá fora”] transformado em jardim [como um salão de festas, “lá dentro” então] para aluguel em Nova York. Isso, porém, não significa que não haja exceções.

Enfim, ainda no tocante ao poder público, cada vez mais, edifícios articuladores de uma rede de infraestrutura pública voltada para o bem coletivo atestam como o poder público e a arquitetura convergem para colocar em questão a vida urbana coletiva e comunitária. Isso é comprovado por dois fatos: em primeiro lugar, cita-se o exemplo de Belo Horizonte, onde o BH Cidadania, as UMEIS, os postos de saúde, são gerenciados dentro de programas estatais como nós de energia criativa e coletiva para a construção de uma noção de público; em segundo lugar, ao financiamento dado por prefeituras, governos estaduais e federais para propostas vindas da própria população, por meio de leis de incentivo ao esporte e à cultura, por exemplo. Ainda que insuficientes ou politicamente, em grande parte, a serviço funcional de massa de manobra em tempos de um requerido capital político, é inegável que há desenvolvimentos sociais e culturais positivos promovidos por tais equipamentos e políticas.

Ainda que não presente nesta exposição, tem-se, por outro lado, uma noção de convivência alicerçada no consumo, a qual possui como resposta arquitetônica um encarceramento cada vez maior de igualdades dentro de um módulo básico que a função social da propriedade combate – o lote condominial privado. Neste sentido, nessa exposição são tratadas as exceções e não as regras do que vemos nas cidades e em suas periferias suburbanas. Shopping Centers, edifícios residenciais com áreas de lazer compostas de lan house, espaço kids, entre outros, cada qual com sua especificidade, afirmam uma relação de público como “aquele” público, seja por localização ou acesso, questões estas interligadas a outra ainda mais debatida hoje: a da mobilidade e do trânsito. Criando uma noção de cidade autosuficiente e produtiva encastelada em bolsões ao longo do ambiente urbano, reafirma-se uma privatização do espaço por praças de alimentação, jardins internos, parques residenciais e piscinas de uma raia. Ainda que, em muitos momentos, através de selos como responsabilidade social ou ambiental, tais espaços acabem por trazer benefícios resultantes de facilidades dadas pelo poder público, como isenção de impostos, vê-se paulatinamente determinadas operações e soluções projetuais se repetirem. É o caso do panóptico, caracterizado pela vigilância constante de si e dos outros, como nos Shopping Centers e áreas comuns de edifícios verticais, por exemplo; do isolamento por difícil acesso, que se dá por meios de transporte pouco eficazes; de uma natureza privatizada e dada como artificialidade, como no caso de empreendimentos imobiliários na cidade de São Paulo que garantem, na unidade habitacional privada, uma árvore para a família, como vendido nas páginas dominiciais dos jornais de circulação nacional. Ocorre, como se vê, uma globalização mercantil da e pela experiência arquitetônica.

Mas também há, como possibilidade de abertura apresentada no texto a respeito do núcleo temático “as grandes coberturas” desta exposição aqui analisada, os não-arquitetos como produtores de arquitetura. Como pesquisas acadêmicas em campos disciplinares relacionados ao espaço vêm demonstrando, o espaço de todos, mais do que definido pela arquitetura apenas, é também delimitado pelo engajamento ou pela apropriação dos habitantes dado ao longo do tempo. O espaço público, mais do que aquela tábula rasa ou espaço vazio tal qual a planta livre modernista, “onde todos podem fazer tudo e geralmente não fazem nada”, é o socialmente vivido e apropriado por uma racionalidade outra. Ou seja, na interface entre a arquitetura e aquele que a usa, ou numa definição de arquitetura como espaço usado, de outra maneira, criam-se viveres e conviveres. E é a partir daqui que seria interessante dar continuidade – não pela figura do não-arquiteto, mas sim pela noção de uso e engajamento.

2.


