Conhecer a África do Sul é chocar-se com a segregação e a profunda desigualdade, mas é também deparar-se com um acervo arquitetônico muito diversificado em suas referências estilísticas e caracterizações regionais. Duas fontes podem ser bastante valiosas para orientar uma viagem, real ou virtual, pela arquitetura sul-africana: o Architectural Guide: South Africa e o website Artefacts (1). Cada uma delas mostra uma abordagem distinta do problema de selecionar, classificar e documentar informações no campo da arquitetura. Em ambas, há o problema de lidar com uma história de construções e monumentos ligados à afirmação de projetos ideológicos e à conflituosa memória de grupos minoritários.
A paisagem das cidades sul-africanas evidencia o estabelecimento dos holandeses em meados do século 17, a alternância do domínio britânico e holandês, em meio à expansão dos povos zulus, no século 19, a emergência da questão da identidade nacional na primeira década do século 20 e os grandes programas governamentais do apartheid (1948-94). Tradições acadêmicas e vertentes modernas inspiradas na Europa, na Ásia e mesmo no Rio de Janeiro foram emuladas ou aclimataram-se em expressões locais. O processo de democratização de meados dos anos 1990 impulsionou a busca por uma renovada identidade sul-africana – e por expressões condizentes na linguagem arquitetônica. Uma nação arco-íris, diria o arcebispo Desmond Tutu; um mito identitário pacificador, diriam seus críticos. Tentar conhecer a arquitetura e as cidades sul-africanas é de algum modo ter de enfrentar essas difíceis questões.
A tarefa não caberia num guia de arquitetura, publicação da qual não se esperam estudos exaustivos ou análises aprofundadas, mas seleções sucintas e explicações breves. No entanto, mesmo um guia de arquitetura não poderia se furtar a lidar com questões tão centrais. No Architectural Guide: South Africa de Roger C. Fisher e Nicholas J. Clarke, adotou-se uma estrutura baseada em temas “sócio-arquitetônicos” e temas tipológicos. As cidades ou centros metropolitanos abordados são Cidade do Cabo, Durban e a conurbação Johannesburg/Pretoria. Os temas sócio-arquitetônicos apresentam-se no início do livro como marcos de uma sintética história da arquitetura sul-africana. Esses temas são: 1) os arquitetos iniciais; 2) África do Sul unificada; 3) Movimento moderno; 4) Art Deco; 5) Regionalismo; 6) Brutalismo; 7) Nacionalismo monumental; 8) Democracia: moldando a nova África do Sul; 9) Projetos cívicos. Para cada um dos centros tratados, apresentam-se então edifícios ou monumentos relacionados a esses temas principais. Acrescentam-se também referências a tipologias de provável interesse para o leitor do guia: estações de transporte público, aeroportos, estádios, escolas de Arquitetura. A apresentação das obras de cada uma das metrópoles abre-se com o depoimento livre e pessoal de um arquiteto sobre a “sua” cidade.
Architectural Guide: South Africa equilibra o tom mais leve de um guia de viagem com a base na sólida trajetória de pesquisa acadêmica de seus autores. Roger C. Fisher, professor emérito do Departamento de Arquitetura da Universidade de Pretoria, é referência central no campo da história da arquitetura e do patrimônio sul-africanos e autor/organizador de uma extensa lista de artigos e livros, entre os quais o já raro Architecture of the Transvaal (2). Nicholas J. Clarke, seu anterior aluno, também foi professor de arquitetura na Universidade de Pretoria. A parceria mostra-se sintonizada na linguagem informativa e acessível sem deixar de ser crítica. A quantidade de obras abordadas é de cerca de cento e cinquenta, com ênfase na arquitetura secular feita por arquitetos profissionais.
O guia provoca perguntas. Onde encontrar mais informações sobre o arquiteto sul-africano Norman Eaton (1902-66), com seu refinado trabalho em tijolo, numa linguagem moderna atenta a tradições locais e a escala do pedestre? E essas surpreendentes afinidades com o modernismo carioca? Ou, simplesmente, como saber mais sobre a imensa diversidade de temas ali sugeridos?
