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Eliane Lordello apresenta um resumo da biografia de Saul Steinberg e faz uma resenha do catálogo da exposição dedicada ao artista feita em 2011.

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LORDELLO, Eliane. Saul Steinberg e as aventuras da linha. O catálogo de uma exposição memorável. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 139.03, Vitruvius, jul. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.139/4801>.


O artista Saul Steinberg nasceu em 15 de junho de 1914, em uma vila da Romênia e morreu na cidade de Nova York, em 12 de maio de 1999. Estudou filosofia e letras na Universidade de Bucareste, e depois, arquitetura, no Regio Politecnico, em Milão. Forçado a emigrar para fugir do antissemitismo e assim poder exercer a sua profissão, Steinberg viveu um tempo na República Dominicana. Nesse país, começou a publicar na imprensa americana, em especial, na revista The New Yorker, com a qual iniciou, em 1941, uma colaboração que se prolongaria por quase 60 anos. Em 1942, recebeu o visto americano e passou a viver em Nova York, trabalhando como empregado do Office of War Information, Graphics Division. Em 1943, obteve cidadania americana e foi recrutado para servir na marinha em missões na China, na Índia e na Itália. Em 11 de outubro de 1944, casou-se com a pintora Hedda Sterne. Seu primeiro livro de desenhos, All in line, foi publicado em 1945, organizado por Victor Civita, fundador da editora Abril, com colaboração de Hedda Sterne.

No decorrer de sua carreira, Steinberg conheceu e conviveu com artistas, designers, arquitetos, escritores, fotógrafos. Entre esses profissionais figuram Alexander Calder, Pablo Picasso, Willem de Kooning, Le Corbusier, Vladimir Nabokov, Christopher Isherwood, Henri Cartier-Bresson.

Steinberg trabalhou para o cinema, criando, em 1955, um desenho panorâmico para a sequência de abertura do filme O terceiro tiro (The Trouble with Harry), de Alfred Hitchcock. Trabalhou para a dança, desenhando um cenário para o balé The Concert, que estreou em 1956, criado pelo coreógrafo Jerome Robbins a partir de temas da arte do próprio Steinberg. Trabalhou para a música clássica, desenhando para uma ópera de Gioachino Rossini, realizada em 1959, no Julliard Opera Theather, em Nova York. Posteriormente, em 1967, projetou e supervisionou a execução de quatro telas para a ópera itinerante The Soldier’s Tale, de Igor Stravinsky. Entre desenhos seus realizados para as mais diferentes áreas de conhecimento e produção, consta, em 1983, o lançamento do rótulo do vinho Château Mouton Rothschild.

Viajante por profissão e por gosto, Steinberg fez uma viagem de volta ao mundo, que incluiu, entre outros países, a Itália, a França, a Eritreia, o Egito, a Etiópia, o Quênia, a Índia, e rendeu muitos desenhos. Tendo exposto em galerias de várias nações do planeta, este artista e cidadão do mundo foi reconhecido por sua biografia e obra. Entre outros prêmios e títulos, Steinberg recebeu a medalha de ouro por eminência em arte gráfica pela American Academy of Arts and Letters, em 1974; e o título de doutor honoris causa pela Harvard University, em 1976.

Todas as informações acima compiladas constam da cronologia do artista, exibida na exposição Saul Steinberg: As aventuras da linha. O nome desta mostra liga-se diretamente à base do desenho de Steinberg – a linha –, embora o artista empregue também o tracejado, o pontilhismo e a hachura em boa medida. A exposição esteve em cartaz no Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio de Janeiro, entre 29 de maio e 21 de agosto de 2011, e na Pinacoteca do Estado de São Paulo, entre 3 de setembro e 6 de novembro de 2011.

A exposição resultou de um trabalho de três anos de alentada pesquisa realizada por Roberta Saraiva. Sob sua curadoria, foram reunidos mais de 100 trabalhos do artista, em sua maioria datados das décadas de 1940 e 1950, incluindo, portanto, os anos pós-guerra. Para sua plena realização, esse trabalho recebeu apoio de entidades nacionais e internacionais. The Saul Steinberg Foundation, na pessoa de sua diretora executiva, Sheila Schwartz, apoiou este projeto desde o seu começo; e muitas obras vieram a integrar a exposição graças ao trabalho de restauro realizado por Daria Keynan, de Nova York, informa a curadora da mostra.

