Your browser is out-of-date.

In order to have a more interesting navigation, we suggest upgrading your browser, clicking in one of the following links.
All browsers are free and easy to install.

 
  • in vitruvius
    • in magazines
    • in journal
  • \/
  •  

research

magazines

reviews online ISSN 2175-6694


abstracts

português
O livro nos ensina que uma experiência urbana se baseia na possibilidade de alteridade e, com ela, olhares, percepções, proposições que escapam à tirânica racionalidade capitalista, tão restrita como modo de presença no mundo

how to quote

MOREIRA, Clarissa. Errâncias. Ou como encontrar as cidades.... Resenhas Online, São Paulo, ano 11, n. 132.01, Vitruvius, dez. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/11.132/4581>.


O livro Elogio aos errantes de Paola Berenstein Jacques, faz emergir uma outra história das cidades, uma que dá espaço aos que sentiram no corpo (na pele ou na própria carne) os caminhos e descaminhos da cidade e suas dificuldades e que tiveram instrumentos para transmitir suas experiências e achados. O livro tem uma dimensão histórica por falar de tempos sucessivos em que a multidão ainda existia plenamente, não tendo ainda sido semi-absorta no sistema de fluxos controlados da contemporaneidade, ressurgindo apenas em tempos de luta. Mas se torna extremamente contemporâneo e mesmo, urgente, pois todas as situações vividas, atravessadas ou percorridas, se reatualizaram no mundo atual.

A autora realiza aqui um passo contundente para os que estudam a cidade: a perspectiva sobre a tragédia/beleza do devir do urbano agora é a de um “passante” e não mais do interventor-técnico crítico ou projetista, à moda de Françoise Choay. Elogio aos errantes acompanha corpos de fato presentes, observadores-atores em movimento, imersos no grande caldeirão urbano, em total corpo a corpo com seu objeto que é também seu mundo, seu meio, inseparável de sua própria presença.

Dotados de bem mais que olhos, de um corpo-atento-crítico e vivencial e, claro, de uma alma de fato “encarnada”, os errantes deixam mais que traços. Uma ruptura sutil e potente surge pouco a pouco, algo novo emerge de seus caminhos, derivas, deambulações.  Elogio aos errantes nos ensina que, através de formas outras de se estar na cidade e de vivenciá-la, uma experiência urbana se refunda baseada na possibilidade de alteridade e, com ela, olhares, percepções, proposições que escapam à tirânica racionalidade capitalista, tão restrita como modo de presença no mundo ou como chave de compreensão e programação, orientadora dos tão ambivalentes “projetos” de cidade.

Desenho de Flávio de Carvalho para a roupa "New Look" [Acervo: ALMANDRADE. Flávio de Carvalho, um transgressor da ordem. Chão, Rio de Janeiro, n.]

Os errantes não se desengajam nem desertam no seu perder-se, mas abrem com seus corpos e mentes perambulantes, chances de “respiração” e “descoberta”. Almas ambulantes, flanêurs, coletivos em deambulações múltiplas ou em derivas voluntárias, artistas, pensadores, intelectuais - Baudelaire, João do Rio, Aragon, Breton, Picabia e Tzara, Oiticica e Flávio de Carvalho passando por Debord e outros situacionistas -  em suas errâncias pelas ruas da cidade em constante mutação nas várias épocas, tendo em comum os esforços de homegenização, “apagamento” e domínio por elites econômicas, praticam acessos a outras dimensões do mundo e da existência.

Renovam a chance de liberação da claustrofobia de uma lógica e de um pensamento únicos, através da experiência de entrar em conexão mais profunda ou intensa com os lugares.  Abrem, assim, mais canais para esta forma de amor única que é o amor das cidades: não um amor autorizado ou construído, diga-se turístico, acompanhado de uma repulsa ou detestamento do que é, mas antes, amores difíceis, amor mesmo do desaparecimento iminente, da dificuldade, da sombra e do incômodo. Outras estéticas mais abrangentes resultam de compreensões mais finas ou afinadas com a face encarnada do mundo urbano...

As errâncias de Baudelaire, João do Rio, Oiticica, relançam, assim, a chance do constato das condições de transitoriedade ou passagem da própria vida humana. Nesse sentido, são “religações” fundamentais com uma arte de viver mais intensa, com seus prazeres e dores muito reais.

Segundo Paola B Jacques, a errância é a um só tempo, ferramenta de percepção/apreensão da cidade e ação urbana, ou seja, atuação transformadora “ao possibilitar a criação de microrresistências que podem atuar na desestabilização hegemônica e homogênea do sensível”, onde descobrimos a potência “subversora” da errância - do vagar ou do perder-se na cidade, desrespeitando os fluxos dominantes, mesmo os do lazer, produzindo algo que não obedece ao sistema de valores vigentes. A não-mercadoria, o não-espetáculo ganham espaço, ainda que impermanente.