Uma listagem mais extensa encontra-se em outra iniciativa de documentação, a plataforma online Artefacts, cujo principal consultor é o mesmo professor Roger C. Fisher. O site reúne informações de periódicos, livros e teses até então nem sempre de fácil acesso e mantém-se em continua expansão por meio das contribuições de pesquisadores, estudantes e órgãos profissionais.
Artefacts é abrangente nos programas e tipologias reunidos: inclui edifícios industriais, templos religiosos, ruas, reservatórios de água e edifícios de autoria desconhecida. Traz possibilidades de consulta não só por obras, como também por cidades, livros, pessoas, firmas e por léxico. Esses temas apresentam-se inter-referenciados, de modo que a consulta a um arquiteto leva a uma biografia e a um conjunto de obras, além de dar acesso a seus escritos e também a indicações de artigos e livros a seu respeito. Surgem inesgotáveis possibilidades de navegação.
Uma medida do seu potencial para estudos, entre nós, pode-se ver no texto “A quatro mãos: Arquitetura moderna brasileira, 1978-82” (3), de Sylvia Ficher e Marlene Acayaba. As autoras contam os bastidores de uma divertida viagem pelo Brasil em 1979 para reunir in loco dados sobre obras até então pouco estudadas ou mesmo desconhecidas. A pesquisa despertou também o interesse por investigar inusitadas repercussões da arquitetura brasileira no exterior. Descobriu-se que na década de 1940 o Brazil Builds (4) já circulava na África do Sul e o edifício do Ministério da Educação e Saúde (1936-45) estava fazendo escola por lá. Para revisitar o tema e conhecer os filhotes do Ministério naquele país, a autora não precisou fazer outra viagem: pôde contar com bancos de dados online, valendo-se muito do site Artefacts e dos links ali indicados. Aliás, é a própria Sylvia Ficher quem finaliza o texto refletindo sobre a reconfiguração das práticas de pesquisa em tempos de internet. É muito necessário, como propõe, discutir os critérios para legitimar e chancelar as novas fontes disponíveis em ambiente virtual. Há sempre o risco de nos deixarmos enfeitiçar pela miríade de informações nem sempre confiáveis. Perigosa internet! – adverte.
Temos importantes experiências de documentação, sistematização e divulgação de dados em Arquitetura e Urbanismo no Brasil, mas ainda há muito espaço para explorar as possibilidades de reunir online informações sobre projetos, obras e arquitetos. Esse é mais um motivo para conhecer iniciativas competentes nessa área e para exclamar, às vezes, bendita internet!
notas
1
Artefacts. Southern African Built Environment. Disponível em: <www.artefacts.co.za>. Acesso em: 2 maio 2015.
2
FISHER, Roger C.; LE ROUX, Schalk W.; MARE, Estelle. (Org). Architecture of the Transvaal. Pretoria, UNISA, 1998.
3
FICHER, Sylvia; ACAYABA, Marlene Milan. A quatro mãos: arquitetura moderna brasileira, 1978-1982. In: DERNTL, Maria Fernanda; PEIXOTO, Elane Ribeiro (Org.). Arquitetura, estética e cidade: questões da modernidade. Brasília, Universidade de Brasília, FAU-UnB, 2014, p. 22-62.
4
GOODWIN, Philip L. Brazil Builds: architecture new and old 1652-1942 (Construção brasileira: arquitetura moderna e antiga,1652-1942). Nova York, Museu de Arte Moderna, 1943.
sobre a autora
Maria Fernanda Derntl é professora e pesquisadora da FAU-UnB. Autora do livro Método e arte: urbanização e formação territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811 (Alameda/FAPESP, 2014). Organizadora de Brasília 50+50: cidade, história e projeto (com Luciana Saboia, EdUnB/2014).