Como era de se esperar, todo esse esforço resultou também em um excelente catálogo de exposição, o livro Saul Steinberg: As aventuras da linha. Organizado por Roberta Saraiva e publicado em conjunto pelo Instituto Moreira Salles e a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o livro é aberto por uma apresentação de Flávio Pinheiro (Superintendente Executivo, Instituto Moreira Salles) e Marcelo Mattos Araujo (Diretor Executivo, Pinacoteca do Estado de São Paulo).

No texto de abertura, Pinheiro e Araujo relembram que esta é a segunda exposição individual de Steinberg no Brasil. A primeira, intitulada Saul Steinberg, foi inaugurada em 18 de setembro de 1952, no Museu de Arte de São Paulo (Masp), com a presença do artista e de Hedda Sterne, que também vinha abrir uma mostra sua no mesmo museu (p. 28). Tratava-se, nas palavras dos autores, de uma “iniciativa ousada”, pois Steinberg, embora já então conhecido por seu trabalho na The New Yorker, não era ainda um nome estabelecido no circuito de museus de artes plásticas. Concluindo, com quase seis décadas de intervalo entre uma exposição e outra, Steinberg “firmou-se como um dos nomes mais influentes do desenho do século XX”, ressaltam os autores da apresentação (1).

O livro conta com textos da própria Roberta Saraiva, e de estudiosos e conhecedores da obra de Steinberg. São artigos assinados por Flávio Motta, Daniel Bueno (em coautoria com Saraiva), Rodrigo Naves, Adam Gopnik, e Helena Leopardi, responsável pela já referida cronologia do artista. A obra traz ainda um portfólio de Steinberg e uma entrevista sua à jornalista Grace Glueck, jornalista e editora de arte do jornal The New York Times.

O texto de Roberta Saraiva, As aventuras da linha, começa por recuperar o histórico daquela primeira exposição do artista, no Masp. Na época, ressalva a curadora, Steinberg “ainda não tinha atrás de si as 89 capas e mais de 1.200 desenhos que acumularia ao longo de seis décadas de colaboração com a famosa revista e que responderiam em boa medida por sua fama mundial” (2).

Para a viabilização daquela primeira mostra no Masp, teve grande importância a direção de Pietro Maria Bardi, por sua gestão de espírito modernista à frente do museu, e, também, por seu conhecimento pessoal de Steinberg. Bardi e sua mulher, Lina Bo, conheciam Steinberg desde seus tempos comuns em Milão, sendo a amizade do trio detalhada no texto As aventuras da linha, que é inclusive ilustrado por carta de Steinberg ao então diretor do Masp. Igualmente são citados Victor Civita e seu irmão Cesare, por sua colaboração com a carreira de Steinberg à época.

Delimitando a mostra de 1952 no Masp, Roberta Saraiva relata que a exposição vista em São Paulo era “um extrato da mostra” que em fins de janeiro do mesmo ano fora inaugurada em Nova York, nas galerias Sidney Janis e Betty Parsons, que representavam Steinberg. Fotos dessas mostras anteriores em Nova York, inclusive indicando quais dos desenhos nelas expostos integram a exposição Saul Steinberg: As aventuras da linha estão presentes no texto da curadora.

Para além da abordagem histórica da primeira exposição, o texto de Saraiva contextualiza outras exposições importantes do artista à época, tais como a Trienal de Arquitetura de Milão (1954), onde ele expôs, sob encomenda do evento, o Labirinto das crianças (Labirinti dei ragazzi). Sobre essa participação e de outras obras do artista no evento de Milão, as palavras da curadora são terminantes: “Expondo essas obras em Milão, Steinberg retornava à cidade que vira os primeiros passos de sua carreira e evidenciava a que ponto se deixara impregnar pela formação arquitetônica”. Esta afinidade foi notada, à época, por Le Corbusier, acrescenta a curadora, que amplia tal reflexão pelo acréscimo de uma nota, resgatada de texto de Jean van den Heuvel, em que se lê a seguinte afirmação de Steinberg, posterior à Trienal: “A arquitetura é o ramo mais nobre, difícil e filosófico das artes” (3).

Feito o resgate histórico e a reflexão sobre importantes exposições de Steinberg nos anos 1950, e tendo identificado famílias e séries formadoras da obra do artista, Saraiva passa a explicar os critérios da formação do recorte da mostra sob sua curadoria – Saul Steinberg: as aventuras da linha. Em suas próprias palavras:

“Esta exposição tomou o partido de respeitar a lógica ‘serial’ que rege as diversas famílias temáticas e buscou reunir um corpo de obras do período em que figuram, entre outros, desenhos que estiveram em Fourteen Americans, 1946; obras da exposição de Nova York, bem como de sua itinerância pela Europa e pelo Brasil, de 1952 a 1954; e os quatro projetos murais concebidos para a Trienal de Milão – sendo a primeira ocasião em que essas quatro obras são reunidas desde 1954” (4).

