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O novo livro de Fernando Henrique Cardoso traz, em dez ensaios, interpretações da cultura, da sociedade e da política do Brasil contemporâneo. Os textos são autônomos, mas estão interligados pela obsessão do autor em explicar o sentido de nossa História.

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MOTA, Carlos Guilherme. Para decifrar o Brasil [ou] a formação do estadista. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 139.01, Vitruvius, jul. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.139/4799>.


“Onde o Brasil?”, perguntava o poeta Carlos Drummond de Andrade em conhecido e denso verso. A seca indagação nos transporta para além do óbvio e solicita reflexão. Readquire significado nesta hora em que a sociedade brasileira parece querer se encontrar de fato.

Ao lado de uma elite nem tão educada, surgem na cena histórica “rebeldes primitivos” anunciados, que procuram se fazerem ouvir, por vezes tartamudeando, dado o enorme vácuo de formação e falta de boas escolas, universidades, hospitais, transportes. Ou seja, vive-se em sociedade precária na qual a perspectiva histórico-sociológica tornou-se rala. E já não satisfazem pseudoteorias sobre a “classe média”, ou “desenvolvimento sustentável”, “globalizacão”, “sociedade em rede”, “pós-modernidade” e mais noções ocas, como “neoliberalismo”. Afinal com tanta privatização e abusos do Estado, quem é neoliberal?...

Muito além do caldeirão de conceitos mal cozidos, multidões saem às ruas nessa magnífica mistura de frações sociais, em busca de algum horizonte histórico-cultural que lhes permita transpor a condição precária de súditos-contribuintes à de cidadãos ativos. E nessa passagem e contexto, o novo livro de Fernando Henrique torna-se mais oportuno, ao analisar e “conversar” com estadistas e intelectuais que procuraram inventar ou reinventar o Brasil. Porque, como diria Joaquim Nabuco, um dos estadistas estudados por Cardoso:

“Muitas vezes um país percorre um longo caminho para voltar, cansado e ferido, ao ponto donde partiu” (no Diário de Joaquim Nabuco, 11 set. 1877).

Nessa publicação recolhem-se, em dez ensaios, visões e interpretações da cultura, da sociedade e da política do Brasil contemporâneo. Produzidos em tempos e circunstâncias diversas, podem ler lidos separadamente, embora interligados pela obsessão do autor em explicar o sentido de nossa História, das “raízes” à atualidade. Bem escrito, em tom ensaístico mas direto, a obra possui, além de outras qualidades, a de oferecer aos leitores, menos familiarizados ou “esquecidos” de nossos clássicos, um sólido roteiro para atualizar sua formação, e aqui incluo professores, estudantes, profissionais liberais, como também jovens jornalistas e ex-sindicalistas desatualizados (esta “invenção” do Brasil faz-me lembrar a obra La invención de América, de 1977, do historiador mexicano Edmundo O’Gorman em sua busca do “sentido del devenir” no Novo Mundo, e o ensaio de 1992 do saudoso Darcy Ribeiro, A invenção do Brasil).

Pois bem, a obra de Cardoso condensa diálogos intelectuais, político-filosóficos que o ex-presidente manteve com alguns de nossos principais formadores, como Caio Prado Jr., Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Florestan Fernandes, Celso Furtado e Raymundo Faoro. E sobretudo do grande “formador” Gilberto Freyre, a quem dedica o segundo melhor ensaio deste livro (o primeiro foi sobre seu mestre e ex-catedrático Florestan Fernandes), de modo que honra seu próprio campo de conhecimento ao tratar dos nossos dois maiores sociólogos-historiadores do século 20 brasileiro.

