No ano de 2010 foi lançada a edição em português do original, de 2009, ¡Ganar La Calle! Compartir sin dividir organizado por Andrés Borthagaray do Institut pour la ville en mouvement (IVM). Esse Instituto foi criado no ano 2000, com sede na França, objetivando constituir uma plataforma internacional de pesquisas e soluções inovadoras em mobilidade urbana, com representação hoje, inclusive, na América Latina de onde é diretor o arquiteto Borthagaray.
O tema ora apresentado resulta da iniciativa do IVM para pensar as realidades e possibilidades da rua enquanto espaço da cidade, de todos. No ano 2007 o IVM criou a exposição La rue est à nous... tous! na qual foram apresentados estudos fartamente ilustrados sobre ruas representativas de quinze grandes cidades ao redor do mundo. Com base no trabalho iniciado nessa exposição a direção de Borthagaray criou o projeto ¡Ganar La Calle! (1) trazendo foco para as ruas da América Latina. O livro propriamente dito oferece a visão de vinte e três autores sobre as ruas de em onze cidades da região e é complementado por textos seminais de outros quatro autores, entre esses Borthagaray, François Ascher (1946-2009) e a brasileira Margareth da Silva Pereira.
Ascher foi um eminente urbanista e sociólogo francês, ex-professor do Instituto Francês de Urbanismo na Universidade de París VIII, e ex-Presidente do Conselho Científico e de Orientação do IVM desde a ano de sua criação até 2009 (2). Ele nos brinda com o excelente prólogo “As duas formas de compartilhar a rua” (3) iniciado com a seguinte pergunta: O que é uma rua? Para ele, entendemos ao final da leitura, uma rua pode ser definida segundo suas funções, dentre elas a do encontro com o próximo, e significações como, por exemplo, o que as pessoas percebem delas enquanto suporte de ação. Dos comentários que concatena entre a história da rua, o ponto crítico das cidades dinamizadas em torno do automóvel e as possibilidades de atuação sobre essa conjuntura, destaca-se sua visão sistêmica ao colocar as ruas não como objeto-modelo, mas como espaços de uso coletivo que tendem a funcionar segundo necessidades específicas da cidade onde está inserida: seja como espaço de alto rendimento para os fluxos de transportes, caso da escala regional, seja como espaço da coexistência favorecendo a aproximação e interação com o outro, caso da escala local. Esse segundo caso, enquanto opção pós-moderna, é invocado no sentido de questionar radicalmente a lógica de predomínio da função de circulação sobre todas as outras que a rua pode comportar. Exemplos práticos dessas possibilidades, não comentados pelo autor, que de certa forma eliminam os perigos do tráfego veloz e redesenham as ruas sem compartimentá-las são as intervenções realizadas recentemente sob o conceito de Shared Space que podem ser notadas em, por exemplo, Brighton New Road (2007), Exhibition Road (2011) e Poynton Regenerated (2012).
A parte mais extensa do livro é dedicada aos casos das ruas representativas de onze cidades da América Latina. Segundo Borthagaray, na introdução “As ruas do sul”, um dos objetivos é colocar ao alcance do público um número de exemplos e alternativas para auxiliar na tomada de decisão. Mais do que isso, é contrapor a maneira tradicional de simplificar a realidade das ruas em números, em função de fluxos e rendimentos, e incorporar nessas tradicionais leituras critérios de qualidade urbana, como a ecologia e a interação social. Todas as interpretações, casos, começam com texto descritivo da cidade e desenho de localização das ruas no território. A partir daí são sucintamente apresentadas em texto, fotos e perfil de via cada uma das ruas selecionadas, no sentido de revelar formas, funções, processos e críticas. Das onze cidades, três são do Brasil.
O caso da cidade do Rio de Janeiro tem como principal autora Margareth da Silva Pereira, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nele são apresentadas a Avenida Atlântica que une em Copacabana de um lado a natureza representada pela praia e de outro a cidade pelos edifícios residenciais e hotéis de luxo de um dos bairros mais densamente habitados da Cidade; a Avenida Rio Branco, localizada no centro histórico e inaugurada no principal período de modernização da Cidade; a Avenida Presidente Vargas considerada o mais importante eixo viário da cidade e representativa do modelo rodoviário e monumental; a Avenida das Américas cujos usos lindeiros são essencialmente tipificados em função de um modelo de cidade de Shopping Centers; e, por fim, a Avenida Brasil ao longo dos seus 58km de extensão, vinte bairros e representações de sucessivos improvisos em gestão urbana. Parece prevalecer nessas opções as vias, ruas, que em seus respectivos contextos históricos estruturaram a expansão do território segundo a lógica, diz a autora, de um urbanismo pragmático e excludente.
O caso da cidade de São Paulo, a maior cidade da América do Sul, tem como autores José Borelli e Marcos Rodrigues, respectivamente professor assistente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e professor titular da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Nele são apresentadas a Avenida Paulista que constitui o principal centro econômico e empresarial da Cidade; a Avenida das Nações Unidas que margeia o Rio Pinheiros por 14km e é um dos principais corredores viários; a Rua Oscar Freire, atual principal rua da moda e alta costura onde a largura das calçadas é superior à do leito veicular; e, por fim, a Rua Boa Vista onde o conjunto entre arquitetura, espaços abertos e usos confere relevância ao caráter público do lugar.
