Não sei se tenho a competência necessária para apresentar este livro. Uma apresentação competente talvez exigisse um distanciamento do texto e da autora que não posso ter. Personagens e autora fazem parte da minha vida. Há muito tempo. Com os personagens, envolvi-me muito cedo. Ousaria dizer: desde que nasci. Pois é do ambiente construído, edificações e paisagens erigidas, a partir de pouco antes da década de 1950, década em que nasci, que aqui se fala. Sendo mais precisa: aqui se fala do que houve de melhor construído em Pernambuco, sobretudo no Recife, até o início dos anos 1970. Criança, deslumbravam-me, ao passear pela cidade, essas edificações modernas. Guardo particularmente na lembrança a impressão que me causava a casa do Doutor Medeiros, na Avenida 17 de Agosto. Tão moderna, despojada e chique. Mal sabia que era projeto de um arquiteto italiano, Mario Russo. Deste, só vim a ouvir falar por ocasião de uma comissão para retomada das obras do Hospital das Clínicas da qual fez parte meu pai. Foi, sem dúvida, o sentimento em relação à elegância, beleza e discrição dessas edificações modernas que me levou a ingressar no curso de Arquitetura, no qual tive como mestres os dois principais protagonistas deste livro: Delfim Amorim e Acácio Gil Borsoi.
Com a autora, hoje profissional reconhecida nacionalmente, encontrei-me pela primeira vez em finais dos anos 1980. Além de aluna, tive a sorte de tê-la como monitora na disciplina de Arquitetura e Urbanismo 3 do curso de Arquitetura da UFPE. Tratava da arquitetura moderna internacional. A arquitetura moderna brasileira era, então, contemplada por outras disciplinas, lecionadas pelo professor Geraldo Gomes da Silva, reconhecido pesquisador. Por isso, foi grande a minha surpresa quando Guilah Naslavsky convidou-me para orientar o seu Trabalho de Conclusão de Curso de Arquitetura sobre edificações protorracionalistas em Pernambuco. Deu-me, assim, a autora deste livro, um verdadeiro presente. As lindas edificações que deslumbravam meus olhos na infância — como o Pavilhão de Verificação de Óbitos do Derby, hoje sede do IAB-PE, ou as casas puristas do pioneiro Georges Munier — tornavam-se, então, alvo de uma reflexão aprofundada, compartilhada, guiada pela voracidade documental confirmada por todos que se aproximam da pesquisadora. Com essa pesquisa, Naslavsky ganhou o prêmio nacional de melhor trabalho de Conclusão de curso, no certame Ópera Prima. Tão importante quanto o prêmio é o fato de este trabalho haver servido de base para que a Prefeitura do Recife selecionasse alguns Imóveis Especiais de Preservação (IEPs): uma prova de que estudos de natureza teórica podem ter muita serventia prática.
Foi apenas um primeiro reconhecimento nacional da qualidade do trabalho de Guilah Naslavsky, sempre marcado por uma paixão quase obsessiva pela documentação, pela obtenção de fontes primárias, arquivos, relatos, tendo sempre o cuidado no cotejamento das múltiplas fontes disponíveis. Diplomada e premiada, Naslavsky continua incessantemente a pesquisar sobre arquitetura moderna, especialmente aquela da terra onde nasceu, como demonstram a dissertação e a tese, efetuadas ambas na USP, que agora alicerçam este livro. Ele foi um esforço pioneiro para reunir uma ampla documentação e tentar fazer uma primeira análise da produção de arquitetura moderna em Pernambuco. Muita luta e garra foram necessárias para obter os meios para ir a campo, adentrar arquivos, fotografar, entrevistar pessoas, gravar depoimentos. É preciso enfatizar esse esforço, uma vez que, até o final da tese de Naslavsky (2004), como aqui está dito na Introdução, poucos trabalhos existiam sobre o assunto. No espaço de tempo entre o final da tese e esta publicação, muitos trabalhos surgiram, quase todos, ou pelo menos os melhores, tiveram na pesquisa de Naslavsky uma fonte obrigatória. Mesmo porque, na condição de professora e pesquisadora, a autora vem orientando muitas pesquisas acerca do tema.
Pioneiro na temática, este estudo o foi também, na tentativa de escapar da historiografia tradicional do gênero vida e obras dos autores. Olhando cada objeto e tentando extrair dele, a partir da descrição minuciosa, a compreensão das qualidades arquitetônicas muitas vezes imperceptíveis à primeira vista ou mesmo por ocasião de uma visita ao local, Naslavsky tentou buscar frequências, recorrências, de um lado, e singularidades, de outro, que caracterizassem a arquitetura moderna de Pernambuco no período estudado. Este remonta ao nascedouro dessa arquitetura. Contudo, tem como foco privilegiado os exemplares magníficos, produzidos no contexto da dinâmica urbana do período pós-Segunda Guerra Mundial. São obras que fazem parte de um projeto cultural mais amplo, de uma busca de um modo de viver urbano que logo foi interrompido. Muitas das obras aqui estudadas já se encontram destruídas ou vandalizadas, como bem documentou o professor e arquiteto Luiz Eirado Amorim em seu livro Obituário arquitetônico: Pernambuco modernista (2007).
O trabalho que vão ler é fruto de muitos anos de pesquisa, quase vinte anos, escrito por uma autora que não se contenta com fórmulas feitas. É uma atitude igualmente presente nos inúmeros artigos mais recentes, muitos dos quais tive a honra de ser coautora. Foi, aliás, nessa condição que, quase dez anos depois do prêmio Ópera Prima, obtivemos, em 2010, uma menção honrosa concedida pela Associação Nacional de Pesquisa em Arquitetura (Anparq), por artigo escrito sobre o pioneirismo e o valor da arquitetura moderna de Pernambuco.
Creio que o leitor pode agora compreender minha alegria em apresentar este livro, mas também a impossibilidade de fazê-lo de maneira distante e isenta.
A arquitetura, como a arte moderna, é muitas vezes difícil de agradar aos olhos leigos. Sóbria, discreta, racional, ela não se exibe — é para ser descoberta, vivida, muitas vezes com a mente guiando os sentidos. A cultura visual tem priorizado o fachadismo, o pastiche. Daí muitas vezes a dificuldade em sensibilizar as pessoas, mesmo aquelas com alto capital cultural reconhecido, para a preservação do acervo tão rico que ainda nos resta. Conto que a análise perspicaz e cuidadosa de Guilah Naslavsky aqui oferecida seja um antídoto a essa ação destrutiva. Tenho certeza de que o leitor vai olhar o que restou da nossa cidade moderna, hoje tão agredida, com novos olhos. Da Caixa-d’água de Olinda ao Edifício Barão de Rio Branco, na Boa Vista, passando pelo Edifício Acaiaca, na Avenida Boa Viagem, degustem a aventura da nossa modernidade neste passeio que a autora nos oferece.
nota
NE
O presente texto foi publicado como apresentação do livro.
sobre a autora
Sonia Marques é professora da Universidade Federal da Paraíba e membro do Conselho Editorial de Arquitextos, revista científica do portal Vitruvius.