Um ossinho para servir de suporte, um tanto de farinha de trigo, ovos, leite, galinha desfiada, temperos a gosto, tudo combinado na proporção correta, claro... Com alguma habilidade escultórica, o resultado – espera-se – será uma deliciosa e crocante coxinha de galinha. Dito assim, tão despretensiosamente, dá a impressão de ser o processo todo muito simples. Não é! Massudas, oleosas, pálidas ou queimadas, murchas, molengas, mal cheirosas, as coxinhas podem ter uma ou mais dessas más qualidades, tornando a sua degustação um ato desagradável. Acreditem: a arte da preparação e cozimento das coxinhas não é fácil, nem é para qualquer um. Ingredientes mal escolhidos ou de má qualidade, massa e enchimento mal preparados, fritura mal feita, com óleo saturado ou temperatura inadequada, podem colocar todo o esforço a perder. Quem é capaz de produzir uma boa coxinha é potencialmente capaz de cozinhar qualquer coisa.
Recém chegado à grande cidade, o personagem que protagoniza este longa luta para sobreviver neste mundo desigual e injusto. Refiro-me ao premiado filme Estômago (2008; Dir.: Marcos Jorge). Não bastam o suor de seu corpo, suas energias diárias, sua saúde, seu tempo, sua dignidade. Não importa nada disso. Tem de haver algo mais e mais importante que garanta a sua inserção e sobrevivência neste mundo novo, confuso e injusto. A saga é a de um imigrante nordestino, a mesma de todos os milhares de outros. Busca uma vida melhor na cidade. Conseguir um emprego para ter alguma renda que lhe garanta a sobrevivência. A história do imigrante nas grandes cidades, no Brasil e no mundo, é quase sempre a mesma: muito trabalho, poucas realizações, frustrações. Não para este. E tudo graças às suas coxinhas.
O ônibus, símbolo da entrada dos imigrantes nas grandes cidades brasileiras, aparece logo nas cenas iniciais. O filme é locado em Curitiba e São Paulo, mas não há referência explícita às duas cidades. Pode ser qualquer cidade grande. Chega o ônibus, desce o nordestino, perambula pelo centro da cidade. Encontra um bar: podre! Daqueles decadentes, nada recomendáveis. Bebe água e pede as duas coxinhas que vê no expositor. Dorme encostando a cabeça sobre os braços no balcão. Quando o bar fecha, não tem dinheiro para pagar pelas coxinhas que comeu. Tem de pagar com trabalho. O dono, com um porrete na mão, assim o obriga. Muitos pratos e chão para lavar. E um vão minúsculo e sujo nos fundos para dormir. E aí vai ficando, trocando alimentação e acomodação por trabalho no bar e na cozinha. Empregado, assim, muito precariamente, passa ele próprio a cuidar dos pastéis e das coxinhas. Amassa com gosto a massa. Uma revelação; uma realização. Parece ter uma boa mão. As suas coxinhas ganham fama nas redondezas, atraindo muitos clientes para o bar.
Tudo vai bem, na medida do possível, até aparecer um italiano, proprietário de uma cantina próxima, que nele reconhece o talento de um cozinheiro e passa a lhe ensinar os segredos de sua cozinha: as qualidades dos vinhos, os temperos, as sobremesas. No mercado, o italiano explica como escolher os produtos. No frigorífico, admira uma peça enorme de carne bovina. Mostra onde se situam as partes mais nobres, como a picanha e outras. Ensina que o filet mignon é a “melhor parte” do boi, comparável à “bunda” na mulher (detalhe da narrativa que depois surpreende o espectador). Empregado, agora formalmente, passa a morar nos fundos do próprio restaurante do italiano. A esta altura – como todo bom filme de ação que explora a combinação de amor, sexo, violência e poder, aqui acrescida de “comida” –, já está envolvido e muito apaixonado por uma prostituta do bairro, que não para nunca de comer. É uma glutona, fogosa, louca por suas coxinhas. Apaixonado, após alguns encontros, ele a pede em casamento, mesmo estranhando que ela “faz tudo” menos beijá-lo. “Não é ético” em sua profissão, ela diz. Mas um dia, voltando ao restaurante após perambular nas ruas do centro em busca de sua noiva, ele a vê aos “beijos” e abraços com o patrão. Os beijos o perturbam. Embriaga-se com o vinho mais caro e raro da adega e mata os dois a facadas, na cama, num repente de ciúme. A cena é chocante, após a qual prepara um bife retirado da “melhor parte” de sua amada.
