Décadas depois da abolição da escravatura no Brasil, corriam os anos 1920 e os negros ainda eram subjugados, condenados a trabalhos forçados, humilhados. Para as mulheres, a situação era ainda pior, posto que seviciadas, molestadas e, muitas vezes, estupradas pelos brancos. Essa era a situação vivida no Brasil quando a história do filme Besouro (1), direção de João Daniel Tikhomiroff, se desenrola em Santo Amaro da Purificação, na região do Recôncavo Baiano.
A sociedade rural era então mandatária e dominante no lugar. A figura emblemática desse poder era o coronel, e sua mão pesada se fazia sentir em todas as esferas da vida da cidade. Nesse contexto, os negros eram a massa oprimida, e suas manifestações religiosas e culturais, reprimidas, inclusive a Capoeira, cuja prática era totalmente proibida.
É nesse ambiente que vive Manoel Henrique Pereira, menino negro nascido a menos de dez anos após a abolição. Criado em meio às matas, local onde, segundo reza a narrativa tradicional, era ensinada originalmente a Capoeira. Longe dos olhos dos coronéis e de seus asseclas, é ali que o menino aprende a luta. Seu professor, e também guia espiritual e moral por toda a vida, é Mestre Alípio, protagonista da batalha contra os coronéis, e amado pelo povo negro e humilde.
Sendo uma tradição da Capoeira a de adotar um apelido, que passa a substituir o nome entre os companheiros da luta, o menino Henrique cedo escolhe o apodo de Besouro, tomado ao inseto que acompanhava o seu aprendizado nas matas. O apelido é em tudo condizente com o esforço do menino em aprender um golpe voador, que seria o seu grande distintivo e trunfo na luta contra os opressores de seu povo. Já na sua adolescência, Besouro é um virtuose da luta, e passa a ser o protetor de seu mestre, perseguido, naquele momento, pelos coronéis.
Em um instante de deslize de atenção de Besouro, por estar em meio a uma roda de Capoeira, realizada às escondidas em um beco da cidade, Mestre Alípio é alvejado pelos tiros de capangas de um coronel. Avisado por amigos, Besouro ainda consegue impedir novos tiros, à força de golpes de Capoeira que desmobilizam totalmente os algozes de seu mestre. Este, no entanto, já está à beira da morte, e, como último pedido, segue nos braços de Besouro para as ruínas de uma senzala abandonada.
Compungido pela culpa do fracasso em impedir a morte do mestre, Besouro segue para um autoexílio nas matas. Aí, em contato com a natureza e assistido espiritualmente pela alma de Mestre Alípio e de poderosos orixás, Besouro irá se fortalecer e tornar-se o grande herói de seu povo. Com ações que beiram o fantástico, temido pelo coronel e seus capangas, que não entendem como “o negro vira bananeira, vira vento, vira tudo”, o capoeirista torna-se herói lendário ainda em vida.
Culpa, exílio, ajuda espiritual e fortalecimento pessoal são ingredientes clássicos das narrativas heróicas as mais diversas, desde as bíblicas, até as epopeias gregas, a exemplo da Ilíada e da Odisseia. O triângulo amoroso é outro desses ingredientes, e ele também se patenteia na saga do capoeirista. Formado por Besouro e seus companheiros de infância – Dinorá e Quero-Quero – o triângulo amoroso será crucial no destino do herói.
A riqueza de ingredientes literários clássicos fortalece a narrativa cinematográfica de Besouro. Guiada por um texto corajoso, que dá espaço tanto ao naturalismo, no retrato histórico, quanto ao realismo fantástico, a narrativa é enobrecida pelo roteiro. Nele, o fantástico ganha espaço no repasse das lendas dos orixás, tão importantes na compreensão do filme.
Um momento muito significativo da apropriação do fantástico no roteiro é representado pela entrada de Exu na feira da cidade, toda ela mantida por negros. A passagem de Exu por ali é pressentida apenas pela mãe-de-santo local. Inicialmente, Exu provoca um feirante que, minutos antes, quebrara uma oferenda feita ao orixá pela mãe-de-santo. Pouco depois, Exu passa a atormentar Besouro, dando início a uma das sequências mais sensacionais do filme, com direito a voos e vários ilusionismos. (Assim como na mitologia grega, onde os deuses padeciam de mazelas de amor e de outros sentimentos humanos, no Candomblé, e em outras religiões afro-brasileiras, os orixás também manifestam virtudes e vezos humanos.)
Sendo um filme que tem a luta e a superação como estofo da narrativa, e marcado por cenas como a descrita acima, Besouro merecia um apuro maior no ritmo. Isso evitaria aquela sensação de nó no tecido da narrativa, que pontua o miolo do filme. No entanto, isso é plenamente compensado pelos outros tantos méritos do filme, além do já destacado roteiro. A boa atuação dos atores, o equilíbrio entre eles, a trilha sonora, a reconstituição arquitetônica, urbanística e paisagística de época são alguns desses outros méritos. A fotografia, no entanto, assoma como o maior deles.
A abertura do filme, com uma câmera voando como um besouro sobre a feira da então pequena vila de Santo Amaro da Purificação, antecipa de modo precioso o virtuosismo da fotografia de Besouro. Excelência que é comprovada, ao longo do filme, pelos enquadramentos do capoeirista em seu exílio em meio a cascatas, lagoas e pedras. Mais ainda: pelos closes nos momentos mais pujantes das bravatas entre os capangas do coronel e os negros que lutam por sua liberdade plena.
Por tudo isso, Besouro é um filme que honra a beleza e a importância da Capoeira. Praticada nas mais diversas partes do mundo, criando oportunidade de trabalho para professores brasileiros em vários países, a Capoeira é associada de modo inelutável ao Brasil. Em reconhecimento de sua importância para a cultura brasileira, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tombou a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em 2008. Este filme contribui enormemente para a preservação desse patrimônio e da memória de Besouro, um herói a ser reverenciado.
notas
1
Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff. Rio de Janeiro, Globo Filmes/Mixer/Teleimage, 2009, 90 min, 35 mm, cor.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura na área de Teoria e Projeto (UFRJ), doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Cultural (UFPE, 2008). É arquiteta e urbanista da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.