Gordon Matta Clark [divulgação]

Nesta primeira aproximação, falemos de um engajamento fotográfico. Ainda que nesta exposição aqui tratada, em sua maioria, tenhamos modelos paulistas e cariocas dos anos 1960 e 70 – estranhamente o período mais antidemocrático, visto ter sido a época da ditadura militar no Brasil – também nos anos 1990 e 2000, é possível entrever em cerca de 5% a 7% dos exemplos tal possibilidade engajada. E isso é dado não pelos projetos em si, ou porque outras regiões como o norte e nordeste brasileiro, que hoje explodem em experiências espaciais fora de um modernismo “oficial”, pouco ou não apareceram, mas também porque nos anos 1980 tal usança existiu em sua maior potencialidade. A perspectiva deve-se ao fato de que, nessa porcentagem de 5% a 7%, é possível entrever pessoas se utilizando e usufruindo dos espaços, seja o SESC Pompeia, seja a marquise do Ibirapuera. As imagens, ao terem em seu enquadramento pessoas, permitem justamente pensar a relação entre as mesmas via arquitetura – princípio básico do que é conviver. E o que estes 5% a 7% afirmam é justamente uma vivência junto que não é dada por racionalidades progressistas, nacionalidades, crenças religiosas ou etnias, mas simplesmente por se estar lá, disponível e inclinado a estar numa arquitetura naquela época estranha e que pede um recondicionamento de si como alguém que vive em espaço. Assim, estes 5% a 7% não são o Brasil, nem a população negra, nem os católicos, nem a classe média, nem a associação de pais de alguém, mas sim uma potencialidade para viver junto, ou não, potencializada pelo espaço des-qualificado porque sem qualificação anterior.

Neste ponto desta palestra, há de se perguntar por que a foto é tão importante, tendo em vista que a questão da exposição é o projeto, e tal não aparecimento poderia ser justificado pela não captação no momento certo da situação certa pelo fotógrafo. Entretanto, isso seria superficial, uma vez que não é um problema de tempo a questão aqui chamada à discussão. A imagem diz não apenas do objeto fotografado, mas daquele que o fotografa, suas percepções, suas ideologias e, principalmente ou no conjunto, o seu olhar. E pensar o olhar e qual imagem ele constrói são os aspectos decisivos aqui para se refletir sobre essa noção de convivência como engajamento e a arquitetura como parte importantíssima para tais conceitos.

Se me permitem, sairei um pouco da esfera disciplinar da arquitetura e buscarei relações com outros campos para justamente tensionar seus limites em busca de novas maneiras pensar este conhecimento espacial que aqui está em discussão.

Desde os anos 1960, há diversas disciplinas relacionadas e comprometidas com a questão do espaço como socialmente vivido que problematizam as maneiras de se narrar ou discorrer a respeito de uma realidade. No campo da história, por exemplo, emergiu a micro-história por parte de Giovanni Levi e Carlo Ginzburg preocupada em narrar e produzir um conhecimento histórico de uma situação a partir de uma metodologia etnográfica ou interessada nas minúcias – análogo, mas não equivalente a um inventário. Numa epistemologia não mais dita “neutra”, perseguiram um modo de cartografar uma situação levando em conta que quem cartografa produz um olhar sobre o real. Nesse sentido, apontaram ou acompanharam um movimento teórico que faz justamente problematizar “a partir de onde se vê”, divergindo assim de uma poética de pretensa neutralidade. Ou seja, instauraram uma historiografia de proximidade dada por diversos olhares, estes diversos, em contraponto à história oficial de livros e de documentações apenas, autodenominadas como “real” ou “verdade”.

Retornando à arquitetura e às imagens – cada vez mais instrumento de mediação entre nós e o mundo e de sua anulação como espaço sensível e de imaginação de outros possíveis pois media relações sociais, como coloca desde sempre Debord (4) –, tem-se a questão da convivência. E a imagem não como distanciamento, mas como aproximador operativo, toma grande parte da questão. Se o que interessa no viver junto ou convivência são imagens que digam de um encontro entre eu e o que não sou eu, as imagens ausentes na exposição são aquelas que dizem respeito à vida de todo o dia, ao cotidiano, dos encontros. Essa ausência sintomática é presença forte de uma falta de engajamento que ainda integra o discurso arquitetural, mesmo que este hoje seja reconhecido como parte das ciências sociais. A não presença de pessoas nas fotografias, ou essas tiradas distanciadamente ou em planos abertos e aéreos como visto nesta exposição aqui em crítica, reforçam uma percepção e sensibilidade de uma arquitetura sem qualquer relação com a vida vivida pelas pessoas comuns.

