No início dos anos 1970, em pleno auge da repressão política imposta pela ditadura cívico-militar, a administração do prefeito José Carlos de Figueiredo Ferraz (1971-1973), amparada pela promulgação em 1972 da Lei de Zoneamento no município de São Paulo e pelos preparativos para a inauguração da primeira linha de metrô na cidade, encomendou ao escritório Rino Levi o desenvolvimento de um “Plano de Renovação Urbana de São Paulo”. Durante as duas décadas anteriores, o ideário da renovação urbana, oriundo da Carta de Atenas, dominara os círculos do urbanismo europeu. Ao pregar a metodologia “arrasa quarteirão” para recuperar e preservar o patrimônio cultural remanescente das grandes guerras que abalaram aquele continente na primeira metade do século 20, a renovação urbana convertera-se em uma política centrífuga de caráter higienista, que forçava a expansão horizontal das grandes capitais europeias. Apropriar-se do termo renovação, em voga nos países centrais, conferia respeitabilidade ao projeto.
No entanto, o projeto de fato desenvolvido pelo escritório Rino Levi não foi um projeto de “renovação”. Ao contrário, o plano se distanciava dos projetos de renovação em todas as suas principais características: não propunha grandes intervenções em pequenas áreas, demonstrava aversão a demolições em massa, objetivava aumentar a população residente nas áreas centrais e, mais ainda, almejava uma diversificação de classes sociais nas áreas “renovadas”.
Um capítulo à parte desse projeto foi destinado à “renovação” da área da Luz, compreendendo a região delimitada pela marginal do rio Tietê, avenida Cruzeiro do Sul, a avenida do Estado, rua Mauá, a rua Prates e uma linha imaginária entre esta última e a marginal do rio Tietê. O plano de intervenção nesta área, denominada pela Lei de Zoneamento como Z8007, foi orientado em base a dois objetivos centrais, a saber:
“– Maximizar o desempenho da área da Luz no contexto urbano e metropolitano, tendo em vista suas condições excepcionais de localização e acesso;
– Otimizar a qualidade de vida urbana na área assegurando condições ambientais do mais alto nível” (p. 13).
Esses objetivos, que na década de 1970 podiam parecer contraditórios, foram abordados de forma bastante “moderna” pela equipe de arquitetos dirigida por Roberto de Cerqueira César, Luiz Roberto Carvalho Franco e Paulo Julio Valentino Bruna. Preocupações com a qualidade de vida dos moradores, com a preservação do patrimônio histórico, arquitetônico e cultural da região e com o meio ambiente tangenciaram as cerca de 200 páginas do projeto concluído em 1977 (1), que, por outro lado, não deixava de levar em consideração as demandas surgentes pelo fortalecimento da malha viária da cidade, especialmente em uma região estratégica como a da chamada área da Luz.
Para propor alterações na infraestrutura viária da região, os arquitetos do escritório Rino Levi recuperaram algumas das propostas contidas no Plano Urbanístico Básico (PUB) de 1968 e no Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) de 1971, que haviam sido negligenciadas pelo poder público até então (2). As obras viárias tratadas pelo projeto eram quatro:
1) o prolongamento da rua Prates até a Marginal do Rio Tietê;
2) a constituição do corredor Bresser-Emissário, um corredor viário que utilizaria em sua maior parte vias já existentes e ligaria a avenida dos Emissários (atual avenida Marquês de São Vicente), na Barra Funda, até o Viaduto Bresser, no bairro do Brás, cortando os bairros do Bom Retiro, Luz e Pari;
3) a Extensão do trecho duplicado da Rua João Teodoro até a Rua Rodrigues dos Santos, interligando-a ao corredor Bresser-Emissário (3), e, sua extensão em trecho não duplicado até a Avenida Paes de Barros no bairro da Mooca, utilizando-se do eixo das ruas Mendes júnior e Hipódromo;
4) a construção de uma nova via expressa, que atravessaria a região do Pari, partindo da avenida Alcântara Machado, na região do Gasômetro,ligando-a à Marginal Tietê e, desafogando o trânsito nas pontes da Bandeira e Cruzeiro do Sul.
Essas quatro obras viárias visavam dar fluidez ao tráfego na região sem que fossem feitas grandes intervenções em sua paisagem; para isso, pretendia-se aproveitar as vias já existentes, utilizá-las de forma mais inteligente, fazendo com que o tráfego fosse mais rapidamente escoado para fora da região. Essa ausência de grandes obras é elemento atípico nas políticas urbanísticas brasileiras, sobretudo àquela época, mas a escolha dos arquitetos Cerqueira César, Carvalho Franco e Paulo Bruna estava relacionada a conceitos então nascentes de uma arquitetura mais “ecologista”: desejava-se assegurar “condições ambientais do mais alto nível” (p. 13), ainda que, para isso, fosse necessário reduzir atividades industriais e circulação de veículos, conforme se nota na tabela abaixo.
