Interessei-me em ler esse livro de Jeudy por pura vontade de aprofundamento na complexa problemática do patrimônio industrial. Desde já, asseguro que não pretendo explorar aqui toda essa complexidade. Para uma aprofundamento nesse tema, prefiro remeter o leitor aos estudos abalizados de Beatriz Kühl. Jeudy, no entanto, desde já deve ser admitido, passa ao largo desse aprofundamento, usando a questão muito mais como ilustração. Nas próximas linhas, tentarei sintetizar o que de fato trata o livro.
O filósofo principia o seu argumento por uma série de questionamentos à instituição da memória e do patrimônio. Assertivas neste sentido são contundentes, como, por exemplo, a que apregoa: “Nós não temos mais a liberdade de esquecer, isso seria um crime. Esquecer é ocultar, esta seria a nova regra de uma boa gestão das memórias.” A garantia contra o esquecimento, em suas palavras, é dada pela “superabundância de lugares de memória”. Nesse âmbito, a conservação patrimonial é vista como o que propicia a nostalgia, que, segundo Jeudy, “logo se torna morbidez”. Concluindo, ainda com as palavras do filósofo, “o estendal patrimonial petrifica a nostalgia ela mesma e anula a aventura da transmissão”. Transmissão que é também vista negativamente, pois, para Jeudy, o espírito patrimonial promove “o engodo de uma atualização que se guarda e se transmite”. Trata-se, a seu ver, de atualizar permanentemente tudo o que vive, para que o passado não seja abolido.
A seleção do que preservar, condição para que haja patrimônio instituído, é vista por Jeudy como algo que exacerba do âmbito da escolha, “tudo é transmissível”, escreve. Um “processo de reflexividade” é o que caracteriza, a seu ver, as estratégias da conservação. Nesse sentido, afirma: O conceito de patrimônio cultural tira seu significado contemporâneo de uma “reduplicação museográfica do mundo” (itálicos de Jeudy). A gestão mesma do patrimônio não teria finalidade, senão a de atender a “uma suposta vontade coletiva de uma reatualização permanente do passado.” Jeudy se refere todo o tempo ao trabalho patrimonial como uma reatualização, como se não fora um caso de preservação ou de conservação, mas, sim, de repristinamento.
O filósofo afirma que “o amor coletivo do patrimônio, nos anos 1980, foi despertado pelo aprofundamento da produção industrial.” Neste sentido, considera que um embaraço pela defesa do patrimônio foi propagado a partir da constituição de um patrimônio industrial. Tal patrimônio, em sua compreensão, visa mostrar o que o povo jamais quis ver: o que foi a exploração do homem. Explorando os recursos de convencimento de um bem de patrimônio industrial, Jeudy é categórico:
“E para convencer da estonteante riqueza humana da vida industrial, nós lhe demonstramos como os antepassados utilizavam em bom conhecimento, com uma habilidade singular, os instrumentos técnicos que constituem hoje os restos de um artesanato em vias de desaparição.”
Para o filósofo, esse patrimônio já atingiu sua legitimidade estética: “o valor do trabalho foi tornado equivalente a um valor estético”. A propósito disso, Jeudy reflete que o patrimônio industrial favorece uma catarse que nos torna alheios ao mundo industrial, concluindo como segue:
“O patrimônio industrial opera uma metamorfose catártica: a visão retrospectiva da ‘vida operária’ é tornada tão estética que as lembranças da exploração e da dominação findam por constituir os quadros de um “outro” mundo que não será jamais nosso."
Na consecução de tais reflexões sobre a memória, a conservação patrimonial, e o patrimônio industrial mais especificamente, Jeudy dá início a uma contenda com os etnólogos e os antropólogos. A discussão então passa para um âmbito mais restrito ao caso francês, abordando o enfoque dos etnólogos franceses, exarando pareceres como este: “a etnologia francesa se contentou em crer em sua própria mágica: observar e descrever o não exótico a partir de um olhar habituado ao exótico.” A partir do início da contenda com os etnólogos e antropólogos, a questão patrimonial passa a um segundo plano. A questão identitária passa a ter mais relevância então, e Jeudy faz reflexões sobre os conceitos de rito e de tribo, e exara declarações sobre o papel do etnólogo nos seguintes termos: “os etnólogos se transformaram nos criadores de ritos, os novos experts convidados a encher um ‘déficit de ritos’”.
Quando retorna ao tema do patrimônio, em sua contenda com os etnólogos, Jeudy assinala, como um efeito das pesquisas patrimoniais, uma “patrimonialização generalizada tornada a expressão mesma da modernidade”.
Na sequência, o filósofo enceta uma discussão a propósito de etnias, e suas reflexões o levam a vincular a questão étnica ao patrimônio nos seguintes termos:
“A exaltação de identidade étnica se funda sobre uma consagração patrimonial. Qual um monumento histórico, a raça, o povo, a nação são tornadas objetos patrimoniais. E no braço dessa gestão da transmissão está a museografia do vivo.”
