Je suis un homme pour qui le monde visible existe.
Edmond et Jules de Goncourt
1. Apresentação
No dizer de Silvio Romero, ele é quase um estrangeiro para nós. Filho de rico comerciante português, o carioca Luís Guimarães Júnior (1845-1898) é considerado o precursor do parnasianismo na literatura brasileira com seu livro Sonetos e rimas, de 1880. Custeado pelo autor, o livro foi publicado em Roma, porque, nesta época, ele morava na cidade uma vez que era diplomata e chegou a ministro plenipotenciário. Formou-se em Direito, no Recife, em 1869 e em 1872, com 27 anos apenas, começou sua peregrinação diplomática, a partir exatamente de Londres, passando depois pelo Chile, por Roma (onde serviu sob as ordens de Gonçalves de Magalhães, poeta introdutor do romantismo no Brasil), por Veneza. No final da vida, já aposentado, passou a residir em Lisboa, ficando sempre distante do Brasil.
Na segunda edição dos sonetos (de 1886, publicada em Portugal), Fialho d’Almeida registra que “em 1880, vamos encontrar Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior na embaixada brasileira em Roma. Roma era a última estação d’uma série de residências que o poeta realizara, junto de todos os centros de inteligência européia, através de cujas maravilhas pudera exercitar as suas faculdades d’artista vibrante e progressivo”. Ressalta ainda o culto da “perfeição plástica” e aduz que a poesia do autor, como arte da palavra, produz emoção que “vai ao cérebro antes pelo ouvido do que pelo coração”.
Em suas memórias, o jurista Rodrigo Octávio (1866-1944) – membro fundador da Academia Brasileira de Letras, a ABL, como, aliás, o próprio poeta – relata um grande banquete oferecido a Luís Guimarães no Hotel do Globo (rua Primeiro de Março, já demolido), em 1886, quando visitava o Rio. O banquete reuniu a “flor das nossas letras”; Machado de Assis presidiu a mesa principal e Joaquim Nabuco discursou e declamou um poema próprio. Rodrigo Octávio observa que, nesta época, o poeta “servia como Secretário de nossa Legação” em Lisboa e que seu livro tivera um “retumbante sucesso” (Minha memória dos outros, vol. 2, 1936). No entanto, hoje, autor e livro se acham quase que completamente esquecidos e, depois de longuíssimo hiato, a ABL reeditou os versos em publicação de 2010, tornada disponível no sítio da Academia.
Integrando aquele livro, o soneto de Londres está entre as produções poéticas mais importantes e significativas de Guimarães Júnior – tanto por aspectos formais (as aliterações ou a rima interna do 4º verso, por exemplo, acompanhada do paradoxo consoante do “verme enorme”) quanto no próprio conteúdo que resulta da visão de observador participante, para quem “o mundo visível existe” (ver epígrafe, extraída do texto de Fialho). Este é o ponto a destacar: o “calor emocional” da obra, como bem diz Wilson Martins. Conhecida pelo poeta desde 1873, Londres, que no final do século 18 tinha cerca um milhão de habitantes, em 1851 chega a 2,5 milhões de habitantes, superando a população de qualquer outra cidade do mundo antigo ou moderno. Caput mundi, a Roma imperial, com população de cerca de um milhão de habitantes no auge do seu esplendor (1), foi a maior cidade da Antiguidade.
Em Londres, a desordem e a miséria tornam-se protagonistas da cena urbana: é o espetáculo da pobreza, de que fala Maria Stella Martins Bresciani em livrinho publicado pela Brasiliense em 1982 e muito lido nas Universidades brasileiras (2). As desastrosas conseqüências sociais do crescimento acelerado provocado da Revolução Industrial geraram aquilo que o poeta escocês James Thomson chamou, num título famoso, “cidade da noite apavorante” (“city of dreadful night”). O título é mais conhecido que os versos, cuja epígrafe lembra a “città dolente” (3), inscrição que, num letreiro escuro, Dante põe no vestíbulo do Inferno (Canto III) e a partir de onde se deveria perder toda esperança. O longo poema sombrio – ou “gótico” – de Thomson, publicado num jornal em 1874, trata do horror da cidade vitoriana a partir de Londres, com sua massa de “andarilhos espectrais da noite ímpia”, “escuros, escuros, longe do brilho e da alegria” (“Oh dark, dark, dark, withdrawn from joy and light!”).
