O título deste livro, Método e arte, é mais uma pitada na polêmica sobre a paradigmática metáfora de “O semeador e o ladrilhador” que Sérgio Buarque de Holanda escreveu em seu Raízes do Brasil. “Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra ‘desleixo’...”, publicou ele em 1936, sobre a ação colonizadora dos portugueses no Brasil.
Ao se debruçar sobre a organização territorial e a formação urbana na capitania de São Paulo a partir de 1765, Fernanda Derntl favorece as leituras que reconhecem uma estratégia mais ordenada que aquela apregoada por Buarque de Holanda. “Para que com método e arte se tome este intento, devem-se dispor as cousas de modo, de antemão, e de longo tempo, [para] que se possa fazer um bom uso de todos os meios que oferece[m] a Monarquia e estes Estados”, sustentavam o então governador da capitania de São Paulo, Dom Luís António de Sousa Botelho Mourão, e o engenheiro militar José Custódio de Sá e Faria em um plano datado de 1772.
Como bem alerta a autora, as imagens do semeador e do ladrilhador foram concepções de dois extremos de tipos ideais que propriamente verificações conclusivas sobre as diferentes atitudes de Portugal e Espanha diante da América.
Buarque de Holanda dizia que “a rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta como em tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir por experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão um plano para seguí-lo até o fim”. Posteriormente diversos estudiosos da urbanização no Brasil colonial mostraram que no século 18 os portugueses guardavam “um plano para seguí-lo”. Todavia, todo ladrilhador também encontra o inesperado em sua tarefa: não há “razão abstrata” que saiba contornar as vicissitudes. O governador da capitania, não obstante uma renovada geopolítica da Metrópole para com seus territórios meridionais, teve que lidar com incógnitas do território: práticas sociais, conflitos, tensões, contradições, negociações, alianças, concessões, repressão.
Reconhecer e responder às dinâmicas locais decerto conduziu àquilo que Buarque de Holanda chamou de “agir por experiências sucessivas.” Na interpretação em Raízes do Brasil, essas “experiências sucessivas” eram falta de zelo, careciam do necessário cuidado emanado da racionalidade humana: “a ordem que aceita não é a que compõem os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão postas as coisas divinas e naturais pois que, já o dizia Antônio Vieira, se as estrelas estão em ordem, ‘he ordem que faz influência, não he ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas...’” Numa carta de 1772 do 4º Morgado de Mateus ao Marquês de Lavradio, o governador da capitania assumia sua porção ladrilhador: “Eu achei esta capitania [de São Paulo] morta e ressuscitá-la é mais difícil do que criá-la de novo. O criar está na responsabilidade de qualquer homem. O ressuscitar foi milagre reservado para Cristo. Para criar o mundo, bastou a Deus um Fiat, para o restaurar depois de perdido, foi necessário humanar a sua Onipotência, gastar trinta anos e dar a vida”. Alusões que o próprio Buarque de Holanda nos alumia ao chamar a atenção da raiz no “velho naturalismo português” do pensamento do padre Vieira, na distinção entre o pregar e o semear, presente nos Sermões: “porque o semear é uma arte que tem mais de natureza que de arte; caia onde cair”. Desbastando a rigidez dos sentidos e certo tipo de anacronismo, a semeadura não é forçosamente um ato de puro acaso ou desleixo; a natureza, em suas várias acepções, tem mais lógicas que muita criação humana supõe ostentar.
No complexo campo de forças que a autora escrutinou em São Paulo entre 1765 e 1811, ela questiona se a ênfase em mecanismos e determinismos de planejamento como “razão abstrata” não obscureceu o cotejamento das representações com a realidade empírica. A percepção das pré-existências como contingências, os imperativos das circunstâncias, a qualidade dos membros da alta administração portuguesa como interpostos entre as determinações oficiais da Metrópole e as dinâmicas locais, a amplitude das negociações, foram parte dos procedimentos tramitados para a constituição e consolidação de núcleos urbanos – ou mesmo do seu fracasso.
O Morgado de Mateus e seus sucessores não foram casuísticos semeadores, tampouco ortodoxos ladrilhadores. As páginas que se seguem nos ajudarão a pensar o quanto de semeadores e de ladrilhadores desenharam o nosso território no período colonial.
nota
NE – o presente texto é a apresentação do livro comentado.
sobre o autor
Professor Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto. Livre-docente pela Escola de Engenharia de São Carlos/USP, Doutor e Mestre pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/USP. Atualmente é diretor do MAC USP.
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