Walkscapes: o caminhar como prática estética, de Francesco Careri, é uma jornada pela própria narrativa. O autor conduz o leitor em um deambular histórico em que explora as possibilidades construtivas do espaço a partir de um olhar estético sobre próprio ato de caminhar. Ao intercalar os conceitos estudados com definições, citações, mapas, poesias e imagens, que permitem um passeio pelas páginas, de forma lúdica e também estética, o livro coloca-se em forma de narrativa imagética, tanto quanto textual, construída em uma linha de tempo estruturada que permite ao leitor liberdade para traçar relações entre os conceitos e explorações trazidas pelo autor.
Arquiteto e professor do departamento de estudos urbanos da Università degli Studi Roma Ter, Careri foi também cofundador, do Laboratorio d’Arte Urbana Stalker/Observatório Nomade e é professor do laboratório de projetos e do curso de artes cívicas da faculdade de arquitetura da Università degli Studi Roma Ter. É autor também do livro Constant: New Babylon, una città nomade (2001).
Em Walkscapes, Careri traça uma abordagem que tensiona os limites entre narrativa historiográfica e etnográfica, onde busca demonstrar a história da construção da paisagem por meio do caminhar. O autor aborda o caminhar por meio dessa linha histórica que embasa a construção espacial sensível e coloca a evolução da experiência estética do devir como uma nova forma de escrever a história do espaço.
O autor perpassa também em diversos momentos da obra o conceito do jogo. O jogo com o tensionamento das bordas, dos limites entre espaços cheios e vazios, nômades e sedentários. O ato de caminhar é colocado como um jogo com espaço, onde se constrói a paisagem a depender do momento histórico com o qual esse caminhar se relaciona.
Iniciando sua narrativa no período pré-neolítico, constrói um marco histórico a partir do caminhar errante, o walkabout, dos povos pré-históricos, passando pelo homem neolítico construtor de ‘espaços de estar’ e pela diferenciação entre a errância e o nomadismo desse período. A partir desse marco inicial, chega aos três pontos de inflexão na história em que há uma mudança do olhar sobre o percurso, “das passagens do dadaísmo ao surrealismo(1921-24), da Internacional letrista à Internacional Situacionista(1956-57) e do minimalismo à land art (1966-67)” (p. 28), em um caminhar que irrompe nas transurbâncias do grupo Stalker, em 1995, e contemporaneamente em uma nova expansão de campo, onde o percurso passa a significar a própria forma estética de construção das paisagens.
Da possibilidade da construção da história do caminhar como forma de intervenção urbana, que coloca a errância pré-histórica como arquitetura de paisagem que modifica os significados do espaço atravessado, à deriva urbana letrista, que revela zonas inconscientes e suprimidas do espaço percebidas a partir da construção de situações de experimentação lúdica nos ambientes, ao buscar a compreensão da inserção do percurso na história o autor desmitifica o nomadismo como antiarquitetura e o coloca como próprio produtor de arquiteturas espaciais.
Analisando as relações entre percurso e arquitetura, tendo essa como construção simbólica do território, Careri divide o próprio caminhar em três partes: a travessia, como a própria ação do caminhar; a linha, criada pelo percurso como objeto; e o relato, a narrativa desse caminhar. A partir disso coloca no tensionamento das bordas entre os espaços vazios e os espaços construidos, espaços do devir e espaços de estar, o caminhar como intervenção estética que descreve e modifica espaços urbanos que precisam ser preenchidos de significados, antes de serem preenchidos de coisas.
Nessa construção historiográfica da cidade através do percurso e das observações estéticas empíricas obtidas nas caminhadas, a possibilidade do não lugar se faz presente no lugar e o oposto também ocorre.
É o espaço vazio, espaço de exceção, o mesmo que abre possibilidades de reapropriações sociais da urbe. O consumidor da cidade e das relações sociais é também produtor do espaço e dessas relações. Assim, as intervenções artísticas e o próprio olhar estético sobre esse espaço, se apresentam como formas de reapropriação da urbe por seus próprios criadores, por meio dos contra-usos das cidades, da arquitetura dos não-lugares, ou, como coloca Careri, dos espaços intermediários, do “meio-lugar”.
