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Besouro, filme dirigido por João Daniel Tikhomiroff, narra a história de Manoel Henrique Pereira, menino negro nascido após a abolição, e que vive em uma sociedade opressora, onde as manifestações religiosas e culturais negras são reprimidas.

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LORDELLO, Eliane. Besouro, o filme. Uma trajetória lendária. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 187.01, Vitruvius, jul. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/16.187/6593>.


Décadas depois da abolição da escravatura no Brasil, corriam os anos 1920 e os negros ainda eram subjugados, condenados a trabalhos forçados, humilhados. Para as mulheres, a situação era ainda pior, posto que seviciadas, molestadas e, muitas vezes, estupradas pelos brancos. Essa era a situação vivida no Brasil quando a história do filme Besouro (1), direção de João Daniel Tikhomiroff, se desenrola em Santo Amaro da Purificação, na região do Recôncavo Baiano.

A sociedade rural era então mandatária e dominante no lugar. A figura emblemática desse poder era o coronel, e sua mão pesada se fazia sentir em todas as esferas da vida da cidade. Nesse contexto, os negros eram a massa oprimida, e suas manifestações religiosas e culturais, reprimidas, inclusive a Capoeira, cuja prática era totalmente proibida.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

É nesse ambiente que vive Manoel Henrique Pereira, menino negro nascido a menos de dez anos após a abolição. Criado em meio às matas, local onde, segundo reza a narrativa tradicional, era ensinada originalmente a Capoeira. Longe dos olhos dos coronéis e de seus asseclas, é ali que o menino aprende a luta. Seu professor, e também guia espiritual e moral por toda a vida, é Mestre Alípio, protagonista da batalha contra os coronéis, e amado pelo povo negro e humilde.

Sendo uma tradição da Capoeira a de adotar um apelido, que passa a substituir o nome entre os companheiros da luta, o menino Henrique cedo escolhe o apodo de Besouro, tomado ao inseto que acompanhava o seu aprendizado nas matas. O apelido é em tudo condizente com o esforço do menino em aprender um golpe voador, que seria o seu grande distintivo e trunfo na luta contra os opressores de seu povo. Já na sua adolescência, Besouro é um virtuose da luta, e passa a ser o protetor de seu mestre, perseguido, naquele momento, pelos coronéis.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

Em um instante de deslize de atenção de Besouro, por estar em meio a uma roda de Capoeira, realizada às escondidas em um beco da cidade, Mestre Alípio é alvejado pelos tiros de capangas de um coronel. Avisado por amigos, Besouro ainda consegue impedir novos tiros, à força de golpes de Capoeira que desmobilizam totalmente os algozes de seu mestre.  Este, no entanto, já está à beira da morte, e, como último pedido, segue nos braços de Besouro para as ruínas de uma senzala abandonada.

Compungido pela culpa do fracasso em impedir a morte do mestre, Besouro segue para um autoexílio nas matas. Aí, em contato com a natureza e assistido espiritualmente pela alma de Mestre Alípio e de poderosos orixás, Besouro irá se fortalecer e tornar-se o grande herói de seu povo. Com ações que beiram o fantástico, temido pelo coronel e seus capangas, que não entendem como “o negro vira bananeira, vira vento, vira tudo”, o capoeirista torna-se herói lendário ainda em vida.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

Culpa, exílio, ajuda espiritual e fortalecimento pessoal são ingredientes clássicos das narrativas heróicas as mais diversas, desde as bíblicas, até as epopeias gregas, a exemplo da Ilíada e da Odisseia. O triângulo amoroso é outro desses ingredientes, e ele também se patenteia na saga do capoeirista. Formado por Besouro e seus companheiros de infância –  Dinorá e Quero-Quero  – o  triângulo amoroso será crucial no destino do herói.

A riqueza de ingredientes literários clássicos fortalece a narrativa cinematográfica de Besouro. Guiada por um texto corajoso, que dá espaço tanto ao naturalismo, no retrato histórico, quanto ao realismo fantástico, a narrativa é enobrecida pelo roteiro. Nele, o fantástico ganha espaço no repasse das lendas dos orixás, tão importantes na compreensão do filme.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

Um momento muito significativo da apropriação do fantástico no roteiro é representado pela entrada de Exu na feira da cidade, toda ela mantida por negros. A passagem de Exu por ali é pressentida apenas pela mãe-de-santo local. Inicialmente, Exu provoca um feirante que, minutos antes, quebrara uma oferenda feita ao orixá pela mãe-de-santo. Pouco depois, Exu passa a atormentar Besouro, dando início a uma das sequências mais sensacionais do filme, com direito a voos e vários ilusionismos. (Assim como na mitologia grega, onde os deuses padeciam de mazelas de amor e de outros sentimentos humanos, no Candomblé, e em outras religiões afro-brasileiras, os orixás também manifestam virtudes e vezos humanos.)

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

Sendo um filme que tem a luta e a superação como estofo da narrativa, e marcado por cenas como a descrita acima, Besouro merecia um apuro maior no ritmo. Isso evitaria aquela sensação de nó no tecido da narrativa, que pontua o miolo do filme.  No entanto, isso é plenamente compensado pelos outros tantos méritos do filme, além do já destacado roteiro. A boa atuação dos atores, o equilíbrio entre eles, a trilha sonora, a reconstituição arquitetônica, urbanística e paisagística de época são alguns desses outros méritos. A fotografia, no entanto, assoma como o maior deles.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

A abertura do filme, com uma câmera voando como um besouro sobre a feira da então pequena vila de Santo Amaro da Purificação, antecipa de modo precioso o virtuosismo da fotografia de Besouro. Excelência que é comprovada, ao longo do filme, pelos enquadramentos do capoeirista em seu exílio em meio a cascatas, lagoas e pedras. Mais ainda: pelos closes nos momentos mais pujantes das bravatas entre os capangas do coronel e os negros que lutam por sua liberdade plena.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

Por tudo isso, Besouro é um filme que honra a beleza e a importância da Capoeira. Praticada nas mais diversas partes do mundo, criando oportunidade de trabalho para professores brasileiros em vários países, a Capoeira é associada de modo inelutável ao Brasil. Em reconhecimento de sua importância para a cultura brasileira, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional tombou a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres de Capoeira como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, em 2008. Este filme contribui enormemente para a preservação desse patrimônio e da memória de Besouro, um herói a ser reverenciado.

Fotograma do filme Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff
Imagem divulgação

 

notas

1
Besouro, direção de João Daniel Tikhomiroff. Rio de Janeiro, Globo Filmes/Mixer/Teleimage, 2009, 90 min, 35 mm, cor.

sobre a autora

Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES, 1991), mestre em Arquitetura na área de Teoria e Projeto (UFRJ), doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada do Patrimônio Cultural (UFPE, 2008). É arquiteta e urbanista da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.

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