No final do livro, o leitor é brindado com uma listagem de alguns estudos que “inventaram” o Brasil e posfácio descontraído e perceptivo de José Murilo de Carvalho. Como critério, o autor escolheu pensadores-pesquisadores que foram homens de ação voltados ao tempo presente, e iluminaram o caminho que o levou, rapazote ainda na década de 1940, do Colégio Estadual Presidente Roosevelt, onde, orientado por professores de excelência, leu Euclides da Cunha, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., à antiga Faculdade de Filosofia da USP da histórica rua Maria Antônia, já na década de 1950. Aí, como aluno e depois brilhante professor, redescobriu, com Ruth, o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Fernando de Azevedo, Florestan Fernandes e (talvez menos) Paulo Prado, mas também o vasto mundo das Ciências Humanas, de Weber, Marx, Mannheim, Durkheim, Sartre e inúmeros outros intelectuais. E logo conheceu homens de Estado, como Celso Furtado, principal formulador das teorias do desenvolvimento, subdesenvolvimento, pré-revolução e reforma. Teorias e praxis que o levou ao exílio após o golpe de 1964, onde descobriu a América Latina, a Cepal de Prebisch, respirou os novos ares do marxismo e do mundo, e elaborou, com outros cientistas sociais, a Teoria da Dependência.

Cardoso, a partir de então, aprofundou pesquisas e iniciou, em novo diapasão, diálogo com densos intelectuais e políticos de nosso tempo, sempre juntando peças do quebra-cabeças brasileiro. Bom articulador, não conseguiu porém fazer com que Caio Prado Jr. e Celso Furtado jamais se entendessem… Mas surpreende o número de conferências por ele proferidas no Brasil e no Exterior: com efeito, em larga medida sua obra se alimenta de aulas, conferências e debates, confrontos e revisões.

Do reformismo à resistência

Após circular pelos principais centros universitários mundiais, Fernando retorna ao país, envolve-se na resistência à ditadura de 1964 e na busca de um modelo político democrático para o Brasil. Ao atuar nas campanhas pela redemocratização do país, com o mesmo vigor que participara da Campanha pela Escola Pública nos anos 50, das Reformas de Base nos anos 60 etc, incrementou seu côté publicista e, não surpreendentemente, após a senatoria e o ministério de Relações Exteriores, conquistou a presidência da República, mercê do mais acabado programa de recuperação nacional até então aplicado no país: o Plano Real, que aliás daria fôlego e seria malbaratado nos governos seguintes.

O título do livro indica com clareza o foco principal: pensadores que inventaram o Brasil. Nada banal, pois a construção de um Estado moderno implica não apenas em engenharia política inovadora, mas em sofisticada e densa arquitetura intelectual para embasá-lo. Dir-se-ía cum granum salis que o problema também é o do polimento do universo político-cultural rude em que vicejam Renans, mais a carência de Estadistas. Pois razão tinha o historiador Caio Prado Jr., com quem Cardoso manteve relação até o fim de sua vida, quando dizia e repetia que “o Brasil é um país muito atrasado. Muito…”.

Do ensaísmo

Abrem a coletânea três ensaios sobre Joaquim Nabuco, em que leitor encontrará uma síntese do perfil do estadista, seu “olhar latino-americano” e uma análise aguda de sua ideologia democrática. Cardoso inclui na conversa clássicos como Tocqueville e historiadores contemporâneos, como José Murilo de Carvalho. Talvez seja neste estudo que Cardoso mais se identifique e apareça de corpo inteiro, pois Nabuco também era filho de político, preocupava-se com sua formação intelectual e cultivava, apesar de antiescravista consequente, suave postura de conciliador político. Outra semelhança: Nabuco, charmeur e não por acaso apelidado de Quincas o Belo, destacava-se por certo narcisismo, compreensível até, pois era talentoso e culto... De todo modo, Raymundo Faoro, outro intérprete do Brasil analisado neste livro, observou-me certa vez, sem a ironia habitual, que Cardoso revela “traços de estadista da estirpe de Nabuco”. Por fim, acrescente-se que Nabuco não era homem de posses, como tampouco Cardoso e seu pai general o foram, ao menos nos inícios de vida. Em seu governo, Cardoso inaugurou a Cátedra Nabuco na Universidade Stanford (Califórnia), pela qual passaram Gilberto Freyre, Oliveira Lima e José Murilo de Carvalho. Penso todavia que, no denso estudo de Fernando Henrique, caberia comentário ao célebre discurso de Nabuco “A ponte de ouro”, em que o estadista propôs, em conjuntura de grave crise do país, que liberais e conservadores dessem as mãos e estabelecessem sólida “ponte” para salvação da pátria. O que Cardoso, os tucanos e os petistas tampouco jamais conseguiram. Enfim…