Há coincidências interessantes a destacar: os poemas de Thomson e de Guimarães Júnior foram publicados em livro no mesmo ano (1880), e cuidam do mesmo tema – se bem que o segundo com menor intensidade que o primeiro –, destacando o crescimento da miséria e dos miseráveis na cidade opulenta, onde a atividade econômica é febril. Daí a imagem comum da cidade noturna, que, na obra do brasileiro, em meio à “dúbia claridade” dos lampiões dorme sob uma “névoa estranha”, ouvindo o Tamisa, rio escuro, fantasmagórico, a bater contra o “cais solitário” (4). Emulando as pessoas, o rio “geme convulso e espuma” voltando depois a gemer. O notável soneto, em versos decassílabos (heróicos e sáficos, combinados), é todo construído no jogo das oposições entre “ouro” e “pão”, entre “fome” e “indústria”, entre “gigante” e “verme”, até chegar no fecho do verso final que exclama, indignado: “Oh milionária Londres indigente!”. Destaque-se a fusão de “melopeia” (a música) e “logopeia” (a ideia) do verso – como de resto de toda a composição –, nos termos propostos por Ezra Pound.
A exclamação é certo que poderia se dirigir a outras cidades inglesas como Manchester ou Liverpool, onde se verificava o mesmo horror derivado da recente industrialização em processo acelerado e incontido durante o longo reinado da Rainha Vitória (1837-1901). Um registro histórico dessa época, que deve ser citado, a respeito da condição urbana dos pobres é aquele feito pelo pastor Andrew Mearns no panfleto “O grito amargo dos deserdados de Londres” (“The Bitter Cry of Outcast London”), publicado em 1883. Diz Mearns: “Poucos que leem estas páginas imaginam o que são estes pestilentos viveiros humanos [“pestilential human rookeries”], onde dezenas de pessoas se amontoam em meio a horrores que lembram aquilo que ouvimos acerca da travessia do mar por um navio negreiro” (5). Na cidade vitoriana, a condição de vida dos pobres é tão terrível que se compara à dos escravos traficados pelo Atlântico.
Resulta, então, que o soneto é a mesma “cidade da noite apavorante” vista por um poeta brasileiro. E há nele a revelação artística das próprias contradições do capitalismo: a indústria poderosa, “ingente”, produz a Londres indigente, pobre, miserável, repleta de “vultos” que são os mesmos “spectral wanderers” de Thomson. A fome nela rasteja. Estes “vultos cautelosos” querem pão ou, no mistério da noite, procuram “os gozos”, numa referência à prostituição – inclusive infantil – que era um modo comum de sobrevivência da mulher e da sua família, como se lê em Charles Dickens. A imagem eloqüente (porque igualmente paradoxal) do “gigante suarento”, logo no verso inicial, explicita aquela contradição de modo ainda mais concentrado: uma potência que trabalha. A Inglaterra era então tida como a “oficina do mundo” (“workshop of the world”) e é dessa realidade – apreendida por Guimarães Júnior – que trata o poema, com sua musicalidade ondulante.
Cabe destacar ainda que, bem ao contrário dos outros parnasianos posteriores – sobretudo o trio famoso composto por Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia –, o vocabulário do poeta é simples e o seu sentido direto e concreto (não há meras sugestões ou apenas criação de atmosferas, como faziam os românticos), reforçando o impacto do soneto cuja força expressiva permanece íntegra até hoje. Isto se ele fosse lembrado: o poema de Thomson – cuja força foi logo vista – é fartamente citado (6) e muitas vezes reproduzido juntamente com as gravuras célebres feitas por Gustave Doré em 1872, enquanto o soneto de Guimarães Júnior – da mesma época, com o mesmo tema e elevada qualidade – não só não é citado como, pior, é quase desconhecido entre nós e precisaria ser resgatado.
O autor escreveu sonetos sobre Roma, Veneza, Paris e Olinda. Ainda que estes não tenham o mesmo impacto, mostram a face decadente de algumas dessas cidades, sobretudo as italianas. Neste caso, comparação fecunda será com o poema “A vista de Roma”, de Gonçalves de Magalhães – falecido em Roma no ano de 1882 –, e que fala da “vermelha terra, árida e seca/qu’inda exala mortíferos vapores“ e depois lamenta “este horror sepulcral, que em torno gira/da senhora do mundo” (1834). O de Veneza é particularmente interessante porque refere dois poetas românticos, Musset (1810-1857) e Lord Byron (1788-1824), que cantaram a cidade no passado e, dessa música (“serenata em tom plangente”), só restaria nela o canto das pombas gemedoras da praça de São Marcos, onde elas ainda abundam (nada obstante o ilícito de lhes dar comida). Alfred Musset, aliás, ficou gravemente doente após ter visitado a cidade com George Sand em 1834, para onde Byron se mudara antes, em 1816. Não era a mesma cidade cuja degradação avançada ele, Luís Guimarães Júnior, via com espanto já no final do século 19.