Conforme tais famílias temáticas, As aventuras da linha reúne uma torrente de temas. Entre eles, são destacados aqui alguns dos principais, para que se possa formar uma ideia da abrangência da mostra. Ei-los: autorretratos; automóveis; jogadores de bingo; trens, estações e ferrovias; caubóis; mulheres de casaco de pele; monumentos fictícios; gatos, pássaros, insetos, animais sem nome; músicos; desenhos de arquitetura, urbanismo e cidades; desfiles; desenhos de viagem; bombardeios; documentos e assinaturas inventados; desenhos feitos sobre fotografia”.

Na impossibilidade de abarcar tamanha diversidade em um único texto, serão aqui comentados apenas três temas, selecionados por sua reconhecida importância na obra de Steinberg, e, também, forçoso admitir, pelo quanto cativam a esta resenhista. São eles os caubóis, os monumentos fictícios, os documentos inventados.

Caubóis é um tema exposto em desenhos datados, em sua maioria, do período de 1951 a 1952, sendo apenas um de 1946, intitulado Quatro Cavaleiros, que pode ser compreendido dentro do tema. Em todos esses desenhos, há um rebuscado tratamento dos distintivos que caracterizam esses personagens, tais como chapéus, botas, esporas, cartucheiras. Mas em cada um deles, estes distintivos são diferenciados na forma. Seu rebuscamento é tal que os distintivos prevalecem sobre os personagens, sendo o paroxismo dessa prevalência alcançado no desenho Sem Título (Cawboys), 1952. O ápice é nítido: neste desenho, quatro caubóis são vistos por trás de uma porta de saloon, apenas por seus chapéus e botas. Somente o rosto do que ocupa o centro da porta é esboçado por inteiro, sendo repetido nos demais, que surgem pela metade, por trás dele. Neste conjunto de rostos, o único elemento notável é o bigode, retorcido como a aba dos chapéus.

Vale lembrar que ao tempo em que Steinberg desenhava a série Caubóis corria a chamada “era de ouro” dos faroestes. Data, desse período, por exemplo, o lançamento da trilogia de cavalaria de John Ford, protagonizada por John Wayne e consagrada pela crítica: Sangue de Herói, 1948; Legião Invencível, 1949; e Rio Grande, 1950 (5). A série Caubóis pode então ser entendida como uma sátira ao personagem icônico da cultura americana. Mais ainda, com esta série, Steinberg faz a sua crítica daquele que é reconhecido pela história do cinema como o seu mais antigo gênero e “a única arte totalmente americana” (6).

Os monumentos fictícios, que também podem ser entendidos como troféus, são apresentados em dois desenhos, datados de 1945, ambos intitulados Monumentos: as pessoas importantes. Diferindo apenas no conteúdo e nas dimensões, são dois desenhos hilários ao retratar, em estátuas de tronco e cabeça, personagens dos mais rebuscados cabelos, barbas e bigodes, chapéus e quepes.

Os retratados estão todos vestidos em trajes formais, pejados de medalhas, emblemas, insígnias, condecorações e berloques os mais diversos. Essas estátuas repousam em pedestais cômicos, de formas recortadas de modo a denotar sua inexorável instabilidade. Os pedestais são ornados por placas sem texto, em que figuram desenhos alusivos à biografia dos personagens retratados, sempre sugerindo, por garatujas e muito ironicamente, suas possíveis profissões, por exemplo, militar, industrial, escritor, etc. O tratamento brincalhão e a instabilidade dos monumentos são indicativos de uma boa dose de iconoclastia por parte do artista, de seu desapreço pela formalidade e pela história personalista.

Os documentos inventados são, antes de tudo, muito bonitos. Consistem em cartas, diplomas, certificados, e toda sorte documentos de ordem burocrática expressos em papel. Todos eles revelam um primoroso exercício de composição, usando tinta sobre papel, aquarela e carimbos de borracha.