Em 1974, 7,21% da área total da região da Luz estavam ocupados por atividades industriais. O Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado pretendia industrializar ainda mais a região, destinando até 60% de seu espaço a tais atividades, aproveitando sua localização privilegiada, próxima às linhas férreas e à Marginal Tietê. Os arquitetos do escritório Rino Levi, ao contrário, propunham extinguir esse tipo de atividade da área da Luz, em prol das condições ambientais para a população.
Quanto às vias de circulação, tanto o PUB/PDDI quanto a proposta do escritório Rino Levi pretendiam reduzir o uso do solo destinado a elas, dos quase 30% que ocupavam em 1974 para, no máximo, 20%. Desindustrializar, reduzir o número de vias e aumentar áreas verdes – sem isolar a região do contexto metropolitano – eram a chave da renovação defendida por Cerqueira Cesar e seus colaboradores.
Sem que fossem esclarecidas as razões, o projeto foi arquivado na gestão de Olavo Setúbal (prefeito de São Paulo entre 1975 e 1979), e apenas algumas de suas propostas foram contempladas pelas leis 8.328 de 02 de dezembro de 1975 (4) e 8.848 de 20 de dezembro de 1978, que tombaram alguns prédios históricos, delimitaram o tamanho dos passeios, legislaram sobre ocupação do solo e preservação de áreas verdes e oficializaram a arborização da praça construída no entorno da nova estação Ponte Pequena (atuais praça e estação Armênia), por exemplo. Mas há de se dizer que o que havia de fundamental no projeto, os seus pilares, aquilo que poderia de fato ter renovado a região da Luz, foi descartado pelo poder público.
O regime autoritário que vigorava à época dispensava o chefe do executivo da necessidade de justificar os motivos de seus vetos, mas podemos acreditar, que o mercado imobiliário não demonstrou interesse nas propostas do escritório Rino Levi; pelo contrário, notou o antagonismo entre o projeto Renovação da Luz e os seus interesses especulativos, visto a previsão de destinação de uma grande área central da cidade à habitação popular, a diminuição da malha viária na região e à imposição de dificuldades para a verticalização do bairro. Assim, apesar do esforço despendido por Luiz Roberto Carvalho Franco, Roberto de Cerqueira Cesar e Paulo Júlio Valentino Bruna, a região da Luz permaneceu vítima do descaso governamental e órfã de políticas públicas, seguindo assim sua trajetória de deterioração. Outros projetos de intervenção urbana na região da Luz se sucederiam – Luz Cultural (1985-1986), Pólo Luz (1995-2002), Nova Luz (2005-2012) – nenhum bem-sucedido, e nenhum deles com a mesma qualidade e sensibilidade para com a região (5).
notas
NA – Este texto é derivado do trabalho de conclusão do curso de graduação em Gestão de Políticas Públicas, do primeiro autor, elaborado em 2015 sob orientação do segundo.
1
O Projeto de Renovação da Luz começou a ser elaborado em 1973, apresentado parcialmente em 1975 e publicado em 1977 na forma de livro, que é mérito dessa resenha. Na época de sua publicação, foi recebido como “obra indispensável para arquitetos e estudantes de arquitetura, por ser este projeto um exemplo de metodologia na abordagem dos problemas de reurbanização de uma área extensa da cidade” (Folha de S.Paulo, 10 abr. 1977, p. 58).
2
MOSQUEIRA, Tatiana Meza. Reabilitação da Luz – centro histórico de São Paulo: projetos urbanos e estratégias de intervenção. Dissertação de mestrado (Arquitetura e Urbanismo). São Paulo, FAU USP, 2007.
3
A proposta original do PDDI foi revista visando a preservação de edifícios históricos na região da Rua João Teodoro limitando a duplicação desta somente até a rua Rodrigues dos Santos. Cf. MOSQUEIRA, Tatiana Meza. Op. cit.
4
Os trechos que se referiam à região foram posteriormente revogados pelas leis municipais 8.769/78 e 9.300/81.
5
FERNANDES, Marcelo Ricardo. Políticas urbanas na área da Luz: 40 anos de fracassos governamentais. Trabalho de Conclusão de Curso (Gestão de Políticas Públicas). São Paulo, EACH USP, 2015.
sobre os autores
Marcelo Ricardo Fernandes é bacharel em Gestão de Políticas Públicas pela EACH-USP.
Martin Jayo é professor da EACH-USP, atuando nos cursos de bacharelado e mestrado em Gestão de Políticas Públicas.