O caso da cidade de Curitiba tem como autor Ignácio Lorenzo Arana, consultor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Nele são apresentadas a rodovia federal BR-476, eixo regional que seciona eu deu origem ao desenvolvimento da Cidade; a Avenida Cândido de Abreu, eixo monumental onde estão situados os principais edifícios públicos; o Eixo Estrutural Padre Anchieta, um dos quatro grandes eixos planejados para estruturar a cidade em torno dos transportes e uso do solo, caso que projetou Curitiba para o mundo; e, por fim, a Rua São Francisco, na origem do centro histórico, hoje convertida em rua de pedestres com opções de lazer para moradores locais e turistas de outras localidades.
Além dos casos acima destacados, são apresentadas também ruas de Montevidéo, Lima, Cidade do México, Bogotá, Quito, Santiago do Chile, Buenos Aires e Havana. Ainda que as apresentações sejam sumárias, com conteúdo sintético, não caem na superficialidade exatamente porque trazem os principais elementos constituintes e nos levam a viajar pelas lembranças, para quem já as conhece, ou incitam a viajar presencialmente ao encontro de suas vivencias. Mais interessante, são as distintas situações que se revelam. Tomadas somente as das cidades brasileiras, vimos desde vias regionais, com suas características de tráfego pesado, até ruas de pedestres situadas no extremo oposto em termos de ambiência urbana e convite ao usufruto. Fica então reforçado o alerta da diversidade dado por Ascher no texto introdutório.
Diversidade essa que é retomada no esforço de síntese de Borthagaray. Ele destaca as distinções de geografia, paisagem, demografia e economia que certamente marcam as cidades latino-americanas, em diferentes graus de proximidade, e as ruas que foram apresentadas. Diante da diversidade revelada, ele percebe modos de dividir, juntar, unir e integrar no espaço da rua, entre a especialização (economia de escala) e a amálgama espacial (economia de variedade). Essas são as possibilidades de combinação que resultam em diferentes “performances” e servem de metodologia para a conciliação dos diversos interesses e para tomada de decisões inteligentes e duradouras.
Sobre as ruas, qual seria o desafio das cidades brasileiras? A professora Margareth da Silva Pereira, autora do caso do Rio de Janeiro, sugere algumas questões a serem enfrentadas, mas é na contextualização histórica que reside sua melhor contribuição que pode ser visitada no texto “A reconquista das ruas”, que faz parte do livro. Em suma, ela relembra os momentos em que a rua começou a ser sistematicamente analisada desde o final do século XVIII, na Europa renascentista, e início do século XIX, no Brasil. Mas é com o nascimento do Urbanismo como campo disciplinar, entre o final do século XIX e início do século XX, que seu protagonismo se afirma definitivamente. Desde então a especialização funcional das cidades, preconizada pelo Movimento Moderno, e as inovações tecnológicas dos meios de transportes influenciaram a construção e ampliação de cidades e condenaram as ruas, na ideologia e na prática, à função única de principal infraestrutura de grandes sistemas de circulação. No Brasil, o impacto desse processo junto ao aumento do tráfego motorizado, em especial o privado, e a ampliação da malha urbana cotejada de segregação sócio-espacial, tanto pela concentração da riqueza como pelas vastas áreas de pobreza, resultaram em dinâmicas sociais e possibilidades específicas. De um lado, por exemplo, a auto-segregação (4), que esvazia as ruas, e de outro o comércio legal e ilegal que de certa forma as traz vitalidade. Sabiamente, a autora evoca a figura da esquina, de onde se olha em diferentes direções antes de agir.
Menores, mas não menos importantes, são os textos de André Urani e Marcos Rodrigues e a entrevista com Roberto Miguel Lifschitz, ambos concluindo a composição do livro. Urani aborda o tema “Recuperar a mobilidade Econômica” questionando se nossos modelos de desenvolvimento nacional refletem em melhorias para inclusão de todos; Rodrigues escreve sobre “Novas tecnologias” onde explora alguns aspectos do impacto da tecnologia em nosso relacionamento com a rua; e Lifschitz, à época Prefeito da Cidade de Rosário, na Argentina, depõe sobre sua experiência com políticas públicas.
Ao fim da leitura ficamos com a sensação de ter em mãos um conjunto rico de informações sobre um objeto cuja reflexão e necessidade de ação é atualíssima. Temos também o sentimento que a intenção original de mostrar exemplos e alternativas foi alcançada a partir da coleção de informações pertinentes ao contexto de desenvolvimento urbano da América Latina. O livro parece ser útil não só para tomadores de decisão, senso estrito, como no caso dos governantes eleitos das cidades, mas também aos técnicos do poder público, pesquisadores do meio acadêmico, profissionais liberais e todos os demais interessados na constituição das ruas de suas cidades enquanto palco de ação ativa, reprodução da vida urbana e interação social.
notas
1
Ver em: http://www.ganarlacalle.org/.
2
Extraído do Catálogo da exposição La rue est à nous...tous!
3
Sobre esse conceito, ver também: SOUZA, Marcelo Lopes de. ABC do desenvolvimento urbano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.
sobre o autor
Claudio Oliveira da Silva é arquiteto e urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Projeto Urbanístico pela Universidade de Brasília (2009) e doutorando em História da Cidade e do Urbanismo pela Universidade de Brasília. Arquiteto da Secretaria Nacional de Transporte e da Mobilidade Urbana, do Ministério das Cidades, desde 2006. Com outras experiências em políticas públicas, projetos e ensino em arquitetura e urbanismo, tem como principal motivação a resignificação dos espaços públicos da cidade.