Em que pese um projeto gráfico, pode-se dizer que em cada um dos documentos as epígrafes, os textos principais, os cabeçalhos e rodapés, e os emblemas, distintivos, carimbos e assinaturas que os chancelam foram denodadamente trabalhados. Com eles, Steinberg destila o seu mais refinado senso de humor e a sua mais arguta crítica à burocracia e à formalidade. Em conjunto, esta série parece afirmar que qualquer pessoa pode criar um diploma, um certificado, enfim, um documento legal – embora certamente ninguém o possa fazer com a maestria e o bom humor de Steinberg.

Tendo o casal Steinberg e Hedda Sterne viajado pelo Brasil após a abertura da exposição de 1952, era natural que desenhos “brasileiros” integrassem a exposição de 2011, Saul Steinberg: as aventuras da linha. Na oportunidade de 1952, o casal visitou Aparecida do Norte (SP), Petrópolis (RJ), Salvador (BA), Recife (PE), Belém (PA) e Manaus (AM). Desses desenhos, dois foram selecionados para a exposição de 2011: Pernambuco e Grande Hotel de Belém. Nenhum dos dois foi feito propriamente no Brasil, explica a curadora, mas sim baseados em desenhos de anotação e em cartões postais colecionados por Steinberg durante aquela viagem.

O desenho Pernambuco retrata um centro urbano formado por igrejas de frontões adornados por volutas, lojas com seus nomes nas fachadas, obeliscos, estátuas diversas, calçadas de pisos ornamentados, como as de mosaico português que ainda resistem no Recife. Esse centro é atravessado por ônibus, bondes e bicicletas, e reúne, em suas ruas e praças, uma profusão de vendedores ambulantes, passantes diversos, e pássaros sobre árvores. No seu canto direito inferior, lê-se o nome da cidade que certamente o inspirou: “Recife 1952”.

O desenho Grande Hotel de Belém apresenta, em primeiro plano, uma árvore de tronco baixo e forte, amplamente esgalhada, habitada por uma fauna de pássaros multicoloridos e percorrida por um verdadeiro formigueiro. Ao fundo, vê-se uma edificação de larga fachada aberta em arcadas, em cujo centro, sob o frontão, lê-se, em caligrafia, o nome do hotel. Entre os dois planos, aparece, no que seria o recuo da edificação, uma série de mesinhas e uns poucos passantes.

Para a curadora, no entanto, “nenhuma obra singular em Saul Steinberg: as aventuras da linha reúne, resume e projeta tão bem o espírito do artista nos anos em pauta como A linha”. Originalmente concebido para uma das paredes do labirinto de Milão, A linha é um desenho de mais de dez metros de comprimento, atravessado no sentido longitudinal por um traço finíssimo.

Na extremidade esquerda da linha, vê-se a face do artista e sua mão segurando o lápis a dar início ao percurso, trazendo, no extremo esquerdo da folha, a inscrição “starts here” (começa aqui). Em seu decorrer, o desenho se desenvolve sugerindo perspectivas, alternando frente e fundo, variando temas lineares, tais como linha do horizonte, corda de varal, linha férrea, rodapé de assoalho de madeira, beira de mesa, viga de pontes pênseis, entre outros temas, para findar apenas em uma linha. Na extremidade direita final do desenho, surge uma simples mão, empunhando um fino traço, que pode ser o do cabo de um bico de pena, fechando o desenho.

Depois de contextualizar a vida e a obra do artista, e de expor claramente os critérios e o significado da sua segunda mostra no Brasil, Saraiva conclui por enaltecer, merecidamente, o refinamento, o humor e a inteligência de Steinberg. Situando-o por sua importância para o século XX, a curadora finda por defini-lo como “um protagonista de primeira linha”.

Homo ridens, de Flávio Motta é o texto seguinte, na ordem do catálogo. Foi originalmente publicado no Diário de São Paulo, em 25 de setembro de 1952, a propósito da exposição do Masp e da estada de Steinberg no Brasil. Motta parte da ideia de caricatura como uma arte que pode agir como uma “maneira de degenerar as coisas”, diante da qual o observador “assiste a um processo de decomposição”. Fundamentado por tais ideias e reflexões, conclui:

“Steinberg deitou o germe da decomposição sobre o mundo moderno. Faz crítica a nossa cultura. Não é o homem, exclusivamente, que ele satiriza, mas a arquitetura, a paisagem, o arranjo que o homem deu ao mundo” (7).

