A política de urbanização no Brasil colonial tem sido objeto de inúmeros estudos e pesquisas, que têm abordado os mais diversos aspectos e problemáticas envolvidas no processo de formação territorial e no desenvolvimento dos núcleos urbanos nesse longo período. É evidente o enriquecimento de estudos, fomentado principalmente pelas teses e dissertações produzidas nos programas de pós-graduação do país, que se tornam, por sua vez, fontes de diversas publicações, alimentam fóruns de discussão e debate e contribuem, desta forma, para a divulgação do conhecimento nessa área para além da Academia. Em que pese o alto grau de maturidade acadêmico-científica que os estudos relacionados à cidade colonial no Brasil alcançaram nas últimas décadas, permanecem lacunas, compreensíveis aliás, tendo em vista, entre outros fatores, a própria dimensão continental do nosso país, que exige olhares específicos sobre realidades regionais também específicas, mesmo sem perder de vista o contexto maior, de todo o território colonial bem como de suas relações internacionais, com o qual essas visões particularizadas podem manter um “diálogo” e aproximações pertinentes.
É o que transparece no belo livro Método e Arte. Urbanização e formação territorial na capitania de São Paulo, 1765-1811, de autoria da pesquisadora e professora Maria Fernanda Derntl. O livro, publicado pela Alameda em 2013, é fruto de sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em março de 2010. A autora busca acompanhar a elaboração de uma política de urbanização a partir da análise das iniciativas de criação urbana promovidas durante o governo da capitania de São Paulo entre 1765 e 1811. Nesse esforço, ela aborda não somente a capitania de São Paulo em si, mas traça paralelos com outras regiões do Brasil colonial, com destaque para os atuais estados de Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás e os estados da Região Sul do Brasil, alguns dos quais, em determinados períodos do processo de organização territorial do Brasil colonial, eram parte integrante, em sua totalidade ou não, da capitania de São Paulo, que era muito mais extensa do que o estado atual homônimo. Também faz algumas referências a outras regiões localizadas no Norte e Nordeste do Brasil. Com essa proposta ousada, ela aborda um período ainda pouco estudado sobre a história de São Paulo e mesmo do Centro-Sul do Brasil. No caso de São Paulo, em particular, abundam estudos de meados do século 19 em diante, mas o século 18 ainda estava por merecer um estudo dessa natureza.
A feliz expressão “método e arte”, título da tese e também do livro, foi cunhada num documento escrito em 1772, que tratava de um plano conjunto de defesa do sul da colônia, em razão da ameaça por parte da colonização espanhola. O termo, no dizer da própria autora, “refere-se à ideia de que a Coroa Portuguesa foi tentando organizar determinados modos de conduzir a expansão urbana, ao passo que experiências e circunstâncias locais constantemente exigiram arranjos novos e específicos”. De fato, perpassa, ao longo livro, esse embate constante entre o idealizado e o possível, entre o planejado e o executado nas diversas experiências por ela analisadas, muitas das quais também envolviam questões de fronteira ou de limites para além daquela relativa ao sul do Brasil. A expressão, citada no referido documento, já é, portanto, capaz de expressar por si só o alto grau de complexidade que representou o ato de povoar e urbanizar. O recorte cronológico, por sua vez, grosso modo restrito à segunda metade do século 18, foi definido em função, justamente, da intensidade com que esse método e arte parece ocorrer.
Ainda que trate de uma série de questões complexas, inter-relacionadas, Maria Fernanda não perde o seu foco, pois a discussão gravita sempre em torno da questão central que guiou todo o seu trabalho, isto é, a fundação e desenvolvimento de núcleos urbanos e sua relação com o território. Aspectos como o papel geopolítico das inúmeras localidades analisadas, as disputas territoriais com os representantes locais da Coroa espanhola, o papel dos diversos atores envolvidos, desde os altos representantes da metrópole, a começar pelo Rei, até os atores locais, com destaque para a figura emblemática do Morgado de Mateus, entre outras autoridades, que eram o braço do poder régio nas terras americanas, além de índios, colonos, oficiais das câmaras, engenheiros militares, representantes da igreja e outros, fazem parte do que poderíamos resumidamente chamar de o ato ou processo de povoar e urbanizar o território colonial, repleto de contradições, embates, interesses e visões diversificadas. Mesmo que, para a maioria desses atores os objetivos fossem, em última instância, os mesmos, a maneira como atingi-los poderia diferir fortemente entre eles.
O livro se divide em três grandes partes, além da Introdução e das considerações finais. Na primeira, intitulada “No Império Português”, Maria Fernanda aborda algumas experiências e intervenções urbanas em Portugal e como elas são transpostas para o Brasil. Tem mais um caráter de pano de fundo ao tema central, abordado nas duas partes seguintes, os “Territórios da Capitania de São Paulo”, em que as questões da política de urbanização e organização territorial são analisadas, e a terceira parte, “Espaços urbanos e urbanização”, que focaliza a escala ou dimensão do espaço intraurbano dos diversos núcleos estudados. Essa terceira parte é igualmente muito instigante, ao abordar questões como a escolha do sítio, o desenho dessas localidades, fartamente ilustradas com mapas e croquis da época, bem como as motivações e conflitos dos atores envolvidos, entre tantos outros. Toda a análise é fortemente fundamentada em fontes bibliográficas e, principalmente, numa vasta fonte documental primária, boa parte da qual inédita, obtida em vários arquivos dentro e fora do Brasil, o que reforça o caráter de verdadeira contribuição para a produção de conhecimento possibilitada por este trabalho. Estudioso também dessas questões, li o livro fazendo inúmeros paralelos inevitáveis com a realidade do Rio Grande do Norte, e lamentei maiores referências à realidade que conheço melhor, mas entendo os limites já muito amplos do trabalho. Além do mais, talvez este seja, justamente, o objetivo inconfesso do livro: provocar no leitor em geral, mas especialmente naquele interessado pelo tema e que se dedica a outras realidades do vasto território brasileiro, diálogos, discussões e contraposições, sempre enriquecedoras.
sobre o autor
Rubenilson Brazão Teixeira. Arquiteto e urbanista, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (1986); Mestre em Habitação (McGill University, Montreal - 1990); Doutor em Estudos Urbanos (EHESS/Paris - 2002); pós-doutorado na Universidade de La Rochelle, França (2013). Professor do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – da UFRN. Bolsista de produtividade nível 2 do CNPq.