3.


Gordon Matta Clark [divulgação]

Com essas imagens, então, direcionemos o olhar agora para um viver junto através de um projeto de arquitetura.

Nesta exposição, no núcleo temático denominado “minicidades”, aponta-se para um ideal de convivência arquitetonicamente desenhado e, desde 1960, vivido, chamado “superquadra”. Essa unidade de vizinhança é estratégia projetual central em Brasília para o viver junto. Esta experiência, imaginada numa confluência política entre o governo progressista de JK, e um plano modernista de cidade como desenho de fluxos em um lugar onde nada havia marca a invenção de uma outra maneira de viver.

É costumeiro se ouvir criticas a respeito do plano piloto da cidade e sua impossibilidade de vivência que não seja mediada pelos carros e por um tombamento pelo poder público que assegure uma tipologia de construções e desenho urbano, uma altimetria constante e uma relação entre espaços cheios e vazios, tal como o projeto original. Entretanto, como Clarice Lispector (5) e muitos outros preocupados com esta cidade já afirmaram de modo categórico, especialmente na literatura, há no projeto um redesenho das condições nas quais se vive nas cidades, que inverte o raciocínio das condições dadas ao desenho do arquiteto por tudo que vem externo a ele (6). O estranhamento de Brasília, visto por quem vive nas cidades brasileiras não planejadas por arquitetos mas pelo mercado imobiliário em associação perversa com o poder público, visto como um defeito, poeticamente permite realizar uma utopia social que a literatura pode apenas imaginar, pois pode ser posta a prova da vida, do tempo, do uso. Infelizmente, por outro lado, uma vez construída, para ser mantida foi necessário ser tombada. Ao se tornar patrimônio mundial, com limitações de construção e apropriação do espaço que objetivam manter uma imagem moderna sessentista, não se permitiu é deixar esta mesma invenção de cidade tornar-se ruína: tornar-se poética no tempo móvel e não congelado.

Francisco de Oliveira – em um texto muito conhecido, O ovo de Colombo” de 1978 – não trata da cidade especificamente, mas traz um importante raciocínio à discussão empreendida aqui ao afirmar o seguinte: qualquer problema relacionado à cidade é necessariamente um problema também do sistema capitalista como um todo. Neste raciocínio está uma compreensão correta e precisa que vincula espaço, economia, sociedade e cultura. Sua compreensão, apoiado numa tradição marxista pós-60, é simples: não serão resolvidos os problemas relacionados a escassez ou falta se o próprio sistema de oferta e demanda não for colocado em questão. Nesse sentido, obrigatório se torna pensar a potência existente no desenho político da superquadra em comparação a uma forma de regulação de mercado e de desenho de espaço público como a que temos agora, pois ele destrói concepções usuais morfológicas da cidade.

Se o viver urbano, ou o viver e conviver na cidade, significa reengajar seus habitantes numa prática social em que o encontro com o outro ganhe lugar central, isso só poderá ser feito se transformadas noções dadas como certas em zonas de fronteira entre o que é conhecido e o potencialmente novo ou desconhecido. Ou seja, se noções como casa, bairro, quarteirão, país, vizinho, parede, janela, escada, entre outras, forem substituídas por novas, mais articuladoras do que as existentes, tão relacionadas a objetos e realidades isoladamente dadas. Enquanto a casa for aquele edifício, e praça, aquele vazio, e Brasil, aquela maneira de se portar, uma convivência articulada e inventada pela arquitetura será sempre um esforço de aproximação falso porque reforça noções de propriedade, de falta de vinculação, de estereótipos, de limite entre o que é de um e do outro – o que significa, por sua vez, encaixotamentos habitacionais atrelados a noções fáceis como personalidade ou identidade, conceitos repetidos à exaustão por arquitetos: “a casa tem de ter a cara do cliente” – o que faz com que o cliente torne-se uma noção superestimada, e usuário, subestimada.