A análise de Motta se estende para o livro Todo en líneas, em que Steinberg desenha a China e a Índia, países nos quais, a seu ver, o artista perde o senso de humor, o que o autor atribui a coerência das relações entre homem e cultura nesses países de longa tradição. O texto é ilustrado por desenho de Steinberg feito em papel de carta do Copacabana Palace. Trata-se de um agradecimento do artista a Motta, então um jovem professor de história da arte, colaborador de Pietro Maria Bardi, que atuou como guia de Steinberg no Rio e em São Paulo.

Ao texto de Motta, segue o Diário de Viagem: Steinberg no Brasil, 1951-1952, uma compilação organizada por Roberta Saraiva e por Daniel Bueno. Sua síntese tomou por base, conforme explicam os autores, as seguintes fontes: “documentos, cartões postais, cartas e telegramas depositados no Museu de Arte de São Paulo, no Instituto Lina Bo Bardi, na The Saul Steinberg Foundation e na Yale University” (8). Assim fundamentado, o diário cobre desde os convites e as negociações preliminares ao que viria a se tornar a primeira exposição de Steinberg no Brasil, até a correspondência posterior à viagem, quando o artista já estava de volta ao lar.

O texto é fartamente ilustrado por desenhos de apreensão da viagem, entre os quais veem-se temas tão diversos quanto relances e detalhes de arquitetura, fachadas, avenidas, jardins, parques, trens, estátuas, tipos humanos, animais, plantas. É igualmente ilustrado por postais, fotografias que registram o artista, sua mulher, seus amigos no Brasil; e ainda por telegramas, radiogramas, e toda sorte de formulários (recibos, páginas de livros de registro de hotéis, etc.).

Entre os desenhos cariocas e fluminenses, figuram, por exemplo: o Theatro Municipal do Rio de Janeiro; balcões representativos do proto-modernismo dos edifícios residenciais; o piso do calçadão de Copacabana; a Avenida Getúlio Vargas; a estátua de Pedro II sentado, em Petrópolis.

No Recife, destacam-se: a fachada da Estação Central de Trens; fachadas de sobrados esguios, com anotações do artista sobre seus detalhes de frontões e coroamentos; frontispícios de igrejas e seus adros, inclusive com os desenhos de piso representativos dos mosaicos portugueses tradicionais no centro da cidade. Em Olinda: a caixa d’água modernista; vendedores no mercado municipal; tipos humanos – e tudo isso entremeado por anotações tais como: “dogs all over” (cachorros por toda parte), entre outras.

Há ainda muito a se dizer, se contempladas as outras cidades visitadas pelo artista, a exemplo de Salvador, Belém, Manaus. Além de ilustrar as páginas do diário, esses desenhos figuram em seus originais no texto, posto que reproduzidas aí as páginas dos cadernos de viagem de Saul Steinberg, encontráveis na YCAL/Beinecke Library, New Haven.

Para além da interpretação do Brasil pelo artista, a leitura deste diário desvela passagens tão lindas quanto elucidativas da relação veramente corporal de Steinberg com seu desenho. Veja-se, a exemplo disso, esse momento de essencial intimidade entre artista e desenho, registrado, em São Paulo, no período entre 18 e 20 de setembro de 1952:

“Em São Paulo, o casal ficou hospedado na recém-construída (1951) 'casa de vidro', projetada pela arquiteta Lina Bo Bardi e situada em meio a uma vegetação exuberante. Segundo a anfitriã e o jovem arquiteto Flavio Motta, durante uma recepção em homenagem aos visitantes, a chuva forte e a mata próxima teriam feito com que os vidros se embaçassem. Steinberg teria desenhado então, com a ponta dos dedos, uma coluna antiga e uma figura feminina que derramaria uma lágrima assim que o vapor se condensasse” (9).

Em outros momentos, o diário revela passagens de uma leitura movida pelo sentimento de estranheza em relação ao que se vê nos locais visitados, como é natural acontecer aos viajantes em geral. Alguns desses episódios de estranhamento revelam a espontaneidade de Steinberg, o seu bom humor. A propósito, veja-se o relato abaixo, sobre o Recife, lugar que o artista admitiu como o que mais gostou no Brasil (10).

“Certa vez, estive no Brasil e subi o rio Amazonas e estive em lugares muito curiosos como Pernambuco, Rio, São Paulo. O que mais me impressionou aconteceu numa praia distante, acho que foi em Pernambuco, talvez no Recife. Primeiro, vi um bode verde, depois vi uma galinha verde, depois um cachorro verde. Era uma coisa misteriosa, ver tantos bichos verdes. Acabei descobrindo a razão. Havia uma cerca recém-pintada. E os bichos tinham se esfregado na tinta da cerca. Foi o que mais me impressionou. Eu devia falar sobre a injustiça social no Brasil, sobre a arte, o clima, sobre situações glamurosas, como a minha exposição por lá. Mas o cachorro verde, a galinha verde foram as coisas realmente essenciais” (11).

