Contextualização, objetivo da publicação
O livro apresenta o trabalho desenvolvido por alunos de três instituições estrangeiras de educação superior (ETH Zürich, UCLA, Berlage Institute) como resposta a desafios e possibilidades reconhecidas pelo grupo de técnicos e de projeto da Secretaria de Habitação de São Paulo (Sehab). Segundo esclarece Keila Prado Costa, uma das autoras, “desde 2005, a Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (Sehab), que desenvolve o maior programa de urbanização de favelas da América Latina, tem promovido uma troca inovadora de soluções entre seu corpo técnico e alunos de diversas universidades para os processos de intervenção nos assentamentos precários da cidade” (p. 12).
Preexistências
São Paulo viu sua população saltar de 200 mil habitantes, no início do século 20, para 20 milhões de habitantes (área metropolitana) no período de 100 anos. Esse crescimento galopante foi acompanhado da importação de modelos urbanísticos que não condiziam com a velocidade e dinamismo da expansão urbana, como explica Elisabete França na introdução do livro.
Em seu texto de apresentação “Globalização de soluções”, o Secretário Municipal de Habitação Ricardo Pereira Leite afirma que “durante décadas, defendeu-se a tese de que erradicar as moradias precárias, (…) seria o jeito mais eficaz de retirar da cidade formal as ‘manchas de feiura’ da informalidade” (p. 10).
Elisabete França esclarece a ideologia habitacional do Banco Nacional da Habitação, que implementou um modelo urbanístico autoritário, de 1960 a 1980, e que se espalhou por todo o país: trata-se de planos urbanísticos que pressupunham a eliminação dos assentamentos informais da cidade, com frequência realocando as famílias para conjuntos, construídos na periferia da cidade, desprovidos de infraestrutura básica e carentes de transporte público de qualidade, equipamentos de educação e saúde, em áreas sem acesso a espaços públicos de qualidade, a oferta de cultura e lazer. Vale lembrar que, apesar de ter falhado como ‘modelo’ urbanístico, e de já haver críticas suficientes a tal prática, desenvolvidas na Europa já na década de 1950 e 60, após a construção de moradia em massa segundo esses princípios no pós II Guerra, ela continua a ser adotada em inúmeras cidades em todo o país.
É precisamente neste ponto que reside a importância desta publicação. Sabe-se da extensão dos problemas relacionados a habitação em São Paulo, que tem atualmente, segundo os levantamentos da Habisp, 1500 favelas apenas no município, e um número ainda maior se considerarmos a região metropolitana. Tendo em vista as proporções do déficit habitacional, resultado de um processo de exclusão histórico, o número de habitações produzidas nos últimos anos poderia parecer ainda um pouco tímido. Mas é importante destacar uma mudança na forma de enfrentar a questão. Esta atitude não é uma novidade absoluta, mas vem, de modo crescente estimulando a experimentação a partir de um trabalho cuidadoso de arquitetos e comunidades, em projetos específicos e fundados na participação por meio de discussões – um modelo ainda cheio de limitações, mas que vem se desenvolvendo e se ampliando nos últimos anos.
O interesse pelas preexistências, nos conta Elisabete França, apareceria no trabalho pioneiro de arquitetos como Carlos Nelson Ferreira dos Santos, que na década de 1970 apresentava uma visão que rompia com o discurso oficial pela eliminação da informalidade. Defendia-se “um profundo conhecimento da realidade, não apenas do território, mas, sobretudo, da população que nele vivia.” Esta atitude se revela em projetos inovadores que abriram espaço para intervenções maiores e mais complexas vinte anos mais tarde, nos anos 1990, ao priorizar a implementação da infraestrutura com o menor número de reassentamentos de famílias possível, o que ficou conhecido como urbanização in situ, como nos explica França.
Tal abordagem serve como base para os programas de reurbanização de favelas consolidados na última década.
A presente publicação se ampara na noção de construção do lugar, a partir de um discurso que reconhecia questões específicas da realidade brasileira e buscava por soluções experimentais a serem testadas em resposta ao “encontrado”.
As found, termo definido neste mesmo momento na Inglaterra pelos arquitetos Alison e Peter Smithson (1960s), demonstra um interesse pelo lugar, pelas preexistências, tornado projeto a partir de uma atitude transformadora, pensando os problemas como desafios e oportunidades, tomando as questões da cidade como possibilidades para a transformação benéfica para seus habitantes. Neste mesmo momento, em cidades que apresentavam outros desafios, arquitetos argumentavam sobre a importância de um olhar cuidadoso do lugar, das práticas cotidianas, das demandas humanas e da escala do homem. Tais ideias estruturavam a crítica ao projeto funcionalista que simplificara a cidade a esquemas, terminadas as reconstruções do pós Guerra.
Se no campo teórico tal enfoque se desenvolveu dentro e fora do Brasil, na prática o que se viu foi, em grande medida, a disseminação de ideias sanitaristas. Estas continuaram a segregar a população mais pobre, fosse através de sua relocação nas periferias, ou em conjuntos habitacionais confinados em lotes, de baixa qualidade arquitetônica e desconectados do tecido, sem preocupação alguma com o desenho urbano e que não são raridade ainda nos dias de hoje.