Nesse sentido, na produção dessas fronteiras e não limites, conceito de zona de passagem como aqui imaginado, vários são os pensadores que refletem sobre essa categoria como um limiar (7). Ou seja: não como um ponto ou linha que diz o que é ou não é, mas uma espacialidade que afirma o que potencialmente pode ser e não ser, pois, num entrelugar ou, por Marc Auge, Não-lugar (8).

Para concluir a partir desta negatividade ou esvaziamento de um sentido positivo e unificador de casa, e mesmo do lugar como dito acima, o artista Gordon Mata Clark torna-se exemplar. Artista que ganhou notoriedade nos anos 1960, sua obra foi produzida numa zona convergente de conhecimentos espaciais dada pela arquitetura e a arte, pensando a questão da convivência através de uma arquitetura movida por um desejo de vida urbana como anulação da existente como a única direção possível. Sua singularidade é dada não apenas pelo modo específico com o qual lidava com seu material, no caso a arquitetura, e por eleger sítio desta sua pesquisa-produção artística lugares-territórios abandonados, como casas nos subúrbios ou baixios de viadutos nas grandes estradas americanas ou mesmos nos grandes centros urbanos, mas por uma estratégia conceitual próxima de uma limiaridade, capaz de transformar o cheio em vazio, já que vê o vazio como infinitude de mundos possíveis ou abertura horizontal em direção ao que é o mesmo, porém diverso.

Uma de suas obras que gostaria de colocar como produção desta confluência prática e artística pautada pelo esvaziamento da casa é Building Cut.

Primeiramente, distante, o artista observava o espaço da casa por uma distância fotográfica. Nessa atitude o artista redimensionava e domesticava a habitação, tornando-a objeto ou maquete, transformando-a em matéria-prima escultórica. Percebê-la não como algo que é maior do que si mesmo, com dimensões maiores que a do próprio corpo, humano, mas quase como objeto que cabe “na palma da mão” é uma estratégia de domesticação.

Tomar a arquitetura da casa e refazê-la ao avesso era seu objetivo e, a esta estratégia, acabou por dar o nome a seu grupo: Anarchitecture Group (“Grupo Anarquitetônico”). Neutralizar a funcionalidade da arquitetura de residências-padrão construindo novas conexões, novos pátios, novas janelas, novos enquadramentos do que se apresenta lá fora, novas visualidades entre dentro e fora. Trazer essa potencialidade construída pelos esburacamentos para espaços os quais pudessem ser vistos como abertura de olhares, vislumbres, potencialidades sociais.

Daí o momento de abertura dos vazios nas casas, como os mostrados pelas fotos aqui colocadas, como humanizações do que para ele antes era estranho: a casa suburbana ou abandonada. Domesticar ou tomar a casa como sua através da reconstrução deste espaço habitacional abrindo novas janelas, novas vistas, novas portas para novos convidados. Re-conhecer a casa independente de qualquer conhecimento apreendido antes, mas através de serras, marretas e martelos. Conhecer a casa de novo, mas não como casa, e sim objeto onde se pode habitar de outras maneiras.

O que Matta-Clark aponta, tal como a superquadra de Brasília, é a necessidade de experimentar um conviver que dinamita noções pré-estabelecidas, assim como faz ver a arquitetura como objeto a ser manipulado de formas radicais, inclusive deixando-se de lado o que clientes e usuários esperam, pois, se o que eles desejam é, cada vez mais, mais do mesmo, é preciso não responder a tal reprodução distanciada do viver junto. Por mais paradoxal que possa parecer, para construir convivências, é preciso deixar de escutar o que é dito a fim de estabelecer novas maneiras de se comunicar, pensando esse ato de comunicação como o estranhamento que faz inventar novas convivências.

notas

NA
O presente é baseado na apresentação feita em mesa redonda ocorrida em 09 de março de 2012 para discutira a exposição Arquitetura Brasileira. O coração da cidade – a invenção dos espaços de convivência, curadoria de Julio Katinsky, organização Instituto Tomie Ohtake. Belo Horizonte, Palácio das Artes – Fundação Clóvis Salgado, de 02 fev. 2012 a 18 mar. 2012.