Na consecução do diário, abre-se o texto de Rodrigo Naves – Sair da linha: uma introdução a Saul Steinberg (12). A personalidade do artista, seu humor, o modo como lidava com o cotidiano, questionando as rotinas, as formalidades, dão início à reflexão de Naves sobre Steinberg e sua obra. No encadeamento, prossegue por tentar explicar a notável capacidade de Steinberg para distinguir os traços característicos dos ritos sociais que tornam a existência “menos ameçadora e imprevisível”. Segundo tal intuito, aventa dois aspectos da biografia de Steinberg, ancorados, ambos, em dois fatos: a origem romena-judaica do artista e sua mudança definitiva para os Estados Unidos.

Conforme as definições de Naves, o judaísmo representa “a falta de lugar”, o que evoca as diásporas e o histórico nomadismo dos judeus. Já os Estados Unidos, representam “o lugar por excelência”, “a outra terra prometida”, no dizer do autor, remetendo a dois fatos: o de serem os Estados Unidos o país que o artista escolheu para viver; e o de ser historicamente reputado de “terra da liberdade”, por imigrantes das mais diversas culturas.

Tendo assim exposto os pressupostos de sua análise, Naves pondera que as circunstâncias da vida de Steinberg a nada levariam se o artista não encontrasse “uma forma de expressão condizente com seu olhar dissonante”. A partir desse pensamento, parte para a consideração das influências que marcaram a obra de Steinberg. Inicia esse processo remontando a uma declaração do artista, que se dizia influenciado por toda a história da arte, o que inclui, na enumeração do próprio Steinberg, “pinturas egípcias, desenhos de banheiros públicos, arte primitiva e de loucos, Seurat, desenhos infantis, Paul Klee”. Sem nada opor a essa enumeração, Naves, todavia, ressalva: “Mas faltaria acrescentar que a atração por todas essas manifestações não existiria se a arte moderna não tivesse mostrado um enorme interesse por aqueles que fugiam aos convencionalismos acadêmicos”.

É inserindo Steinberg no âmbito da arte moderna que Naves analisa as decisões do artista, tais como a de sempre ter evitado ser um estilista e a de ter feito da imprensa seu veículo por excelência. É também pautado pela contextualização de Steinberg na arte moderna que o autor prossegue por analisar uma seleção sua de obras do artista, em que figuram temas bastante diversos entre si. Exemplificando: uma cena de lazer aquático encimada pela palavra Liberty, e uma cantora lírica.

Naves conclui seu texto inserindo a visão de Steinberg no contexto da cultura visual americana e relativizando-a com a ótica de outros artistas, tais como Edward Hopper. Em seu fechamento, reproduz uma conversa telefônica do artista com um dos muitos cidadãos chamados Saul Steinberg na cidade de Nova York. Ao lê-la, facilmente notará o leitor que o artista se reconhecia na multiplicidade e no anonimato da imensa cidade, e, em conformidade com sua condição moderna, sabia-se nela representado e dela representante.

Na sequência, vem a entrevista concedida por Steinberg a Grace Glueck, datada de 1970 e originalmente publicada em Art in America. A entrevista é precedida por uma apresentação do artista, iniciada por apelidos dignificantes a ele concedidos – o “O Delacroix do Rabisco, o Voltaire visual”. Esta apresentação define a obra de Steinberg como “sempre autobiográfica” (13), definição confirmada, naquele momento, pelo próprio artista, ao assumir que há bastante tempo sua obra era já uma “espécie de diário”. No desenvolvimento, a jornalista discorre sobre a atuação de Steinberg como oficial da marinha norte-americana durante a Segunda Guerra Mundial e seu retorno aos Estados Unidos. Dessa experiência decorrem desenhos da África do Norte, Extremo Oriente e da vida militar nos Estados Unidos.

Glueck cita esses desenhos distinguindo-os como os que deram fama ao artista e comprovaram a agudeza de seu senso de observação. Para além das experiências de vida e suas relações com a obra do artista, esta apresentação contempla também as técnicas adotadas por Steinberg em seu desenho, destacando, em especial, o uso do carimbo de borracha. O destaque é justificável, pois, segundo especula a autora, é provável que Steinberg tenha sido o inventor dessa prática como forma artística.