É importante situar a crescente convergência de discursos sobre a noção de lugar que se apresenta aqui na prática arquitetônica atual em todo o mundo e em cidades diferentes, com e sem favelas. De formas diferentes, os grandes centros urbanos têm testemunhado o aumento da participação de seus habitantes na construção e adequação de suas cidades, por vezes através de práticas de guerrilha e da partilha de ideias amparadas no conceito de DIY (do-it-yourself, ou, faça você mesmo). Pode-se adaptar esta mesma leitura para se pensar no potencial existente nas favelas. Enquanto ocupações urbanas autoconstruídas a partir de esforços e recursos pessoais, elas oferecem um desafio, pela condição de precariedade e falta de infraestrutura de toda natureza, mas um enorme potencial, pela variedade de soluções criativas testadas in loco e pela forma como sua intervenção revela demandas.
In loco, estudo de campo. São Paulo, laboratório a céu aberto
“Temos em São Paulo mais de 1.500 favelas e um imenso desafio de transformá-las em bairros integrados ao conjunto da cidade”, diz Elisabete França (p. 28). São os habitantes deste lugar – a favela – que melhor podem indicar quais as necessidades, as demandas, as vontades que devem acompanhar o desenho e planejamento urbano, em conversa com a prática da arquitetura.
Ainda assim, raramente se tem a humildade de perguntar às comunidades do que eles precisam, de se aproximar de forma diferente, realizando uma leitura cuidadosa da cidade preexistente, procurando entender as respostas já formuladas, originadas da experiência de seus habitantes no enfrentamento de necessidades latentes. Somos nós, arquitetos, urbanistas, economistas urbanos, etc. que devemos aprender a partir dessas realidades. As favelas, como laboratórios urbanos a céu aberto, passaram a atrair interesse de grupos internacionais que, nos últimos sete anos, desenvolveram parcerias em investigações e trocas junto à Sehab. Trata-se da organização de estúdios de projeto organizados com visitas a campo com professores e alunos de instituições estrangeiras. Esta publicação documenta o resultado dessas parecerias e trocas de olhares e referências.
Troca – import/export
Durante estudos experimentais com inúmeras faculdades de arquitetura e urbanismo, alunos de diversas instituições estrangeiras visitaram algumas das favelas em São Paulo que atualmente são alvo de projetos de urbanização. Estiveram em contato direto com moradores, lideranças locais, com planejadores e arquitetos a fim de se confrontarem com realidades novas e desafios apresentados por sua natureza. E vieram com uma bagagem diferente dos alunos daqui, com outras referências, outras formas de pensar, outros métodos de leitura e desenho do espaço. Acima de tudo, treinam a prática de projeto com outro olhar, menos viciado de todo o valor negativo que carregam as favelas no imaginário de nossas cidades, ainda que muitas vezes ignorem muito da complexidade dos problemas. Talvez exatamente isso possa auxiliar, por vezes, a contribuição a partir de outros recortes e abordagens ao debate sobre o tema.
Em alguns poucos estudos realizados em São Paulo, produziram material de reflexão que a maioria das faculdades de arquitetura de São Paulo nem mesmo coloca como tema. (!) Ora, trata-se de temas que deveriam ter preferência na escala de prioridade de nossas instituições.
Os projetos desenvolvidos contribuem para essa discussão considerando o conhecimento de construção e a inteligência espacial dos habitantes da favela. Frequentemente, com históricos diferentes, eles agregam seus conhecimentos em um processo participativo de construção, em que demonstram sua habilidade de responder de modo criativo a um ambiente urbano hostil. A arquitetura deve procurar aprender mais com essas experiências.
Realizam também, na prática, uma crítica a uma ação de projeto ainda muito presente, apesar da abertura para a experimentação com participação, que insiste em construir segundo premissas modernas: as lâminas monofuncionais, exclusivas para habitação, cercadas, muradas e isoladas da rua, eliminando todas as qualidades espaciais que preexistiam na favela retirada.
Focam em soluções tecnológicas e apresentam alternativas à centralização de sistemas de distribuição e de coleta, pensando na capacidade produtiva das unidades de habitação.
Enfrentam aspectos importantes da reurbanização, demonstrando sua habilidade de construir uma ecologia mais complexa: em um nível físico, onde diferentes tipologias de construção e fragmentos urbanos que, atualmente, têm pouco em comum; lidam com aspectos da economia local; e conseguem criar uma rede que aproveita o capital social e o conhecimento local, gerando também espaços abertos e coletivos como resultado.
De fato, como se argumenta, há ainda muito para ser feito a fim de se reduzir o déficit habitacional e aumentar a qualidade do espaço urbano de inúmeras áreas da cidade. Parece haver um consenso sobre esta demanda. Contudo, não se trata apenas de discutir o déficit habitacional em números, mas de pensar o tipo de cidade que se constrói no embate ao problema. Trata-se de uma questão complexa que tampouco poderia ser reduzida ao desenho urbano. Soma-se à discussão o projeto de integração de iniciativas locais e comunitárias com políticas habitacionais e nos projetos de urbanização em São Paulo. Mas precisamos do desenvolvimento de uma política cuidadosa para o desenvolvimento urbano que ampare seu planejamento, capaz de orquestrar os programas de habitação social assim como a construção de imóveis (de uma forma geral) na cidade.
No entanto, é importante conhecer e discutir programas que vêm dando passos com o objetivo de atingir este objetivo. Em especial, vale mencionar a necessidade da produção de conhecimento, da prática do desenho e da discussão acontecerem concomitantemente, para que se tenha a oportunidade de organizar uma reflexão crítica sobre as práticas atuais enquanto elas estão sendo produzidas. Poderão assim, essas experiências de troca, se transformar em verdadeiros laboratórios de estudos urbanos.
sobre o autor
O arquiteto Marcos L. Rosa participou do estúdio entre a ETH Zurich e Sehab, em 2010/11, quando lecionava na instituição suíça.