A mais recente obra de Nestor Goulart Reis, As minas de ouro e formação das capitanias do Sul, inscreve-se entre as mais importantes produções do renomado urbanista e historiador, e está destinada a ocupar lugar de destaque na historiografia da colonização e urbanização latino-americanas. Nestor Goulart, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e autor de vários livros inovadores, é hoje o mais importante pesquisador da história da urbanização em nosso país. E também um crítico sistemático da História da Historiografia, disciplina fundamental pouco cultivada nos meios universitários de nosso país.
Tornou-se ele referência internacional graças ao intenso labor no campo da pesquisa, na docência militante e também graças à sua interlocução com historiadores latino-americanistas da geração anterior, como o norte-americano Richard Morse, o argentino Jorge Hardoy e o chileno Richard Schaedel, entre outros. Formador de várias gerações e de novos mestres, muitos devem a ele o estímulo e apoio, como Murillo Marx, Rebecca Scherer, Benedito Lima de Toledo, Paulo Bruna e mais novos, como Ricardo Medrano, José Geraldo Simões Júnior e Candido Malta Campos (neto), para citarmos apenas alguns especialistas.
Um dos principais estudiosos da historiografia da urbanização e dono de mente inter e transdisciplinar, Nestor é o responsável por chamar à sua disciplina vários pesquisadores e especialistas de outros campos, notadamente da Sociologia, da Geografia e sobretudo da História. “Ah! le sage Néstor”, como a ele se referia cum granum salis seu amigo Hardoy… O aplicado e ativo mestre enriqueceu a historiografia urbana com livros como Evolução urbana do Brasil, Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial, Dois séculos de projetos no Estado de São Paulo e São Paulo. Vila, Cidade, metrópole, além de ensaios e estudos.
Já neste livro sobre as capitanias do sul, que contou com o apoio da Techno-Bio e a Techno-Cells, o autor focaliza a mineração nesse trecho da colonia (paradoxalmente) pouco conhecida e revela a intensa e problemática colonização na região. Foge dos caminhos batidos, inclusive pela boa historiografia tradicional, e descortina um mundo rico e cultivado. Bem concebida e excelentemente ilustrada, a obra resulta de uma extensa pesquisa, reunindo os resultados de demorados levantamentos que mapeiam e desvendam uma antiga região praticamente deixada à margem pela historiografia.
Nesta pesquisa, o professor trabalha com um tempo longo (1593-1830), focalizando as capitanias situadas do sul, que correspondiam aos atuais Estados de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. De fato, na História do Brasil, em se tratando de mineração e povoamento, sempre foram muito mais citadas as Gerais, Cuiabá, Mato Grosso e Goiás, objetos de extensas e reiteradas investigações. Com isso, deixou-se na penumbra a imensa região tratada nesta obra que, nada obstante, foi de importância significativa nas políticas oficiais da coroa, na colonia como na primeira parte do Império.
Como diz na apresentação sua colaboradora Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno, a pesquisa teve por objetivo orientar uma “política de preservação de paisagens culturais de porte”, articulando equipes inter-institucionais. Desse modo, revela-se um novo sistema geo-cultural, ao lado dos mineiros, mato-grossenses e goianos. A historiadora faz notar que a área estudada abrange “cerca de mil quilômetros de comprimento por 50 a 100 quilômetros de largura e nela foram inventariados mais de 150 pontos de mineração ao longo de quatro séculos de operação”. Desse modo, diz a historiadora no belo texto introdutório Arqueologia dos tempos, “vieiros, grupiaras e aluviões auríferos” estavam presentes na capital paulista e imediações (como no morro do Jaraguá), em Araçariguama, nos Vales do Ribeira e do Paranapanema, na comarca de Paranaguá, no Planalto Curitibano, em São Francisco do Sul e no Vale do Itajaí. Enfim, conclui ela, “cidades, edifícios, caminhos e locais de trabalho de mineração foram interpretados como documentos do processo de apropriação, produção, uso e transformação do território” (p. 15).
A riqueza das abordagens desse grande historiador revelam-se mais uma vez, na escolha cuidadosa do material iconográfico, nas estatísticas, na cultura material, mas também na crítica historiográfica e utilização bem informada de abordagens anteriores. No caso, os estudos como os de Caio Prado Júnior e Affonso d’Escragnolle Taunay, Sérgio Buarque de Holanda e Jaime Cortesão, mas também as produções de novos historiadores, como John Monteiro. Um cuidado digno de registro relaciona-se à temática da miscigenação (hibridismo) e dos modos de vida indígenas, e nos estudos de Rubens Gianesella o historiador se inspira para mostrar “a estreita relação entre aldeias e trilhas indígenas com núcleos urbanos e caminhos” depois consagrados.
A importância desse estudo reside não apenas no desvendamento de modos de vida e de produção dessa região do território brasileiro até agora pouco considerada, mas também no deciframento de restos arqueológicos de antigos locais de mineração que são encontrados, por exemplo, a céu aberto, perto do rodoanel Mário Covas… Como diz Beatriz Siqueira Bueno, são traços fortes hoje só visíveis aos olhos de especialistas em Geologia e Arqueologia, mas que devem ser tornados públicos.
Importante notar que, nesse percurso, Nestor Goulart não só reconsidera as descobertas de antecessores, como as José Bonifácio e Martim Francisco de Andrada, Eschwege, Calógeras e Theodoro Knecht, como também adota conceitos da Nova História, utilizados com rigor e sem modismo. Um novo clássico, em suma.
sobre o autor
Carlos Guilherme Mota, historiador, é Professor Emérito da USP e Professor de História da Cultura no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.