“Embora as emoções possam nos cegar, o desenvolvimento da inteligência é inseparável do mundo da afetividade (...). A educação deve favorecer a aptidão natural da mente em formular e resolver problemas essenciais, estimulando o uso total da inteligência que se utiliza do livre exercício da curiosidade”.
Edgar Morin, citado por Perrone e Vargas, 2014, p. 9
Nas duas últimas décadas, tem sido crescente o interesse pela reflexão sobre a pedagogia do projeto, o que pode ser evidenciado não só pela quantidade como, sobretudo, pela qualidade das publicações sobre o assunto, seja por meio de artigos em periódicos como o Arquitextos/Vitruvius, ou em eventos como o Seminário Projetar (1), ambas importantes referências na área, ou, ainda, através de livros editados com apoio de instituições de ensino e/ou de fomento à pesquisa. Este último é o caso da bela publicação organizada por Rafael Cunha Perrone e Heliana Comin Vargas, intitulada “Fundamentos de Projeto: Arquitetura e Urbanismo”, lançada este mês pela Edusp, e que constitui o objeto desta resenha.
O livro registra a experiência de ensino da disciplina de “Fundamentos de Projeto” da FAU-USP, criada em 1998, “com o intuito de reunir conceitos fundamentais para a iniciação em projeto arquitetônico do aluno ingressante” no curso, e buscando, ao mesmo tempo, “romper com as estruturas vigentes, centradas em grades de disciplinas segmentadas por áreas do conhecimento” (p.15). No caso da FAU-USP, o Departamento de Projeto inclui as disciplinas de Projeto de Edificações, Planejamento Urbano e Regional, Programação Visual, Paisagismo e Desenho Industrial. A proposta é que os olhares destas cinco áreas de conhecimentos sejam integrados nos conteúdos de Fundamentos de Projeto. A publicação apresenta, além do histórico e dos princípios pedagógicos que estruturam a disciplina, os exercícios ministrados em duas fases e as aulas teóricas que os fundamentam.
A proposta pedagógica é nitidamente centrada no aluno, valorizando sua experiência/vivência para que ele possa, a partir daí, compreendê-la e modificá-la. Para tanto, as principais estratégias são: i) sensibilização dos alunos; ii) construção de repertório (gramática mínima) e suas articulações; iii) incentivo à produção de (novas) ideias. Outro ponto destaque é a avaliação do aprendizado, mais focada nos processos do que nos produtos por eles gerados. Neste sentido, assumem importância destacada os Seminários de apresentação coletiva dos trabalhos dos alunos para aprimoramento do aprendizado.
Vale destacar que a disciplina totaliza 16 horas em 4 encontros semanais, e envolve cerca de 15 docentes das diferentes especialidades do Departamento de Projeto, os quais, ao menos uma vez por semana, atuam juntos no ateliê. Cada professor responde aproximadamente por 12 alunos.
Os exercícios são desenvolvidos em duas fases. A primeira é destinada a aproximações com o objeto arquitetônico, incluindo exercícios de observação e percepção formal. A segunda fase busca a leitura e compreensão do meio urbano no qual é feito o primeiro exercício de projeto de um edifício. O livro apresenta em sua primeira parte exemplos de 06 tipos de exercícios ministrados, sendo 03 em cada fase, começando pelo desenho de observação (nu artístico, por exemplo), depois passando pela percepção, representação e construção de um objeto arquitetônico e pela construção de uma gramática de formas, até chegar a leituras do espaço urbano e aos procedimentos necessários à concepção do projeto de um edifício, o que delineia claramente o percurso metodológico multifacetado da disciplina. De cada exercício, são apresentados os objetivos, histórico, estratégias e exemplos ilustrativos.
Nota-se, desde logo, o papel central que assume o desenho nas atividades da disciplina, sendo considerado como “instrumento fundamental de comunicação do arquiteto urbanista”, seja como representação do existente, seja como expressão do imaginado, ou ainda como descrição detalhada do espaço a ser executado (p. 31). É também fortemente estimulada a percepção sensorial dos discentes, pelo contato direto com os objetos de representação ou de concepção projetual ou através de experiências vivenciadas de construção coletiva, como é o caso do exercício B da primeira fase.