Leve porém sutil é o ensaio sobre Paulo Prado, o mecenas modernista paulistano, a meu ver o Lampedusa brasileiro (1). Se indica em sua obra Retrato do Brasil (1928) os limites e a graça do “método”impressionista, já a obra de Gilberto Freyre merece análise acurada e aguda, apontando inclusive pontos vulneráveis nas teorias do grande escritor, a começar pelo “ecletismo metodológico e o quase embuste do mito da democracia racial” e da “ausência de conflitos entre as classes” por conta da “plasticidade e do hibridismo inato que teríamos herdado dos ibéricos”. Vale a menção ao cientista político e diplomata Tarcísio Costa, que o alertou quanto “às razões de pinimbas que muitos de nós, acadêmicos, temos com Freyre” (p. 87). Valeria frisar que Gilberto Freyre inaugurou em suas obras a pauta que seria a da badalada École des Annales, com os “novos” objetos, como habitação, alimentação, sexualidade, ecologia.

Enfim, o leitor poderá acompanhar o caminho percorrido e o método pelo qual Cardoso construiu ao longo da vida dialéticamente sua Teoria do Brasil, para distinguir a soma do resto. Na soma, o culturalismo e bom humor de Sérgio Buarque de Holanda, as lutas de classes em Caio, em Antonio Candido a docência e a crítica, em Florestan Fernandes a pesquisa dura e a requalificação do intelectual, em Celso Furtado o rigor e a continência crítica, em Raymundo Faoro o ceticismo e a complexidade do Estado patrimonialista. Mas o resto é enorme, e vale aguardar um segundo volume em que as obras de Anísio Teixeira, Manoel Bonfim, Darcy Ribeiro, Roger Bastide, Eduardo Portella, Cruz Costa, Sérgio Milliet, José Honório Rodrigues, Dante Moreira Leite e outros “explicadores” tenham lugar. Pois todos compõem a forma mentis desse estadista que escreveu o notável Arte da Política.

Virtù e vida social

Pois Cardoso sabe o que é virtù. Presidente, cercou-se de intelectuais de peso como Pedro Malan (Fazenda), Celso Lafer (Relações Exteriores) e, tardiamente, Miguel Reale Júnior (Justiça). Vale notar, por fim, que seu trânsito da academia para o publicismo, tanto na imprensa escrita como na mídia eletrônica, encorajou a muitos de nós professores a sairmos de nossos guetos para o debate público, pois até então “jornalismo era coisa para jornalistas”. Cardoso atravessou a fronteira pela senda aberta por Florestan Fernandes e se beneficiou, como muitos de nós, dos contatos do assistente sans-culotte do professor Fernando de Azevedo com o elegante girondino dr. Julinho (de Mesquita Filho), via Paulo Duarte, jornalista jacobino iracundo, que também cultivavam o gosto aristocrático pelo popular.

Finalmente, uma nota pitoresca. Sérgio Buarque de Holanda, copo na mão, durante uma festa acadêmica de defesa de tese, aproxima-se do saudoso Bento Prado Júnior, bom de filosofia e de copo, e pergunta-lhe: “O Fernando Henrique, que está ali, sorumbático, você confia nele?”. Bento, atônito, admira-se: “Sim, por que?” O historiador responde, com ceticismo: “Eu não confio em quem não bebe…”. E saíram dançando juntos, copo de uísque na mão.

nota

1
MOTA, Carlos Guilherme. Paulo Prado, il Tomasi di Lampedusa brasiliano. In AVELLA, Aniello (org.) Ritratto del Brasile. Roma, Bulsoni, 1995.

sobre o autor

Carlos Guilherme Mota é historiador, professor emérito da USP e autor de Ideologia da Cultura Brasileira e de História do Brasil (em co-autoria com Adriana Lopez).

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Pensadores que inventaram o Brasil

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Fernando Henrique Cardoso (Org.)

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