Como adverte o título – Capitalismo e colapso ambiental –, a proposta é radical. Define como saída única para a civilização e manutenção da espécie humana na Terra a superação do modo capitalista de produção, consumo e desenvolvimento ilimitado. Vem a ser um sonho irrealizável? Ora, a situação contemporânea de impasse perante o desequilíbrio ambiental e iniquidade social indicam outra alternativa concretizável?
Mais que crise, o autor nos defronta com a iminência de colapso: abrangente, cujos geradores e efeitos se potencializam, correlacionados em cadeia. Poderia ser tão somente uma ampla compilação organizadora de dados e isso o faz. Bastava analisar esses dados no âmbito causal e indicar consequências, posto que ambas – as causas e a iminência de futuro, são construção de nossa responsabilidade, pois estamos todos nós – seres humanos –, na condição inédita no planeta, em um estado aparentemente de totalidade e conexão. Aparentemente, já adianto.
Mas o historiador não se contém na história dos homens e, reativo à tradição antropocêntrica, submerge no todo. Nega à história, desde o princípio, um telos: denuncia o limiar de sua própria disciplina, a que escreve nossa narrativa, como limitada: em seu campo, pelo insistente prevalecimento da figura humana como centro e em sua potência, incapaz de predição. Adeus às Ilusões. Sem sobras de sorriso.
Começa olhando de baixo para cima a Natureza, ou se preferirem, de dentro e por dentro, mas com olhos gêmeos de Janus, cujo rito, anuncia, poderá ser de novos inícios, transições, guerras, derrocadas ou extinção final. Ultrapassemos, então, guiados por ele, seu portal para um vislumbre do panorama.
Só há História se existe o homem, mas se houver o fim da humanidade e da História, a Natureza – combalida e cicatrizada –, ao final da batalha, permanecerá.
Sem nós.
Seremos não os primeiros a desaparecer, porque estamos aniquilando com muita propriedade diversos ecossistemas; no entanto, como imersos neles, seremos também extintos por nós mesmos, se não tivermos a potência de alterar o curso e a possibilidade de História. Não obstante a estrutura da Natureza – o kósmos, o mundo belamente ordenado – não carece, hoje sabemos, de modo imprescindível, da História e, no limite, nem de nós.
O mal estar na civilização se mantém atual: “A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle, que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’ [...], o eterno Eros, desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?” (1). Agora o mal estar transpõe as bordas internas de nossa civilização e recai sobre o ambiente, desembelezando o cosmos e alterando suas ordens.
O livro aponta como tese alguns caminhos de sobrevivência da nossa espécie a tempo e modo e os inscreve, com pormenores, no debate contemporâneo a respeito dos diversos processos de crise ambiental a estancar, a partir, necessariamente, de outra relação Humanidade e Natureza, onde esta deva ser entendida em sua regência fundamental e superior, tendo incontinenti como hipótese a falência do capitalismo, motor do colapso ambiental.
A demonstração é brilhante, matemática, porém na qualidade daquela matemática de tradição ocidental onde a proporção e o número pudessem revelar as regras absolutas do devir da Natureza – a phýsis – como desvelamento das ideias absolutas e primordiais atinentes ao próprio lógos. Para contemplar essa resolução matemática é imprescindível ser cosmológico, acreditar na ordem e beleza subjacente ao Universo. Mas as temos em nós mesmos?
Eis uma resistência do humanismo agora em sua abrangência mais ampla, a de um ambientalismo consciente e culto, que se encontra no âmbito da denúncia, da evidenciação científica e artística e da proposição de algumas ações que já vislumbram possibilidades concretas de ação civilizada no mundo em outras bases. Vamos a elas.
A Parte I do texto apresenta em amplitude o conjunto das crises ambientais em convergência, vale dizer, como inter-relacionadas e indissociáveis, que creio importante enumerar em minúcia e exagero, para estampar sua extensão flagrante, ao paroxismo:
- a diminuição e degradação das florestas;
- águas, solos e insegurança alimentar;
- lixo, efluentes e intoxicação industrial;
- combustíveis fósseis;
- a regressão do carvão;
- mudanças climáticas;
- demografia e democracia;
- colapso da biodiversidade terrestre;
- colapso da biodiversidade no meio aquático.
Postas a termo com considerações definidas como:
- antropoceno: rumo à hipobiosfera;
- o saldo qualitativo das crises ao colapso.
A conclusão é inconteste.