Um exercício muito interessante, também nesta fase, é aquele que se intitula “Família de Formas”. Tem por objetivos investigar “características de racionalização, seriação e linguagens próprias dos processos de produção da arquitetura e do design”, bem como a “utilização de referenciais históricos para o desenvolvimento de projetos”, ou seja, a “busca consciente de referências”, como afirma Perrone (2004, citado à página 38).
A fase 2 promove leituras do espaço urbano e desenvolve os procedimentos necessários à elaboração do projeto do edifício Pavilhão da Cidade, que no ano de 2010 foi implantado em terreno próximo à praça da Sé. Para tanto, são desenvolvidos 03 exercícios. O primeiro dá ênfase aos vetores da cidade, o segundo objetiva a compreensão de leitura da área de estudo/intervenção, e o terceiro é o projeto do Pavilhão da Cidade, apoiado nas leituras e instrumentais anteriormente trabalhados. O programa arquitetônico inclui principalmente auditórios, áreas de exposição e convivência e salas de atividades. A proposta do novo objeto, desenvolvida primeiro em nível de estudo preliminar e depois como anteprojeto, deve necessariamente considerar as preexistências do lugar em que se insere (história, meio social e ambiente construído). Assim, o projeto é imerso numa reflexão sobre a cidade e o processo de requalificação de suas áreas centrais.
Todos os exercícios são alicerçados por aulas expositivas sobre os temas neles tratados. O conteúdo destas aulas é apresentado na segunda parte do livro, com 10 textos dos professores envolvidos na experiência pedagógica, assim relacionados:
1. O Desenho e suas finalidades. Feres Lourenço Khoury.
2. Família de Formas: unidade na variedade. Rafael Antonio Cunha Perrone.
3. De caminhos a vetores de expansão da metrópole paulistana. Fábio Mariz Gonçalves.
4. Arquitetura e cidade: modernização na Praça da Sé. Euler Sanderville Jr.
5. Dinâmica Urbana: usos e fluxos. Heliana Comin Vargas.
6. Percepções tecendo o urbano: sinas na cidade, sinais da cidade. Feres Lourenço Khoury e Myrna de Arruda Nascimento.
7. Leitura da paisagem urbana. Maria Assunção Ribeiro Franco.
8. O projeto no contexto construído. Rosana Helena Miranda.
9. Diálogos entre forma arquitetônica e sua concepção estrutural. Anália Amorim.
10. Desenhos e projeto. Rafael Antonio Cunha Perrone.
A leitura dos conteúdos apresentados nestes textos evidencia a natureza interdisciplinar da proposta pedagógica do ateliê de Fundamentos do Projeto da FAU-USP, que, de fato, lança as bases fundamentais para a compreensão e a concepção integrada da arquitetura e da cidade. A ênfase tanto nos aspectos perceptivos como cognitivos do aprendizado, assim como na experiência vivenciada pelos e com os alunos são outros elementos de destaque.
Assim sendo, o registro desta experiência curricular neste livro, bem organizado e editado com textos e ilustrações de alta qualidade, é de grande valia para o ensino do projeto de arquitetura e urbanismo.
nota
1
Seminário sobre Ensino, Pesquisa e Prática do Projeto, cuja primeira edição ocorreu na UFRN, Natal, em 2003, e que tem sido, desde então, um importante fórum de discussão neste campo. A grande maioria dos artigos publicados nos Anais do Projetar é sobre ensino, experiências de ateliês de projeto principalmente. No Arquitextos deste Portal também se registram artigos sobre o assunto. Já livros com finalidade didática são mais raros, o que reforça a importância deste novo lançamento.
sobre a autora
Maísa Veloso é arquiteta, professora associada atuante na área de projeto tanto na graduação e como na pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN. É uma das fundadoras do Seminário Projetar.