Segundo a autora, o errante vai de encontro à alteridade na cidade, a este outro que é o imprevisto ou o insuspeito, o execrável ou o ignorado...A errância analisada pela autora é aquela voluntária: pesquisa, experiência e experimento. Ao realizá-la o errante escreve uma história da margem, das brechas, dos desvios, do ambulante, do nômade.

Desdobra deste conjunto de saberes profundamente resistentes e transgressores, uma “errantologia”. Por errantologia são convocados sentidos diversos: no termo científico, o estudo da errância, parente da nomadologia Deleuziana. Um parentesco mais subterrâneo ou errático poderia ser feito pela proximidade da palavra antropofagia, também convocada no livro. Um estudo antropofágico pelo viés da errância poderia assim emergir do termo Errantologia. No entanto, não é a errância que é devorada, pois está já é pura devoração “antropofágica”, mas através dela toda a história da cidade e o próprio urbanismo constituem o inimigo ritual a ser deglutido.

Nos tempos da grande crise cultural que se vive hoje no Brasil, onde se observa uma fragilização das instâncias democráticas e um fortalecimento da propaganda debilizante e acrítica, numa euforia geral marcada por exploração máxima das possibilidades financeiras à curto prazo dadas pelas cidades, e de um governo alinhado com os ditames das grandes corporações, “errar” ressurge como modo de ação possível e como resignificação-homenagem à castigada alma das cidades. Trata-se de um inimigo, de fato, o modo de produção atual que já não se pode chamar “urbanismo” pois não se detêm para estudar ou sequer propor o que quer que seja, utilizando-se exclusivamente da face “espetacular” de um urbanismo por definição desvinculado da complexa trama da cidade.

Mas mesmo este “urbanismo” mais e mais “espetacular” utilizando o termo da autora, é venerado em forma de inimigo tornado alimento sagrado, na errância. Da ignorância ao terror, do autoritarismo ao assassínio, o urbanismo jaz (mas ainda vive) na Errantologia como adversário reelaborado por corpos e almas mais sutis, não sem dores, revoltas, indignação e as lutas de que não se pode fugir. Corpos por elas tocados direta ou indiretamente, prosseguem, resistentes e convocam, conforme propõe Paola, uma outra forma de agir sobre a cidade que poderia estimular

“outra forma de apreensão e de compreensão urbanas, que buscaria instaurar um processo de incorporação – incorporação do corpo na cidade e da cidade no corpo – o que efetivamente nos levaria a uma reflexão e a uma prática mais incorporada do urbanismo, ou seja, a um urbanismo incorporado”. [p. 309]

O termo “incorporação” a autora busca em Hélio Oiticica – na relação do corpo com a ação, e no caso das errâncias, na ação de perder-se na cidade e das experiências decorrentes desse “encontro”.

Sutileza, imperceptibilidade, delicadeza são modos da errância pelo fato desta operar de forma minoritária, não espetacular, o que não significa que não haja escândalos e frenesi,  como em Flávio de Carvalho e mesmo, Oiticica, mas que estes seriam também da ordem da cintilância.  Devir-vagalume dos errantes e da própria errantologia, “ciência vaga” [p. 306]: a sabedoria da cintilância no lugar da luz que cega.

“Devemos portanto [...] nos tornar vaga-lumes e, assim, formar novamente a comunidade do desejo, a comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir. Dizer sim na noite atravessada de lampejos e não se contentar em dizer o não da luz que nos ofusca” (1).

Elogio aos errantes cintila, na potência paciente de sua tarefa, luzes sem alardes que animam a noite, produzindo, infatigáveis, pontos de claridade na escuridão da produção urbana atual, neste início da segunda década do século XXI.

A errância é ato de natureza imperceptível, seus efeitos são subterrâneos mas consistentes, lentos, mas duradouros. Atravessam os séculos, sempre fazendo mais e mais aliados.  Daí sua força e também a força deste livro cuja leitura é mais que recomendada para um mergulho sem precedentes na história pulsante e cintilante das cidades.

nota

1
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos vagalumes. Belo Horizonte, UFMG, 2011. Apud JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes, p. 22.

sobre a autora

Clarissa da Costa Moreira é arquiteta e urbanista, professora da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (EAU UFF), doutora em filosofia Universidade Paris I, mestre em urbanismo pelo Prourb FAU UFRJ. Publicou Ville et devenir: portrait philosophique du devenir-village des metropoles (Paris, L'Harmattan, 2009) , A cidade contemporânea entre a tabula rasa e a preservação: cenários para o Porto do Rio (São Paulo, Unesp, 2005, premiação Anpur 2003) e organizou o livro Novas alternativas (Secretaria Municipal de Habitação/Caixa Economica Federal, 2001).

comments

newspaper


© 2000–2024 Vitruvius
All rights reserved

The sources are always responsible for the accuracy of the information provided