A proporção e o espectro do esgotamento dos recursos planetários e destruição das fontes físicas e ataque aos sistemas biológicos é de tal envergadura e interdependência que expressiva representação da ciência (2) coloca a necessidade de que toda atividade econômica e ação política se paute pelo imperativo de “minimizar a transformação dos ecossistemas remanescentes da Terra” a qual está “rapidamente se aproximando de um ponto crítico (tipping point)” devido aos impactos humanos, cuja evidência de deterioração dos ecossistemas suportes da vida, com base na melhor informação científica, indica que se mantida a via atual, a qualidade de vida humana sofrerá substancial degradação por volta de 2050. As talvez 50 milhões de espécies que compõem a biodiversidade atual está sendo devastada de modo consciente, por uma de suas espécies, pretensamente dominante, portanto em um processo destrutivo interno à bioesfera e não por agentes externos, desagregando a rede biológica que faz esta mesma espécie existir, com rapidez excepcional.
As projeções descortinam que as emissões dos gases de efeito estufa e estágio de carbonização da economia mundial atingem um grau preocupante, onde o limiar de acréscimo de 2ºC até 2100 (3) é perturbador. É passível tornar inabitáveis regiões de baixa latitude em períodos do ano, conduzir à perda de massa de geleiras, liberar imensa quantidade de metano aprisionado em áreas geladas o que potencializaria a ação do efeito estufa a índices insustentáveis, potencializar os efeitos meteorológicos extremos, a expansão térmica dos oceanos e a elevação do nível do mar, o que pode levar à perda de cidades costeiras, destruição de terras baixas e agricultáveis, submersão de ilhas, devastação completa de ecossistemas e migração de até 150 milhões de pessoas, em determinados cenários de previsão (4).
A Parte II – Três ilusões concêntricas – tendo as premissas de colapso socioambiental já estabelecidas e demonstrada com rigor, desdobra-se na tríade formulada:
- da ilusão de um capitalismo sustentável, sendo sustentabilidade e capitalismo ideias antitéticas;
- da falência do princípio da acumulação infinita que reside no pressuposto mais excedente=menos segurança;
- e da ilusão antropocêntrica – parâmetro a ser ultrapassado.
Não somos o ápice e senhor absoluto da cadeia biológica e em descontinuidade com ela simplesmente garantidos pelo primado da consciência; tampouco a adaptabilidade do habitat humano na natureza não é absoluta ou nos isenta de estarmos sujeitos a ela e suas leis; não somos o centro do Universo como a Terra também não o é. Quantos séculos de Aristóteles a Copérnico, deste a Galileu, Kepler, Newton e Einstein. E quanta resistência às teses científicas.
Por outro viés, não somos imagem e semelhança de Deus por ele absolvidos como senhores da Terra; já fomos expulsos do paraíso infinitamente abundante e, mesmo que na dor damos à luz nossos filhos e no suor de nossos rostos comemos nosso pão, tornaremos à terra porque dela fomos tomados, somos pó e ao pó tornaremos. E este pó é lavoisieriano e constante em massa em um sistema fechado, pois a soma total das massas reagentes é igual à soma total das massas produzidas. Os recursos da phýsis não são infinitos. Se “na Natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma” no breve interregno em que somos vida – apenas uma espécie dentro do processo evolutivo, temos na luta pela sobrevivência também uma batalha com nosso espelho.
Nessa contenda a pirâmide global de riquezas (5) expõe que 0,7% da humanidade adulta detém 41% da riqueza mundial enquanto mais de dois terços, ou seja, 68,7% dos indivíduos adultos possuem 3%, configurando o maior nível de desigualdade humana. A proporção de 0,004% da espécie humana adulta, conhecida como UHNWI (6) concentra 12,33% da riqueza. Em 2016 o 1% mais rico da humanidade superou a riqueza dos 99% restantes (7). Em 2015 havia 2,7 bilhões de pessoas sem acesso à infraestrutura de saneamento básico e mais de1 bilhão sem água potável.
Desmonta-se a possibilidade de crescimento econômico contínuo e infinito, cuja tendência à acumulação e concentração passa a ser um fim em si, inclusive do ponto de vista ideológico, onde o capitalismo se legitima pelas promessas da sociedade de consumo cuja segurança, prosperidade e conforto seriam virtualmente alcançáveis pela combinação virtuosa de mercado, políticas econômicas e tecnologia. No entanto os limites físicos e seu esgotamento são evidentes e a relojoaria não tem fonte de energia para funcionar.
O autor encerra com uma proposta esboçada da evolução do contrato social ao contrato natural, na direção de submeter a economia à ecologia.
