“Como fui convidado há algum tempo para estar presente nessa solenidade, nesse interim eu pensei em algo para dizer e, como gostei muito, faço questão de falar. Para comemorar o aniversário dessa escola, da minha escola, seria conveniente a organização de um banquete. Imaginei como se fosse um filme, cheio de personagens importantes. O primeiro convidado a entrar seria o presidente da festividade. Entra altivo, carregando consigo a condição do grande arquiteto que foi, formado na Pensilvânia, autor da Estação de Trem da Sorocabana, atual Sala São Paulo. Fundador dessa escola, grande professor – mesmo aferrado aos princípios clássicos foi muito importante para aquela geração de alunos –, Christiano Stockler das Neves senta-se à cabeceira da mesa. Logo depois, entra o carioca Elisiário Bahiana, professor da escola, que legou para a cidade o Viaduto do Chá, encomenda ganha em concurso público, e do edifício do Mappin, que continua até hoje defronte ao Teatro Municipal com seu relógio na fachada. A seguir, entra o grande arquiteto Plinio Croce, fundador de um dos primeiros escritórios de arquitetura moderna da cidade, seguido do engenheiro Roberto Rossi Zuccolo, introdutor do concreto protendido em São Paulo, e Serafim Orlandi, professor de topografia, que ensinava aos alunos princípios básicos da disciplina e a compreensão da importância do sítio em qualquer projeto de arquitetura. O barulho de vozes e risadas anuncia a chegada do trio festivo formado por Fabio Moura Penteado, meu amigo pessoal de toda a vida, autor da arena ao ar livre em Campinas, o Centro de Convivência, uma obra espetacular; por Pedro Paulo de Melo Saraiva, arquiteto inventivo, que concebeu uma estrutura de arranha-céu que serviu de base para tantos projetos; por Alfredo Serafino Paesani, que nos trouxe a preocupação política que resultou na criação do Sindicato dos Arquitetos, embrião do atual Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Para completar a mesa, chegam um pouco atrasados dois arquitetos maiores, Carlos Barjas Millan, um ano mais velho do que eu, que deixou uma obra importante mesmo tendo vivido tão pouco; e Eurico Prado Lopes, autor do Centro Cultural São Paulo, marco de nossa cidade. Mesa completa, Stockler das Neves levanta a taça de vinho e convoca o brinde ao aniversário da escola”.
Foi assim que Paulo Archias Mendes da Rocha iniciou sua fala na abertura das festividades dos 100 anos de escola de arquitetura e 70 anos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie ocorrida na noite do dia 15 de março de 2017. Não é uma transcrição do vídeo, mas uma versão bem infiel gravada por minha memória em um momento carregado de emoção. Um dos mais importantes arquitetos egressos da escola que teve em suas salas e ateliês alunos do estatuto de Oswaldo Arthur Bratke, Miguel Forte, Carlos Lemos, Roberto Aflalo, Jacob Ruchti, Galiano Ciampaglia, Eduardo Longo e tantos outros além dos citados pelo homenageado, Mendes da Rocha foi recebido com aplausos, gritos e assovios efusivos quando subiu a rampa de acesso ao palco do Auditório Ruy Barbosa logo após a abertura oficial – apresentação de coral e breves discursos do chanceler Davi Charles Gomes, da diretora da FAU Mackenzie Angélica Alvim e de Benedito Guimarães Aguiar Neto, reitor da universidade. Sentou-se para um bate-papo no centro do semicírculo formado por cadeiras vermelhas, onde já o aguardavam a diretora da escola de arquitetura, os professores Sami Bussab e Maria Isabel Villac, e a acadêmica Victoria Braga, que lhe dirigiram perguntas.
O arquiteto reiterou, mais uma dentre tantas vezes, seu compromisso com a cidade harmônica e inclusiva, com as camadas mais desprotegidas e vulneráveis da população, com os conhecimentos técnico e artístico, com a ocupação mais inteligente do território através do uso de estradas ferroviária e hidroviária, com a proteção do meio ambiente, com a correção da natureza para melhor abrigar os estabelecimentos humanos, com a integração latino-americana, com a invenção americana ainda em curso e merecedora de redirecionamento, com o ensino emancipador para crianças, adolescentes e adultos, com a sociabilidade integradora e forma única de se evitar conflitos, crises diplomáticas e guerras. Segundo seu sonho, “a cidade serve para conversar” e o papel maior do arquiteto é sua materialização.
Paulo Archias Mendes da Rocha deixou marcas de extrema beleza nas cidades por onde passou. Em São Paulo realizou o Museu Brasileiro da Escultura – MuBE, a Pinacoteca do Estado e o ginásio do Clube Atlético Pinheiros; em Campos do Jordão, a Capela de São Pedro Apóstolo; em Osaka, o Pavilhão brasileiro da Feira Internacional do Japão; em Goiânia, o Estádio Serra Dourada; em Lisboa, o Museu Nacional dos Coches; em Vitória, cidade natal onde nasceu em 1928, o Cais das Artes; em Belo Horizonte, o Museu das Minas e do Metal; em Guarulhos, o Conjunto Habitacional Zezinho Magalhães Prado – Parque Cecap ao lado do mestre Vilanova Artigas e do amigo Fábio Penteado. E semeou pequenos suportes da vida familiar por toda a capital paulista e outras cidades, casas que são verdadeiras obras da arte e da técnica de construir.
Reflexo de sua obra maior, praticamente todos os prêmios honoríficos que um arquiteto pode receber lhe foram outorgados ao longo dos anos: o Prêmio pela Trajetória Profissional na I Bienal Ibero-Americana de Arquitetura – BIAU (Madri, 1998), o Prêmio Mies Van der Rohe de Arquitetura Latino-Americana pela Pinacoteca de São Paulo (Barcelona, 2000), o Prêmio Pritzker (Istambul, 2006), o Leão de Ouro da Bienal de Veneza (Itália, 2016), o Prêmio Imperial do Japão (Tóquio, 2016) e a Medalha de Ouro do RIBA (Londres, 2017). Ainda não ganhou, é bom que se diga, o Oscar, prêmio maior do mundo do cinema. Com seu roteiro ontem apresentado para o filme “O banquete” já se torna forte candidato ao prêmio de melhor roteirista e quem sabe não possamos vê-lo em futuro breve percorrendo o tapete vermelho de Hollywood.
Para a plateia lotada, Paulo Mendes da Rocha falou sobre a morte. Disse que a passagem de cada um pela vida é muito breve, um quase nada diante dos milhões de anos da história coletiva dos homens. Em seu roteiro, certamente reservou para si uma cadeira ao lado de colegas e professores queridos para o banquete festivo dos que já se foram. Como demonstrou vigor e lucidez impressionantes, muitos de nós certamente sairemos de cena antes dele, mas sem a certeza que poderemos participar do banquete memorável. Enquanto esses dias não chegam, continuaremos a observá-lo das janelas de nossos escritórios percorrendo as calçadas na rua General Jardim, indo de escritório em escritório para fazer as coisas que mais gosta: conversar e trabalhar.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.