O meio-lugar tem aqui o sentido do lugar praticado, um espaço entre o lugar e o não-lugar explorado por Marc Auge (1), onde o não-lugar conceitua-se como o espaço desprovido de quaisquer identidades, espaços vazios de sentidos e significados e, o lugar como aquele que possui significado dentro do contexto social, os espaços construídos, material e subjetivamente. Dessa maneira o meio lugar é um espaço-entre, é a própria apropriação e o uso do espaço, onde “Estar ‘entre’ não quer dizer ser uma coisa ou outra, quer dizer ser temporariamente uma coisa e outra” (2).
Nesse ponto o autor deixa mais clara a relação entre o espaço a ser ocupado dentro do conceito do jogo, da ocupação lúdica do espaço, tratado tanto no delirium ambulatorium de Hélio Oitica (3), quanto na cidade nômade da Nova Babilônia em Constant (4). A partir do conceito da experiência estética do espaço, essas representações, os jogos, tornam-se saberes que tornam-se a própria intervenção na cidade.
A transdisciplinaridade da ideia do percurso como objeto arquitetônico, o caminhar como estrutura narrativa, o “perder-se” como a possibilidade de dominação do sujeito pelo espaço e o desenvolvimento histórico da idéia da errância dentro da urbe, todos relacionados à percepção diferenciada do espaço urbano pelo sujeito a partir do olhar estético, são os temas centrais dessa obra, que conduzem o leitor por novas interpretações criativas do espaço e permitem também uma nova ocupação do vazio da cidade, criando uma intervenção que além de material é também artística.
Nesse sentido, é possível relacionar a esse caminhar como prática estética a obra de Walter Benjamin, com a própria constituição do flanêur como observador privilegiado da vida moderna e a flanêurie como meio de apreensão e representação desse espaço, bem como as teorias exploradas por esse autor em relação as representações do espaço a partir do conceito da imagem dialética (5) através do olhar estético.
Com tradução recente para o português (2013), desde seu lançamento em 2002, a obra do arquiteto italiano ainda é, como coloca a arquiteta, urbanista e professora Paola Berenstein Jacques, “um pertinente convite ao caminhar e à construção de paisagens estéticas e exploração dos limites entre os espaços nômades e sedentários da cidade contemporânea” (6).
notas
1
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Coleção Travessia do Século. Campinas, Papirus, 1994.
2
JACQUES, Paola Berenstein; GUEZ, Alain; Tufano Antonella. Trialogue: lieu/mi-lieu/non-lieu. In Lieux Contemporains. Paris, Descartes&Cie, 1997. Apud JACQUES, Paola Berenstein. Prefácio. In CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. Prefácio de Paola Berenstein Jacques, tradução de Frederico Bonaldo. 1ª edição. São Paulo, Gustavo Gili, 2013, p. 10. Republicação do texto: JACQUES, Paola Berenstein. O grande jogo do caminhar. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 141.04, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.141/4884>.
3
Cf. JACQUES, Paola Berenstein. Derivas: participação e jogo. Elogio aos errantes. Salvador, EDUFBA, 2012, p. 163.
4
NIEUWENHUYS, Constant. New Babylon, In LAMBERT, Jean-Clarence. New Babylon. Constant, art et utopie. Paris, Cercle d’Art, 1997.
5
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
O conceito de flanêurie pode ser observado nas Passagens de Walter Benjamin, obra inacabada do autor que trata das passagens parisienses e que. em alguns casos, é referida com títulos diferentes. Parte desses escritos foi publicada como livro em Charles Baudeleire: um lírico no auge do capitalismo. Sua obra é revisitada por Susan Buck-Morss em Dialética do olhar: Walter Benjamin e o projeto das passagens e na obra de Willi Bolle, Fisiognomia da metrópole moderna.
6
JACQUES, Paola Berenstein. O grande jogo do caminhar. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 141.04, Vitruvius, set. 2013. <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.141/4884>.
sobre a autora
Luciana Jobim Navarro é arquiteta e urbanista, especialista em Artes Visuais com foco na formação da identidade social e sua relação com o espaço, registrada por meio da fotografia. Mestranda em Teoria e História da Arquitetura e da Cidade na UNB, possui pesquisa interdisciplinar onde procura compreender a construção do espaço a partir da fotografia e utilizá-la como forma de intervir esteticamente nos espaços construídos. Professora universitária de história das artes, teoria das cores e projeto nos cursos de Arquitetura e Urbanismo e Design de Interiores, atua profissionalmente como arquiteta, urbanista e fotógrafa.