Aponta para a descentralização e compartilhamento de poder de arbitragem e veto (8) através de um pacto constitucional nacional e internacional, uma Organização Mundial do Meio Ambiente, governança global compartilhada acima dos Estados-Nações relativizando seu direito de autodeterminação, composta paritariamente por representantes: da sociedade civil; das instituições científicas; das futuras gerações; dos interesses das espécies não humanas (biólogos, botânicos e sociedades de proteção dos animais). As decisões precípuas e basilares seriam o controle contra: a manutenção da engrenagem de acumulação; o aumento de poluição e desperdício de recursos; o impacto da atividade econômica sobre os recursos naturais os equilíbrios dos ecossistemas além do limite preconizado pelos consensos científicos de instituições internacionais pertencentes à ONU ou credenciadas por seus tratados e convenções.
Bastaria aos mais afoitos ou superficiais de plantão a leitura do Prefácio à segunda edição e da Introdução como ferramental suficiente de convencimento. Neste prólogo, de cara, se apresenta a razão de ser de todo o livro, a partir dos axiomas:
- da grande inversão da equação – a demonstração de que mais excedente = menos segurança – e os limites da consciência ambiental;
- da mudança em curso na natureza do Estado: o Estado-Corporação;
- do retrocesso do multilateralismo;
- da constatação do Brasil como nação no “fundo do poço”;
- da análise do estágio atual das reservas naturais e o horror vacui;
- da insustentabilidade e o crescente protagonismo das crises ambientais;
- do que denomina a fênix que virou galinha;
- do auto-engano.
As duas teses centrais do livro perpassam toda a exposição: a primeira, a de que a sociedade futura será necessariamente pós-capitalista se almejar alguma complexidade e para que a humanidade possa voltar a “caber” na biosfera, dado ser o capitalismo intrinsecamente um sistema expansivo e concentrador que se torna mais ambientalmente destrutivo, conforme encontrar dificuldades em se expandir, o que corrobora com a segunda tese, por decorrência da primeira, de que a ilusão de um capitalismo sustentável retira sua seiva de duas outras ilusões ou fantasias, a de que a acumulação de excedente material e energético seja o mecanismo correto em assegurar nossa existência como espécie perante as adversidades da Natureza e a ilusão ou delírio mais germinal – a nossa ilusão antropocêntrica –, equívoco de origem, de base histórica quase ancestral.
Basta, para os inteligentíssimos e cultos, os mais ignorantes ou os tendentes à fé sem comprovação, a crença direta ou compreensão meteórica do título: ‘Capitalismo e Colapso Ambiental’.
Para aqueles que humildemente tentam se dedicar ao entendimento através do estudo, recomendamos a leitura atenta.
Felicitemos, pois, nosso historiador, pela coragem de, a partir dos métodos da História, alcançar a capacidade crítica em meio à selva de dados das ciências naturais, da técnica, das ciências sociais, da política e da economia, fazendo-se entender com clareza.
Este é um livro que pretende ver e demonstrar o que acha preciso. Preciso no sentido de rigoroso e preciso no sentido de necessário, parodiando Fernando Pessoa, pois afinal sem poesia ninguém vive.
notas
1
FREUD, Sigmund (1930). O mal estar da civilização.
2
Ver Scientific Consensus on Maintaining Humanity’s Life Support Systems in the 21th Century. Information for Policy Markers in <http://consensusforaction,stanford.edu/endorse.php>.
3
Temperatura em relação às do período 1850-1900.
4
Cimate ou sea-level refugees.
5
Baseada em The Crédit Suisse Global Wealth Report (2013), a partir de dados de James Davies; Rodrigo Lluberas & Anthony Shorrocks.
6
Ultra-high-net-worth individuals.
7
Estudo da Oxfam: Oxford Committee for Famine Relief (Comitê de Oxford de Combate à Fome, baseado no Relatório Anual sobre Riqueza Mundial do Suisse Bank).
8
Como a proposta da Carta de Bruxelas para criação de uma Corte Penal Internacional de Meio Ambiente e Saúde com poder coercitivo.
sobre a autora
Vera Luz é arquiteta (FAU Mackenzie, 1978), doutora (FAU USP, 2004), e professora titular da FAU PUC-Campinas. É professora convidada da Fundação Vanzolini em Sustentabilidade na Arquitetura e no Urbanismo, conselheira do CAU/SP e coordenadora adjunta da Comissão Permanente de Ensino e Formação do CAU/SP (atual gestão). Colaborou em projetos urbanos como Caraíba e Barcarena (Joaquim Guedes e Associados) e Eixo Tamanduateí em Santo André (Urbe / Cândido Malta Campos Filho). Realiza projetos certificados pelo selo AQUA-HQE, em coautoria com a arquiteta Mirtes Luciani, em três dos quais foram obtidas as pontuações máximas até hoje no Brasil nas Fases Programa e Concepção. É autora do livro Ordem e origem em Lina Bo Bardi (Giostri, 2014).