A torcida da grande mídia pela vitória do candidato de oposição na última eleição presidencial brasileira, ocorrida em outubro de 2014, se deu de formas variadas em sua exibição pública. O Estadão se declarou em editorial partidário de Aécio Neves, enquanto a revista Veja e seu exército de articulistas desarticulados e a rede Globo de Televisão em seus vários canais e programas expunham as mazelas do atual governo de forma ostensiva, jogando para baixo do tapete os deslizes dos outros candidatos. Não deixa de ser interessante imaginar como teria sido a cobertura do episódio do helicóptero cheio de cocaína caso ele pertencesse a algum amigo de Dilma Rousseff ou de Lula.
O caso da Folha de S. Paulo é um pouco mais complexo, pois trata-se de um jornal realmente mais pluralista, mesmo que grande parte deste mérito possa ser atribuído a uma bem azeitada estratégia de marketing. Independente das motivações, na prática o jornal de fato abriga um espectro muito mais amplo de opiniões, o que até torna compreensível que leitores mais radicais e desatentos achincalhem o periódico de “petista”. Mas, mesmo que de forma discreta, o jornal se posicionou – sem qualquer margem para dúvidas, se verificarmos as edições publicadas nas semanas anteriores ao pleito – favorável à candidatura de Aécio Neves e contrário à candidatura de Dilma Rousseff. Para se chegar a esta conclusão, basta olhar com atenção as manchetes e a diagramação das primeiras páginas do jornal.
No dia 28 de setembro a manchete trazia em letras garrafais a acusação “PF investiga ligação entre tesoureiro do PT e doleiro preso”. Que o vínculo entre o tesoureiro João Vaccari Neto e o doleiro Alberto Youssef não tenha sido até hoje documentalmente comprovado diz muito sobre como procedeu de forma irresponsável praticamente todos os veículos de comunicação da grande imprensa. Em outra manchete marota, esta de 29 de setembro, o jornal afirma que “Dilma não cumpriu 43% das promessas de 2010”. Temos aqui um bom exemplo do meio copo cheio ou vazio: se a manchete fosse de outro ponto de vista – “Dilma cumpriu 57% das promessas de 2010” – certamente o impacto teria sido completamente outro, afinal, qual político cumpre mais da metade das promessas de campanha?!
Mas não é sobre esta questão que quero chamar atenção. Mesmo considerando o título depreciativo – “Com Dilma em alta, Bolsa tem maior queda em três anos” – o posicionamento das fotos dos candidatos na primeira página da edição do dia 30 de setembro (similar ao que aparece na já mencionada capa do dia 28 de setembro) respeita a ordem de classificação dos três principais candidatos segundo as pesquisas feitas uma semana antes do primeiro turno: Dilma Rousseff, Marina Silva e Aécio Neves.
Nos dias e semanas seguintes, nos infográficos – com os candidatos representados por caricaturas pequeninas, como podemos verificar no exemplo da manchete do dia 1 de outubro – a ordem das pesquisas será respeitado, mas o mesmo não ocorrerá com as fotos dos candidatos, sempre reproduzidas em tamanhos grandes. Na verdade, esta foi a última vez que a ordem de classificação seria respeitada durante o quase um mês que duraria a cobertura até a realização do segundo turno.
Ao longo do último mês de outubro o jornal colocará, invariavelmente, seu candidato no lado esquerdo, posição que na tradição ocidental é quase sempre atribuído ao número 1. Nos pódios de competições esportivas – caso da Fórmula 1 de Olimpíadas – o primeiro lugar fica no meio, mas em posicionamento mais alto do que os demais colocados. Ou seja, o que temos invariavelmente é que o primeiro ou principal termo de uma enumeração aparecem à esquerda ou acima. Trata-se de uma lógica embutida na percepção do homem ocidental, da qual não há como fugir. Todo editor sabe disso e os editores de imagens sabem mais ainda.
No dia 3 de outubro, com o infográfico informando as colocações corretas segundo as pesquisas de opinião de voto, na parte inferior temos a surpreendente presença do terceiro lugar no lado esquerdo; Dilma, primeira classificada, aparece ao centro e Marina à sua direita. Dilma, olhando para a frente, com os outros dois a escrutinando de forma direta, cria um efeito de múltiplos significados, arrefecendo bastante a mensagem subliminar.
No dia 5 de outubro, uma quase exceção, pois ao invés de fotos a editoria usou pinturas feitas pelo artista plástico paranaense Éder Oliveira, um dos destaques da Bienal de São Paulo em curso, contratado especialmente para realizar o trabalho. Quem ocupa o lado esquerdo é Marina Silva, que tinha sido ultrapassada por Aécio Neves, que ocupa o centro da composição. Com Dilma à direita, temos uma inversão completa da classificação segundo as porcentagens aferidas pela pesquisa do Datafolha, respectivamente 24%, 26% e 44%.