As reflexões prosseguem pela abordagem do turismo cultural na Europa por um viés identitário, indo desaguar na seguinte assertiva de Jeudy: “O patrimônio hoje em dia representa simultaneamente duas perspectivas que não são mais contraditórias: a mundialização cultural e a heterogeneidade cultural significada pelas referências étnicas ou identitárias”.
Em seguida, no capítulo intitulado “A Revanche dos Objetos”, Jeudy analisa o caso do “Celeiro do Século”, instalado na usina LU (Lefebvre Utile) em Nantes, lacrado ao um minuto de 31 de dezembro de 1999, para ser aberto em primeiro de janeiro de 2110 às dezessete horas. Em tal celeiro, foram depositados objetos representativos da vida das pessoas que os escolheram, e todo objeto deveria ser virtualmente deposto em sites da Web. Para o filósofo, casos como este provêm de “uma lógica patrimonial que não se contenta mais em conservar o passado, de escavar os traços, mas que não cessa de visar como os objetos de hoje poderão servir de signos às gerações futuras”. Mais ainda, pondera: “mas a obsessão patrimonial nos coloca diante deste fato acabado: são os objetos eles mesmos que nos conservam. Nós somos os reféns de uma transmissão governada pelos objetos.” A visão de objeto propriamente, aqui, sobrepuja a de objeto patrimonial, mas Jeudy insiste em igualá-los.
Segue-se a esse enfoque dos objetos o capítulo da abordagem dos problemas da atualização, que se inicia por uma reflexão um tanto mórbida sobre a fotografia. Ato contínuo, Jeudy passa a discutir o conceito de atual nos dias de hoje. Pondera que atualizar passa a ser subtrair a temporalidade habitualmente atribuída ao passado, por torná-lo atemporal e lhe conferir “potência de contemporaneidade”. Trata-se, a seu ver, de um jogo, que é produto de uma estratégia que objetiva desestabilizar nossas representações usuais do tempo presente. Daí em diante, Jeudy abre uma discussão entre a etnografia e a arte, enveredando pelo Surrealismo e pelo Movimento Antropofágico no Brasil, referenciando-o em Oswald de Andrade. É uma longa discussão que em muitos momentos serpenteia por vieses digressivos. Ao findá-la, Jeudy retoma o problema do conceito de atual, e conclui: “a atualização seria, na lógica da reflexividade patrimonial, o fruto de uma crença no trabalho eficaz de seleção de imagens inatuais.”
A seguir, vem o capítulo bombasticamente intitulado Patrimônio e Catástrofe. Nele, Jeudy principia pela catástrofe da memória, que passa, na sua visão, por um sinal de envelhecimento, de degradação mental. A conjurar tal catástrofe, segundo Jeudy, está a conservação patrimonial. Segue-se a essa consideração uma abordagem da catástrofe como objeto patrimonial.
Sobrevém então o capítulo final. Nele, Jeudy trata da questão dos sem teto na França relativamente à arte e às questões patrimoniais. Principia pelo caso francês de um sem teto que demandou a inscrição de sua casa de palelão em um inventário patrimonial. Jeudy reconhece que o exemplo dos sem teto pode parecer exagerado quando se fala do patrimônio, mas considera que ele é significativo do processo atual de antecipação da proteção patrimonial. O capítulo prossegue especulando se a expansão patrimonial ilimitada obrigará a se colocar a questão do que será preciso destruir um dia. Nesse ponto, Jeudy propõe as seguintes perguntas: “Como fazer da destruição um ato que não seja negativo, já que a lógica patrimonial é por ela mesma uma empresa de destruição? Conservar não é já uma maneira de adquirir o que é ainda vivente?” Sem apresentar respostas, mas conjecturas, o filósofo passa então à abordagem de autenticidade e clonagem, findando por uma questão: “a clonagem anuncia a parada de morte da conservação patrimonial?”
Nas conclusões, Jeudy admite, logo de início, que o futuro do homem permanece sempre pensado em referência ao seu passado, e prossegue por especulações sobre a reflexividade do patrimônio. Tais especulações vêm a desaguar na seguinte tese:
“Por produzir nossa reflexividade, a ‘coisa patrimonial’ funciona por ela mesma, sem ser ameaçada por uma qualquer incertitude concernente as seus próprios fins. Ela adquire uma autonomia tal que a finalidade de sua gestão não tem mais necessidade de ser legitimada”.
A partir daí, as conclusões resvalam para novas especulações, desta feita a propósito dos campos virtuais das novas tecnologias, e uma suposta “estetização universal”. Por fim, conclui Jeudy: “toda história contemporânea da patrimonialização é aquela da passagem do simbólico ao virtual”. Mais ainda: “a lógica patrimonial ela mesma é uma arma essencial da virtualização das sociedades”.
Exaustivamente especulativo, polêmico, este livro resulta cansativo em suas muitas digressões, em sua vontade de abarcar uma diversidade de temas, que afinal só fazem perpassar uma visão muito negativa do patrimônio.
sobre a autora
Eliane Lordello é doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008) e arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.