Portadores: imaginário e arquitetura é resultado do trabalho do grupo de pesquisa CNPq “Representações: imaginário e tecnologia”, liderado pelo professor Artur Simões Rozestraten, vinculado ao Núcleo de Apoio à Pesquisa em Ambientes Colaborativos na Web (Naweb), e da parceria com a VideoFAU, o Labhab e o Lamemo-FAU-UFPA. O projeto contou com o apoio do CNPq, da Pró-reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.
O livro e a pesquisa que lhe deu origem tiveram o apoio de diversas personalidades e associações populares ligadas aos lugares e às festividades apresentadas: por exemplo, a Associação dos Folguedos Populares de Alagoas, o Museu Théo Brandão (Maceió), a Casa de Plácido, o Museu do Círio e o Museu da Universidade Federal do Pará (Belém).
Finalmente, pesquisa e livro tratam das festividades do Círio de Nazaré e do folguedo do Guerreiro Alagoano, que apresentam em fotografias em preto e branco e textos em português e em francês. O prefácio é do filósofo e professor da Universidade de Lyon 3 Jean-Jacques Wunenburger, e o texto explicativo do projeto, do professor Artur Rozestraten, da FAU USP.
A festividade do Círio é a maior manifestação católica no Brasil e acontece todo outubro, desde 1793, em Belém do Pará, onde se reúnem cerca de dois milhões de romeiros em cultos e homenagens à Virgem Maria, Nossa Senhora de Nazaré, Rainha da Amazônia. Em 2004, a procissão foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan como patrimônio cultural de natureza imaterial.
O Guerreiro Alagoano é um rito de celebração, um auto de fé natalino que comemora o nascimento do menino Jesus. Também acontece todos os anos, ao menos desde os anos 1930, desde o Natal (24 de dezembro) até o Dia de Reis (6 de janeiro). É uma dança-luta primordial entre as forças do bem e do mal num “teatro do mundo” em que se passa pela escuridão da noite, enfrentando monstros e a própria morte para assegurar a perpétua ressurreição da vida.
As festas são retratadas com belas fotografias em preto e branco, de autoria de Artur Rozestraten, Daniele dos Santos e Karina Leitão, mostrando detalhadamente os promesseiros portadores e suas oferendas ao Círio e a rica indumentária dos dançantes do Guerreiro.
No entanto, o foco do estudo não é a procissão do Círio, já amplamente estudada, como aponta Rozestraten, dando inúmeras referências, mas a arquitetura. E não qualquer arquitetura, mas a da casa tradicional, manifesta na forma de ex-votos, que servem tanto para agradecer a graça recebida como para representar o objeto desejado. A casa se apresenta à divindade no formato reduzido de uma maquete, um modelo em escala transportável, que se leva (e eleva) acima da cabeça, para que o Altíssimo possa ver com a representação da dádiva (concedida ou solicitada, o que nunca fica claro para quem olha, pois é do foro íntimo do pedinte). As formas dessas maquetes variam de casas tradicionais (da tradição popular e artesanal nortista e nordestina, amplamente documentada no livro) até representações de casas do projeto Minha Casa Minha Vida, e às vezes se colocam tijolos ou blocos cerâmicos no lugar da casa, como índices, no sentido pirceiano.
Também no Guerreiro o foco é a arquitetura, mas não como uma oferenda, e sim como manifestação da grande cenografia ritualística que se concentra na casa de Deus, no templo sagrado que permite adentrar os domínios do sagrado e que nos preserva do profano e do terrível que existe no mundo. Não é a luta do enredo que mistura personagens tão variados como o Índio Peri, a Lira, o Papa-Figo, a Alma, o Zabelê, o Sapo, o Mateu, o Doido, o Mata-Mosquito, a Sereia, a Estrela Dalva e ainda os Reis, Rainhas e Embaixadores, além dos Palhaços, mas o que coroa a dança dos dançantes do Guerreiro que portam catedrais na cabeça. Maquetes estilizadas de igrejas que representam a reunião da Assembleia, a plêiade de figurantes e participantes, o local do corpo coletivo da sociedade, que se reúne em oração (em dança) para comunicar-se com Deus. São, os chapéus dos Mestres e Embaixadores do folguedo, representações imaginativas de catedrais celestiais onde Deus se nos apresenta. Coreograficamente, esses chapéus catedralescos se relacionam com uma estilização da casa popular, que aparece também nos chapéus dos Palhaços, na estranha forma de um zigurate, que brincam/dançam entorno dos Mestres.
As duas festividades são bem diferentes, mas em ambas a presença da arquitetura determina uma condição de relevância para quem pesquisa representações. A partir das representações arquitetônicas, ambas as celebrações se vinculam a tradições ancestrais da humanidade, em que se estabelece uma ligação entre a casa do homem e a casa de Deus. Como afirma o Prof. Wunenburger no prefácio, é uma forma que o homem encontrou “de apresentar-se a si mesmo a Deus através de sua própria casa”. Uma casa posta em relação com a Virgem e com a natividade, uma casa feminina, “mundo oco” uterino, que remonta a antigas tradições pagãs das deusas da natureza, como aponta Rozestraten, tradição que remonta à Ártemis micênica Potnia Theron, ou ao arcaísmo grego de Hera e de Ártemis Efésia, que retoma as imagens de Cibele e da Ísis egípcia. Deusa-mãe-terra da qual brota a casa, feita de argila, como a dos tijolos que os romeiros portam na cabeça na procissão do Círio, retratadas nas fotos do livro.
É uma oportunidade excelente para penetrar o mundo de tais festividades, assim como também uma ponte, uma conexão entre o mundo das representações (arquitetônicas) e o mundo do imaginário, dos desejos, dos medos e das comemorações, dentro das tradições populares brasileiras. Mas, como adverte o professor Wunenburger no prefácio, não devemos pensar esses eventos como retratos pitorescos, meramente folclóricos, da emoção religiosa dos que cantam “Vós sois o Lírio Mimoso”, mas como expressão vital da relação entre arquitetura e povo, mediada pela graça da divindade acolhida na “nossa” casa. Percorrer as páginas repletas de fotografias emocionantes e entender o fenômeno descrito no texto é uma experiência reconfortante.
sobre o autor
Fernando Guillermo Vázquez Ramos é professor do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da USJT. Líder do grupo de pesquisa CNPq “Arquitetura e cidade: representações”. Coeditor da revista arq.urb. Doutor (Univ. Politécnica de Madrid, 1992); Master (Inst. de Estética y Teoria de las Artes, Madri, 1990); Técnico em Urbanismo (Inst. Nac. de Adm. Pública, Madri 1988); Arquiteto (Univ. de Buenos Aires, 1979).