O caderno Ilustrada deste mesmo dia traz como matéria de capa uma reportagem sobre o artista plástico com o incriminador título “políticos e marginais” e ilustrado com foto do artista e sua pintura ao fundo: a ordem era Aécio, Marina e Dilma, ordem invertida da classificação segundo pesquisas de dois dias antes. Para que a nova ordem fosse registrada, também de forma invertida, a editoria fragmentou a pintura do artista em sua manchete principal. Quem não leu o jornal e apenas viu a capa exposta em banca, ficou sem saber que trata-se de uma única pintura, e não três, como aparecia na capa.
No dia seguinte, 6 de outubro, a adulteração sutil do resultado – prática adotada pelo jornal Folha de S.Paulo nesta eleição – se consagra: com 34% dos votos válidos, a foto do “vitorioso” Aécio Neves aparece à esquerda, com a “derrotada” Dilma Rousseff à direita com seus 42%. Considerando que as fotos estampadas na manchete são as das telas das urnas eletrônicas, a fraude é ainda mais absurda e inaceitável.
Em compasso de espera, a manchete do dia 7 de outubro traz os dois candidatos sorridentes, Aécio à esquerda, Dilma à direita. Nas pesquisas, Dilma Rousseff continua liderando. Para a Folha, o futuro presidente é Aécio Neves. Fugir da classificação para salientar a diferença de posicionamentos ideológicos poderia ser um bom argumento editorial, mas isso só seria possível se os candidatos estivessem em posições antípodas. Como não estão, a “esquerdista” Dilma deveria estar à “esquerda” até por este critério, com o “direitista” Aécio do seu lado direito. Esta interpretação de caráter ideológico não é arbitrário, afinal na já mencionada manchete do dia 6 de outubro, que noticiava o resultado do primeiro turno, as porcentagens de Aécio e Dilma foram identificadas com azul e vermelho, como seria o lógico.
O uso das cores foi também o recurso escolhido para o domingo, 26 de outubro, dia do segundo turno. Como seria de esperar a esta altura do campeonato, a foto de Aécio sobre fundo azul está estampado à esquerda, como favorito à vitória. De nada adiantou para Dilma o fato dela estar 4 pontos à frente: sua foto surge à direita, sobre fundo vermelho! O título reitera o mau-caratismo da editoria de capa: “Dilma e Aécio chegam ao dia da eleição em empate técnico”. Ora, qualquer título preocupado com a verdadeira situação em curso traria as duas informações: Dilma lidera, mas Aécio se aproxima o suficiente para chegar ao empate técnico, mas dentro da margem maior de erro da pesquisa, que era de 2% para cima ou para baixo; ou seja, para que o empate fosse efetivo, tudo que tinha que dar errado beneficiaria exclusivamente o candidato da oposição (e da Folha)! Mas o escamoteamento da realidade não termina aqui. As porcentagens de cada um (48% a 52%) aparece no texto menor da chamada e dentro de pequenos círculos, no pé das fotos imensas, sem qualquer impacto visual. Todos os eleitores que passaram apressados, a pé, de automóvel ou de ônibus, a caminho do posto eleitoral e viram a capa pendurada nas bancas de jornal tiveram a certeza que Aécio Neves estava na frente na última pesquisa.
“Dilma é reeleita na disputa mais apertada da história” é a manchete do jornal na segunda-feira, dia 27 de outubro. O resultado final das eleições reproduziu com pequeníssima diferença o resultado da última pesquisa do Datafolha: 51,6% para Dilma, 48,4% para Aécio. Finalmente, com mão direita levantada e o punho cerrado em posição de vitória, a presidente Dilma Rousseff ocupa na primeira página da Folha o lugar que deveria ter estado durante toda a reta final da campanha, pois a liderou em todos os momentos. É lícito imaginar que a enorme dificuldade de parte da população em aceitar a derrota de Aécio Neves se apoie na percepção equivocada da realidade construída pela grande imprensa. Parece que a vitória foi roubada daquele que, em nenhum momento, ocupou a preferência da maioria da população brasileira. O que os grandes jornais e redes de televisão fizeram foi de uma enorme irresponsabilidade. De forma mais inteligente, envergonhada e rasteira, o que o jornal Folha de S.Paulo tentou forjar através de sua editoria de imagens entra para a história como mais um capítulo negro de como não se deve e não se pode fazer jornalismo em um país democrático.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.