A propósito da decadência das cidades italianas durante o século 19, deve-se lembrar de notáveis novelas de Henry James (1843-1916, contemporâneo, pois, do poeta) – que visitava a Itália regularmente desde 1869 – tais como “Os papéis de Aspern”, publicada em 1888, que também se passa em Veneza e mostra a decadência da Rainha do Adriático e, além disso, a insalubridade dos sítios históricos de Veneza e Roma. Nesta cidade – que o poeta brasileiro chama de “fantasma” – é onde a personagem principal de “Daisy Miller” (1878) morre de malária (“Roman fever”, doença descrita desde a Antiguidade), depois de visitar o Coliseu à noite. Explica-se: é que o mosquito transmissor dessa doença infecciosa tem hábitos noturnos. Daí porque, nesta última novela, outro personagem americano comenta, a respeito de Roma: “You can’t see anything here at night, except when there’s a moon”.
Dos monumentos da cidade, a obra de Guimarães Júnior também contém um notável soneto sobre o Coliseu, “boqueirão do mundo”, abaixo reproduzido. Num texto de 1873, a respeito deste mesmo monumento, diz o Henry James (mais inglês do que americano): “Esse aspecto grosseiramente montanhoso da grande ruína constitui seu principal interesse; a beleza dos detalhes desfez-se consideravelmente, em especial desde que as altas flores silvestres foram arrancadas pelo novo governo, cujos funcionários, com certeza, em pontos de sua tarefa, devem ter-se sentido como se partilhassem a terrível atividade dos que colhem salicórnia” (Horas italianas, tradução de Júlio Castañon Guimarães). A salicórnia (“samphire”) é uma espécie de aspargo que nasce em locais úmidos e alagadiços. Mas o texto é interessante porque diz que no Coliseu havia até “altas flores silvestres” (“high-growing wild-flowers”), a demonstrar que ainda não se instaurara o pensamento patrimonial, preservacionista, na Itália, que só ocorrerá no século 20 – a partir da pioneira lei de 1909, sobre a inalienabilidade dos bens culturais pertencentes ao Estado (Lei nº 364, dita “Legge Rosadi”).
2. Poemas urbanos de Luís Guimarães Júnior (7)
Londres
Como um gigante suarento, dorme
Nos pardos mantos duma névoa estranha,
A Cidade opulenta em cuja entranha
Rasteja a fome como um verme enorme.
Dos lampiões à dúbia claridade,
Passam, repassam vultos cautelosos:
Este procura no mistério os gozos,
Procura aquele um pão, na realidade.
Contra o cais solitário o rio escuro
Geme convulso e espuma – e novamente
Volta a gemer, de encontro ao velho muro;
Retine o ouro: – vela a Indústria ingente,
Cresce a miséria e aumenta o vício impuro...
Oh milionária Londres indigente!
Veneza
Não és a mesma, oh flor de morbidezza (8),
Rainha do Adriático! Brilhante
Jordão de amor, onde Musset errante
Bebeu em ondas a lustral beleza.
Já não possuis, oh triunfal Veneza,
O teu sorriso – olímpico diamante,
Que se engastou do lord bardo amante (9),
Na fronte heróica de imortal grandeza.
Tua escura laguna já não sente
Da antiga serenata o tom plangente,
E os soluços de amor que nos teus barcos
Exalava a patrícia voluptuosa...
Resta-te apenas a canção saudosa
Das gemedoras pombas de São Marcos.
Roma
Nil patrium, nisi nomen, habet Romanus alumnus.
Propércio (10)
Eis o fantasma, excelso e venerando
Da cidade que a Terra viu pasmada,
Como a barca de Cristo ameaçada,
Ir nas ondas dos séculos boiando.
Aqui outrora a Liberdade armada
Das vitórias do Gólgota baixando,
O cetro imperial despedaçando,
Deu a Roma o buril, a pena e a espada.
Tudo findou. A colossal Senhora
Dos monarcas da Terra – dorme agora
Entre os seus capitéis (11) abandonados...
É mudo o Foro (12), – a Glória empalidece,
E a própria voz do bronze que estremece,
Chora os mortos heróis, – dobra a finados.
O coliseu
Enquanto à Noite, que a cismar ensina,
Caminhava na nuvem ondulosa,
– Sinistra, muda, torva, pavorosa –
Eu me perdi na Imperial Ruína.
Do firmamento o raio baço e escuro
Treme no pó do Circo mortuário;
O Anfiteatro (13) é negro e solitário,
Negro o canal e o condenado muro.
E eu, abaixando a fronte enevoada,
Desci ao antro, ao boqueirão do mundo
Onde a púrpura dos reis ficou rasgada.
E pareceu-me ouvir um ai profundo,
E ver rolar na treva apavorada
O fantasma do escravo moribundo.
notas
1
Há larga controvérsia histórica a respeito da população de Roma durante o Império. Este é um número aproximado, portanto.
2
BRESCIANI, Maria Stella Martins. Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza. São Paulo, Brasiliense, 1982.
3
“Cidade dolorosa”. Em sua tradução do Inferno (2004), Jorge Wanderley aponta os vários problemas de tradução deste verso inicial do Canto III (“Per me si va nella città dolente”) e as diversas soluções que os tradutores encontraram ao longo do tempo.
4
O autor deve estar se referindo aos embankmens (“barreiras de pedra”) feitos ao longo do Tamisa entre 1848 e 1865 para evitar as enchentes.
5
O texto integral do panfleto de Mearns, de 32 páginas, transcrito em parte por Peter Hall na obra antes citada, pode ser lido em <https://archive.org/stream/bittercryofoutca00pres#page/32/mode/2up>.
6
Ver, por todos, Peter Hall. Enfocando a cidade vitoriana, o capítulo 2 da conhecida história do planejamento urbano escrita por Peter Hall, Cities of tomorrow (4a edição, 2014), tem exatamente este título e começa com uma pequena análise do poema. Há tradução do livro de Hall, Cidades do amanhã, publicada pela Perspectiva em 1995.
7
Extraído, como os demais, de: GUIMARÃES JÚNIOR, Luís. Sonetos e rimas. Prefácio de Fialho D’Almeida. 4ª edição. Lisboa, Clássica, 1925. Foi também consultada a 2ª edição, de 1886, igualmente publicada em Lisboa. O texto foi confrontado com a edição imperfeita da ABL, de 2010, que está disponível em meio digital: <www.academia.org.br/publicacoes/sonetos-e-rimas>.
8
Palavra italiana que significa “suavidade”, “brandura”.
9
O “lord bardo amante” é o Lord Byron (v. apresentação).
10
A epígrafe do soneto foi tirada do Livro IV das Elegias, de Propércio, e, na tradução de Guilherme Gontijo Flores, diz: “Hoje um Romano tem dos pais somente o nome: (não pensa em loba que aleitou seu sangue)”. Na edição da ABL, a tradução, mais simples, é: “Os filhos de Roma nada têm, senão o nome dos pais”.
11
Capitel é a parte superior da coluna, onde descansa a arquitrave. Na edição da ABL está “capitais”.
12
Em Direito, hoje, há “foro” (território) e “fórum” (edifício onde trabalham os juízes), ambas as palavras derivadas do latim forum, que significa praça. O Fórum romano era mesmo uma praça retangular e não um edifício específico. Em nota ao seu poema, Gonçalves de Magalhães, observa que “depois da destruição do Foro Romano, pelo fero Rober Guiscard, em 1084, toda essa parte da antiga Roma, desde S. João Laterano até o Capitólio tão entulhada ficou, que a terra, pedras, e imundícies cobriram as ruínas, que ainda hoje se desencavam; aí apascentavam rebanhos de vacas e daí veio o nome de Campo Vaccino, com que ainda hoje é conhecido” (Suspiros poéticos, 1836).
13
Levantado no século I d.C. – e destinado a sangrentos espetáculos, execuções, imolações, combates de gladiadores etc. –, o Coliseu é de fato um anfiteatro (lt. amphitheatrum = teatro com assento no entorno do palco) com formato elíptico, que tinha capacidade para 50 mil pessoas (ou mais). Portanto, capacidade maior que a Arena Palmeiras ou Corinthians atuais.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de Direito Urbanístico da FCT/Unesp.