No encadeamento, é iniciada a entrevista, da qual serão destacados aqui algumas das principais assertivas de Steinberg sobre o seu trabalho. Em primeiro lugar, desponta a afirmação de que sua arte não visa produzir mercadoria: “quando faço um desenho – do modo como costumo fazer –, faço-o para ser reproduzido e vendo os direitos de reprodução.” Eis um motivo pelo qual alegava não gostar de fazer esculturas, pois se convertem em objetos, mercadorias. O outro, nada lisonjeiro para os escultores é o de que “esculturas juntam poeira”.

Ainda sob a ótica da negação da mercadoria, Steinberg explica o seu incômodo em fazer exposições, por requerem, na montagem, esforço físico de outrem. Ao contrário da escultura, a pintura é reverenciada: “Pintar é uma coisa que me seduz, é bonito demais. E a técnica da pintura é prolixa – só de falar sobre ela eu já fico prolixo” (14) (em se tratando de Steinberg, a exclamação final é mesmo um gracejo inevitável).

A entrevista é longa e cativante em todo o seu desenrolar. Ela deslinda uma série de conceitos e reflexões, que, expressos pelo artista de modo direto, por sua franqueza e simplicidade, desvendam os preceitos que pautam sua vida e obra. Seguir demonstrando a riqueza dessa entrevista é tarefa impossível para o tamanho desta resenha. Por este motivo, recorre-se, aqui, a uma única mas significativa resposta do autor, por remontar aos tempos de sua mais tenra idade – sobre sua relação com o desenho na infância: “Nunca frequentei escola de arte nem nada parecido, mas não parei de desenhar. É por isso que as crianças desenham: para explicar a realidade a si mesmas. E essa é a razão pela qual continuo desenhando” (15).

Longe da pretensão de sintetizar a entrevista, os trechos dela destacados visaram somente dar ao leitor uma ideia de sua riqueza e abrangência, em tudo recomendando sua leitura na íntegra, o que o catálogo vem a proporcionar. Feita essa recomendação, é tempo de passar para o texto conclusivo do catálogo: O que Steinberg viu, de Adam Gopnik (16).

Datado do ano 2000 e originalmente publicado na The New Yorker, o artigo de Gopnink – escritor, crítico e ensaísta, colaborador da revista desde 1986 – principia por lembrar que “desde o início, a arte norte-americana floresceu graças a artistas que não são oriundos dos Estados Unidos e que não fazem arte”. Neste coletivo, o autor insere Saul Steinberg, destacando-o como “o mais surpreendente” entre os artistas, “em nossos tempos”. Ato contínuo, Gopnik aborda o inevitável: a dificuldade de classificar Steinberg como um cartunista. Mas identifica, o quê, no artista, provém do cartum: “seu estilo sucinto, provocador e epigramático”. Ao que acrescenta: “Encontrar metáforas claras, memoráveis para os costumes”, tarefas que os cartuns tão bem desempenham, era também o que Steinberg tão bem sabia fazer” (17). Além disso, lembra Gopnik, a posição do cartum, na “periferia da arte”, era agradável a Steinberg.

Desenvolvendo a sua abordagem sempre na correlação entre vida e obra de Steinberg, Gopnik assume a dificuldade de escrever sobre o artista, a qual justifica pelo fato de sua obra parecer tão inteiramente sua. Isso, no entanto, não implica em considerar o próprio Steinberg uma pessoa difícil. Ao contrário, afirma Gopnik, “mais que qualquer outra coisa, ele apreciava a simplicidade, as afirmações diretas”. Além disso, era um artista que não visava o enaltecimento, para Steinberg “a palavra “sincero” era o maior tributo que se podia prestar a outro artista”, conclui Gopnik.

Sobre o ofício de Steinberg, a definição de Gopnik é tão direta quanto aprazia ao artista ser: “Ele não fazia arte, nem cartuns sobre arte. Retratava a vida, vista através do prisma de sua mente. Olhava para seu tempo e pertencia a ele” (18). Em sua entrada conceitual no trabalho de Steinberg, o autor identifica as influências geográficas e culturais do artista (a formação judaica na Romênia, o curso de arquitetura na Itália; a imigração para os Estados Unidos). Igualmente, identifica os influxos estilísticos, em especial, o surrealismo: “Ao longo de toda a vida ele apoiou o programa surrealista básico: desenhar cenas da vida da mente à medida que ela vai se dando” (19).