1
A perspectiva usada aqui para afirmar que a cidade se torna no século XIX espaço central de uma vida pública se apoia numa divisão tipológica e cronológica feita por Henri Lefebvre em seu livro La Révolution Urbaine. Nesta obra, o pensador divide o desenvolvimento da cidade em quatro épocas distintas, que vão se sobrepondo: cidade política – correspondente ao período em que a cidade era lugar tanto da cultura como centro de decisões políticas a respeito da vida em comunidade, mas com sua economia ainda baseada na agricultura, localizada fora, na periferia – cidade comercial – é a cidade política que se torna também lugar de negociação de produtos não comercializados pelo campo – cidade industrial – é a que surge com a revolução industrial e transforma a cidade em centro não apenas político e comercial, mas também produtor com o esvaziamento do campo – e zona urbana – momento potencial que o campo desaparece e toda a superfície se torna urbana.

2
Para mais informações a respeito da questão da hospitalidade, nessa segunda fase do pensador centrada numa discussão mais ética a despeito de seus estudos vinculados a linguagem anteriormente, do pensador francês, indica-se, Anne Dufourmatelle convida Jacques Derrida a falar de hospitalidade em que o termo é empregado.

3
Duas publicações aqui são exemplares para expor o modo como o ensino da arquitetura e urbanismo constrói um pilar fundamental num círculo vicioso onde o arquiteto se vê fora de qualquer noção de público. Nam Ellin em Post Modern Urbanism, ao discutir a crise do ensino, coloca como a relação mestre-aluno corrobora na produção de um conhecimento distante e engessado da realidade. Já Gary Stevens em O circulo dos privilegiados, através de uma pesquisa a respeito não apenas das relações entre alunos e professores, mas do currículo e referenciais da própria escola de pensamento, apresenta como está no cerne do ensino o distanciamento da realidade.

4
Cf. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo: “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas de relações sociais mediadas pelas imagens”.

5
Clarice Lispector em Brasília coloca sua estranheza em relação ao lugar, que não é indiferença nem desgosto apenas, mas também um tipo de experiência de des-identificação pois interessada num espaço que nunca antes havia vivenciado: “Brasília ainda não tem o homem de Brasília. – Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério”.

6
Esta emblemática frase foi cunhada pelo arquiteto Bernard Tschumi em seu livro Architecture and Disjunction: “Architecture is not about the conditions of design but about the design of the conditions that will dislocate the most traditional and regressive aspects of our society and simultaneously reorganize these elements in the most liberating way, so that our experience becomes the experience of events organized and strategized through architecture” (1996, 259).

7
A noção de limiar aqui empregada é a de Walter Benjamin, que o define em Passagens: “o limiar (die Schwelle) deve diferenciar-se claramente do limite (die Grenze). O limiar é uma zona. Umbral, passagem, vazar, encher estão incluídos na palavra scwellen (‘inchar’). A etimologia não consegue impedir-nos de anotar esses significados. Por outro lado, é necessário conhecer o contexto imediato tectônico e cerimonial que deu a palavra o seu significado”

8
Em Não-Lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade,de Marc Auge, ainda que normalmente o não-lugar seja usado para associar a este lugar de experiências fracas, de não vinculação e repetição, é preciso colocar que na mesma obra, ele abre outras possibilidades de se pensar o não lugar. Pela negatividade, o antropólogo pensa o não-lugar como positividade, como luagres de outros possíveis, de anulação da possibilidade de existência como um único lugar.

sobre o autor

Frederico Canuto é arquiteto e urbanista formado em 2000. Atualmente, é doutorando na Faculdade de Letras da UFMG e professor do Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix em Belo Horizonte. Tem como campo de pesquisa a questão comunitária na contemporaneidade a partir de diversos campos disciplinares envolvendo o espaço, desde a arquitetura passando pela antropologia, arte, geografia, literatura e filosofia.

comments

131.02
abstracts
how to quote

languages

original: português

share

131

131.01

O caos e o cosmos da metrópole contemporânea

Vladimir Bartalini

131.03

Prometheus

O filme de um grande criador de imagens

Eliane Lordello

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided