O filme é de grande riqueza construída em ritmo rebaixado. Tem muitas possibilidades de leituras e vou falar aqui apenas de um aspecto que me chamou atenção e que tem a ver com o fenômeno da “criatividade”, suas diferentes interpretações.
Falo de Paterson, filme de Jim Jarmusch que narra uma semana na vida de Paterson, motorista empregado em empresa de ônibus da pequena cidade de New Jersey, também chamada Paterson (1).
Ele é poeta, sem nenhuma intenção de viver de poesia, tornar-se famoso ou mesmo editar sua obra. Escreve em horas vagas, de manhã, construindo os versos enquanto vai da casa à garagem dos ônibus; escrevendo-os a mão nos minutos antes de começar a sua jornada de trabalho; eventualmente, no porão de sua modesta, mas digna casa, no meio de ferramentas e livros de poesia, entre os quais consegui ler os nomes de Rimbaud e de Dante.
Paterson é casado com Laura, que só trabalha de forma bissexta, fazendo cupcakes que vende em feira eventual. E que exerce sua imaginação e “vontade de arte” nas jornadas de dona de casa, em que pinta cortinas, tapetes, almofadas, quadros, a maior parte com padronagens brancas e pretas.
Ela sonha enriquecer com a venda de cupcakes ou como cantora, embora não cante ou toque qualquer instrumento. Pede ao marido um violão branco e preto, acompanhado de DVD e instruções. Graças a eles, Laura treina, preparando-se para uma suposta carreira de cantora que, sabemos, não vai se realizar.
Já Paterson, que parece encarar com absoluta aceitação seu trabalho de motorista com horários e rotinas a cumprir, ele sim, constrói uma obra, reportando-se sempre a William Carlos Williams, o poeta de New Jersey.
Em certo momento do filme, o casal de protagonistas vai ao cinema ver um filme de Bela Lugosi, cuja personagem, além de se chamar Laura, parece-se inquietantemente com a Laura personagem de Paterson. Quando estão chegando ao cinema, Laura comenta com o marido que “parece que estão levando uma vida do século 20”.
E, em parte estão. O motorista e sua rotina pertencem a um mundo do trabalho mecânico com salário fixo, horários idem, capaz de manter uma vida modesta e confortável. Sua poesia nasce da observação do cotidiano, minuciosamente examinado. Assim vemos nascer os primeiros versos do filme, dedicados a uma caixa de fósforos, cuja embalagem traz letras que simulam terceira dimensão e que se alinham em diagonais, como sons saindo de um alto falante. Essa caixa é o objeto sobre o qual escreve Paterson e é comentada por sua mulher, também atenta a esses detalhes compositivos.
Paterson, o motorista, é de fato o homem do século 20, do trabalho rotineiro e com horário, que, ainda assim, permite momentos de reflexão, escrita e leitura. Ele não tem celular nem computador, recusa-se, aliás, a tê-los, enquanto Laura, ficamos sabendo, tem notebook, ipad e smartphone. Os ganhos dela, dona de casa, se reduzem a menos de 300 dólares de um dia excepcional de vendas de cupcakes. Ela mal poderia pagar o violão que pede ao marido e que ele, embora preocupado com as despesas, lhe dá.
Laura é a criativa dos dias atuais. Aquela que quer transformar cada detalhe da vida cotidiana em arte, a começar pelas próprias roupas. Seus sonhos fugazes, infantis e mutantes dizem respeito a esta vida que aspira à artificação, conceito desenvolvido pela historiadora da arte Nathalie Heinich, que fala dessa forma de legitimação específica de atividades cotidianas.
Paterson, discreto, trabalhador uniformizado de azul marinho (cor que cada vez se vê menos nos uniformes empresariais), carregando marmita, tem nos versos que cria uma medida da sua capacidade de beleza que corresponde a uma espécie de desaceleração do tempo.
Como o ônibus que conduz, lento, fazendo grandes curvas numa cidade repleta de alusões a um passado industrial, presente nos tijolos vermelhos de vários edifícios, em que é possível pensar, escutar conversas, deparar com o acaso, numa espécie de olhar distraído, que vê gêmeos e duplos a todo momento.
Há uma ironia discreta no filme, deliciosa e sagaz, que diz respeito à atuação na vida cotidiana (na cena em que o ator desesperado com o abandono da amada, ameaça matar e morrer...com balas de borracha); uma crítica a essa presença mediática que ocupa toda nossa vida. Uma espécie de olhar de ontem sobre o hoje.
Mas também existe a crítica do hoje ao ontem. Como na conversa machista de dois passageiros de ônibus que se gabam das cantadas que receberam (mas que não levaram a nada) de duas mulheres, das “descontroladas” dos dias atuais. Os dois recebem olhar furioso de uma jovem passageira negra, pontuando que aquele diálogo tem hoje uma contrapartida, não é mais aceito como universal e natural.
Outra cena joga com os estereótipos de filmes de ação e violência norte-americanos. É quando o motorista, em sua volta diária noturna com o cachorro, é interpelado por quatro jovens negros de dentro de um carro conversível. Eles ouvem música alta e o alertam para o valor monetário do cachorro, que Paterson costuma deixar amarrado do lado de fora do bar que frequenta todas as noites. Imaginamos que o cão será roubado, que o alerta é quase uma ameaça...nada disso. É de expectativas e contra-expectativas que o filme se estabelece.
Assim, o personagem Paterson, de poucas palavras na vida, é o poeta de verdade, que preenche um caderno secreto. Enquanto sua esposa, a ‘criativa’ e amorosa Laura, é a que vive de ilusões de mobilidade social e de auto-realização, difundidas na web.
Mas o filme é muito, muito mais que isso. E o recurso de grafar os versos na tela, funciona como mais uma tática de desaceleração. Como se resistir à nossa época da instantaneidade fosse um dos pilares de uma boa vida possível. Os instantâneos que valem a pena não são os da web, mas sim os encontros fugazes como outros poetas que Paterson conhece em suas andanças pela cidade, uma menina e um estrangeiro.
(Desculpem amigos professores, cineastas (Humberto Kzure entre eles)... Não resisto a escrever sobre filmes de que gosto muito...).
nota
1
Paterson. Direção e roteiro de Jim Jarmusch. Estados Unidos, 2016, 118 min. Elenco: Adam Driver , Golshifteh Farahani, Rizwan Manji e outros.
sobre a autora
Ethel Leon é jornalista, pesquisadora e professora na área de história do design brasileiro.