A abordagem de Gopnik segue percorrendo as fases da vivência americana de Steinberg e a evolução de seu trabalho. Nesse percurso, contempla a adoção dos Estados Unidos como tema pelo artista, em torno de 1942, então seguro com seu trabalho na The New Yorker, o que o levou a uma pesquisa da história americana, inclusive com viagens específicas pelo país. Identifica a perfeita compreensão pelo artista da Nova York dos anos 1950, da qual elegeu como símbolo, para representação o prédio do Correio. Na explicação da pertinência da escolha desse prédio por Steinberg, Gopnik é preciso e exato: “Não se trata de fé no Estado, mas no funcionamento magicamente eficiente da prosperidade, a fé que os americanos ainda têm de que telefones, televisores e o Federal Express haverão todos de funcionar, como compete” (20).

A história corre, e os anos 1960 e 1970 e suas consequências na carreira de Steinberg são também analisados por Gopnik com muita acuidade, fazendo deste texto final um notável encerramento para a história que se deu a conhecer neste catálogo. Seguem-no, ainda, a cronologia de Steinberg, já assinalada no início desta resenha, e uma vasta bibliografia sobre o artista.

Steinberg, é claro, merecia todo o empenho que demonstrou a exposição Saul Steinberg: as aventuras da linha, referendado por este catálogo. Merecem-no, também, como um adorável presente, todos os que trabalham pelo desenho de imprensa no Brasil, e todos os que admiram esse modo gestual de interpretar e traçar o mundo, cotidianamente, nas páginas impressas.

nota

NA
Eu agradeço aos meus pais, João e Marisa, ao meu irmão João Luiz, a Rosa Zambraño, Terezinha Saleme e todos os amigos que compreenderam (e ainda compreendem) o meu fascínio pelo desenho de imprensa. Muito obrigada!

1
ARAUJO, Marcelo Mattos; PINHEIRO, Flávio. Apresentação. In: SARAIVA, op. cit., nota 1, s/p.

2
SARAIVA. Op. cit., nota 1, p. 10.

3
Idem, ibidem, p. 33.

4
Idem, ibidem, p. 34-35.

5
Cf. BERGAN, Ronald. Guia ilustrado Zahar cinema. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, p. 174-177.

6
Idem, ibidem, p. 174.

7
MOTTA, Flávio. Homo ridens. In: SARAIVA, Roberta (Org.). Saul Steinberg: as aventuras da linha. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles; São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2011, p. 38-39.

8
SARAIVA, Roberta; BUENO, Daniel. Diário de viagem: Steinberg no Brasil, 1951-1952. In: SARAIVA. Op. cit., nota 1, p. 228.

9
A citação é finalizada pela seguinte nota dos autores: Cf. Daniel Bueno, Steinberg e o Brasil, Revista de História da Arte e Arqueologia, 2008, p. 129; SUZUKI JR., Matinas. Steinberg, os Civita e o Brasil. Serrote, n. 1, 2009, p. 67.

10
SARAIVA, Roberta; BUENO, Daniel. Op.cit., nota 13, p. 252.

11
Entrevista inédita com Rolf Karrer-Kharberg (2a entrevista, 1967), conservada na YCAL / Beinecke Library, Yale University, apud SARAIVA, Roberta; BUENO, Daniel. Op. cit., nota 13, p.253.

12
NAVES, Rodrigo. Sair da linha: uma introdução a Saul Steinberg. Serrote # 1. mar. 2009. In: SARAIVA. Op. cit. nota 1, p. 272-281.

13
GLUECK, Grace. O artista fala: Saul Steinberg. Trad. Heloisa Jahn. In: SARAIVA. Op. cit., nota 1, p. 282-293.

14
Idem, ibidem, p. 283-284.

15
Idem, ibidem, p. 290.

16
GOPNIK, Adam. O que Steinberg viu. The New Yorker, 13.11.2000. Trad. Heloisa Jahn. In: SARAIVA. Op. cit., p. 294-301.

17
Idem, ibidem, nota 21, p. 294.

18
Idem, ibidem, p. 296.

19
Idem, ibidem, p. 297.

20
Idem, ibidem, p. 299.

sobre a autora

Eliane Lordello é arquiteta e urbanista, doutora em Desenvolvimento Urbano pela UFPE. Durante mais de 20 anos, foi colecionadora de desenho de imprensa, na forma de livros, revistas e jornais.

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