Há muito se fala da crise das nossas cidades, aí incluídos a arquitetura e o urbanismo, e não faltaram pesquisas, interpretações, diagnósticos, propostas de solução para os seus problemas. Falou-se, e ainda se fala, em caos urbano para designar (e justificar) o sentimento de impotência diante da enormidade dos desafios colocados pelas metrópoles contemporâneas.
Quando nós, arquitetos e urbanistas, proferimos a palavra caos, estamos, implicitamente, evocando o seu oposto, o cosmos, ou seja, um conjunto organizado e harmonioso. Desejávamos isto, idealizávamos este cosmos e, de início, o representávamos por uma forma perfeita, que abarcava todo o espaço e desafiava o tempo.
A força dos fatos foi nos mostrando a impossibilidade de tal controle, não sem deixar um travo de frustração, compensada aqui e ali por oportunidades profissionais de âmbito bem mais restrito. Já que não é possível consertar, ou seja, “concertar” a cidade toda, ainda resta o bairro; se o bairro ficar fora de alcance, investe-se no condomínio; se este escapar, ainda resta o lote.
Neste processo regressivo, pode até se dar de não nos reconhecermos mais como arquitetos-urbanistas. De fato, ao encontrar eventualmente um arquiteto e perguntar-lhe sobre o que anda fazendo como profissional, não é raro ouvir como resposta: “o que faço não é bem arquitetura...”. Isto mostra que, sofrendo o empuxo da realidade, nos recolhemos a um território protegido cada vez menor (o que torna o “mundo de fora” mais e mais ameaçador), sem, no entanto, pormos em xeque aquela idealização original que nos impele a sermos forjadores de cosmos.
Igor Guatelli é dos que querem romper este cerco, buscar alternativas, não só porque sua geração vivenciou com mais intensidade o questionamento dos ideais modernistas, pois muitos contemporâneos seus, de um modo ou de outro, ainda os afirmam. Não se trata, portanto, de um traço geracional, e sim de uma convicção que se manifesta de vários modos: seja no apoio propriamente profissional a práticas urbanas não convencionais, a micropolíticas espaciais, seja em suas atividades como docente e pesquisador.
O Igor professor faz jus ao título: ele professa; emite sua voz em ambientes nem sempre favoráveis; mostra a face. E se arrisca, porque pisa em terrenos não consolidados, se desloca na neblina, o que também explica a garra com que se firma nas poucas e instáveis balizas disponíveis.
Nos exercícios projetuais que propõe em suas aulas, não há lugar nem programa previamente determinados. A escolha do campo empírico é quase aleatória. Quase, porque sabe de antemão que não é nas situações urbanas ilusoriamente equilibradas e assépticas que encontrará o que o impulsiona, mas antes nas áreas enjeitadas, nos espaços receptores de ordens díspares e atravessados por fluxos de natureza e intensidade variadas. Ali sempre haverá o que projetar, o que fazer. No entanto, este projeto não têm por fim a forma acabada, o objeto arquitetônico como é tradicionalmente entendido. Se há objeto e forma, e é difícil supor arquitetura sem objeto e forma, eles não são o sujeito da frase, mas a conjunção, a partícula que liga, possibilitando novos sentidos ao que foi ligado. Sua presença não é conspícua e sua duração não se mede em anos, décadas ou séculos. Sem deixarem de ser arquitetura, não são avaliados pelas qualidades intrínsecas de sua forma, mas pelo seu papel conjuntivo, pelo que promovem.
Um ato mínimo pode ser a centelha que dinamiza os espaços mais banais, e este ato atinge a condição de arquitetura. É uma postura generosa e confiante (que não se limita a uma crença mobilizadora, aliás sempre necessária) para a qual Igor encontra respaldo na filosofia e, certamente, na arquitetura e no urbanismo, estudados por ele com constância e seriedade. Sim, numa arquitetura do urbano, nas mais diversas formas em que se manifesta, pois é este, afinal, o assunto que lhe interessa e o campo que se propõe a explorar e experimentar enquanto arquiteto.
Por isso, a iconoclastia acaso pressentida em sua fala não deve ser tomada como mero repúdio à arquitetura em geral; como revanche sórdida que se compraz em torturá-la e emasculá-la, ou, numa hipótese melhor, em acuá-la, pela crítica asfixiante, a um beco de onde nunca mais poderá sair. Ao contrário, se a argüi e questiona é pelo desejo de vê-la praticada e de expandir-lhe os limites até, no extremo, liberá-la das amarras classificatórias.
nota
NE
O presente texto é a apresentação do livro.
sobre o autor
Vladimir Bartalini, arquiteto, mestre e doutor pela FAU USP. Atua profissionalmente na área da arquitetura paisagística desde 1973 e leciona disciplinas de paisagismo em escolas de arquitetura desde 1975. Coordena atualmente o Laboratório Paisagem, Arte e Cultura do Departamento de Projeto da FAU USP.