Preso, Raimundo Nonato (estrelado por João Miguel, premiado ator baiano), ou, como gostaria de ser chamado para aparentar ser durão, Nonato Canivete, vai aos poucos ocupando um lugar mais privilegiado na cela que divide com sete outros detentos. A hierarquia local tem a ver com a posição em que se dorme. Começa num colchonete, no chão frio. Quando descobrem que ele consegue, com alguns temperos, refazer a comida desagradável que é servida na cela, tornando-a saborosa, passa a ocupar a cama de baixo do triliche. Assim determina o chefão da prisão, com cara de mau, seu companheiro de cela, que tem o domínio do território local e que, mesmo com humilhações e violência, dele se afeiçoa. Melhor mas não tanto. Apelidado jocosamente de Alecrim, por seus companheiros de cela, sobe mais um degrau, para a cama do meio, mas sonha com a de cima, o lugar do tal chefão destemperado. Não vou contar como, mas o final da estória é que, sempre feliz e aparentemente conformado, o franzino cozinheiro chega lá.
De uma forma um tanto estereotipada e exagerada, a vida de Alecrim na prisão tem paralelos com a de Raimundo Nonato no bar e no luxuoso restaurante. Imigrante desempregado, passa a sobreviver produzindo comida “de rua” e, logo, de restaurante para as elites; depois, utiliza as suas habilidades na transformação da comida podre servida na prisão, o que permite a sua ascensão na hierarquia entre os detentos e reflete-se no espaço que ocupa no triliche. Em ambos os momentos de sua vida, o personagem experimenta uma trajetória ascendente. O mesmo não se pode dizer da vida decadente e degradante na cidade grande brasileira, que o filme trata de forma um tanto que transversal. Isto significa que pouco se percebe da cidade, mas esta é determinante para o enredo. É a dinâmica urbana, reflexo da distribuição desigual de riquezas, que é definidora dos acontecimentos. A cidade não é apenas uma inserção ou um pano de fundo. A sua degradação física e moral, enraizada no cotidiano, de tão generalizada e crônica, naturaliza as precárias condições de vida que todos tomamos como “normais” e, acostumados que somos, pouco nos damos conta.
A cidade é como uma “coxinha” que todos saboreamos, ou melhor, vivenciamos sem nos aperceber do trabalho que dá e a dificuldade que há na sua produção. Os ingredientes são sabidos: espaços e passeios públicos de qualidade, serviços e infraestruturas, vias descongestionadas, transporte público eficiente, moradia adequada, assistência à saúde e à educação, oportunidades de emprego – o que requer uma economia robusta e estável –, e por aí vai. E como as coxinhas, a ausência de uma ou mais dessas e de outras condições pode resultar em cidades pouco agradáveis. Na ausência de uma boa estrutura de planejamento e gestão e de uma coalizão de forças locais que a promova, a cidade pode transformar-se em algo indigesto para se viver. Transforma-se em um amontoado de problemas de difícil resolução. Acreditem, como as coxinhas, a produção da cidade não é tarefa fácil.
Coxinhas, pastéis e outros petiscos estão por todo lado nas cidades brasileiras. São lanches rápidos ou mesmo servem de refeição para um grande número de populares e são vendidos a baixo custo. Aliás, estão também presentes nos bares e restaurantes das elites, como petiscos, e acompanham os bebericos das conversas informais, nos finais de tarde, quando colegas e amigos congratulam-se e encontram-se, até para continuar a vida dos negócios e do trabalho.
A coxinha sofre as modificações do mundo contemporâneo, hoje existindo variações, com ou sem ossinho, em vários tamanhos e sabores. É como na sobremesa “Romeu e Julieta” que, no filme, é transformada em “Anita e Garibaldi”, substituindo o queijo mineiro pelo gorgonzola. As cidades também sofrem as modificações do mundo contemporâneo. Atualizam-se hodiernamente, seguindo tendências e novas convenções globalizadoras. Convergem assim em alguns aspectos e noutros, não. Distinguem-se umas das outras ao associar e adaptar esta atualização homogeneizadora ao cotidiano próprio da cultura local. Neste filme bizarro, comida, sexo, violência e poder associam-se como definidores da dinâmica da vida nas cidades. Assim, se alguém souber onde é servida uma boa coxinha, tradicional ou contemporânea, por favor me convide para a degustação. Eu pago para comer! E se alguém souber de uma cidade no país que não tenha associada à sua modernização a degradação da vida social e econômica, por favor me convide para uma visita. Eu pago para ver!
ficha técnica
título
Estômago
ano
2008
duração
100 minutos
diretor
Marcos Jorge
roteiristas
Fabrizio Donvito e Marcos Jorge
atores
João Miguel, Fabiula Nascimento e Babu Santana
sobre o autor
Márcio Moraes Valença é arquiteto pela UFPE, doutor pela University of Sussex e professor Titular do Departamento de Políticas Públicas – UFRN. Ficcionista, é autor de Leu o livro do Chico? (São Paulo: Boitempo, 2004).