Acaba de ser lançada a reedição fac-similar de Arquitetura moderna paulistana, do trio de arquitetos e pesquisadores Alberto Xavier, Carlos Lemos e Eduardo Corona, originalmente publicado em 1983 pela editora Pini. Durante décadas, o primeiro autor e idealizador da publicação ambicionou republicar o livro com correções e atualizações, como pode se verificar em volume de posse do autor, com anotações manuscritas em todas as páginas. Tal cuidado expressa ao menos duas preocupações de ordem distinta: a busca da precisão que deve gerenciar uma pesquisa séria e comprometida com a história da arquitetura; e a manutenção do caráter de guia ou roteiro de visitas turísticas, mesmo que esse caráter tenha se esvaziado ao longo do tempo, como veremos à frente.
As anotações de Xavier revelam diversas correções que intencionava fazer no texto – grafia de nomes, ortografia, autoria, data, endereço, estilo, argumento – e no projeto gráfico – corte de imagens, melhoria ou troca de fotografias, correção dos desenhos, inclusão de escala e ícone de Norte, espaçamento incorreto entre linhas, mudança de posicionamento de fichas etc. Também a mudança de uso, a descaracterização, a demolição e o abandono de algumas das obras deveriam ser avisadas ao leitor, como se pode deduzir na leitura das anotações. Como a reedição revisada foi adiada por tempo indeterminado, torna-se relevante revelar nessa resenha as anotações mais relevantes.
A alteração de uso – com prejuízos do projeto ou a simples descaracterização – estão presentes no Laboratório Paulista de Biologia, 1956, e Edifício Plavinil-Elclor (remoção dos elementos vazados da fachada), 1961, ambos de Rino Levi, Roberto Cerqueira Cesar e Luís Roberto Carvalho Franco; na Sede social do Clube Harmonia, 1964 (térreo alterado), de Fábio Penteado, Alfredo Paesani e Teru Tamaki; no Laboratórios Farmacêuticos Achê (ampliação), 1970, de Ruy Ohtake; na Fábrica Olivetti (transformada em shopping center), 1956, de Marco Zanuso; no Ginásio do Clube Atlético Paulistano, 1957, de Paulo Mendes da Rocha e João Eduardo De Gennaro; Hospital-Escola Júlio de Mesquita Filho (mudança de uso), 1973, de Fábio Penteado e Teru Tamaki.
Como obras demolidas aparecem os seguintes projetos: Residência Virgílio Frontini, 1939, de Bernard Rudofsky; Residência do arquiteto, 1944, de Rino Levi; Fábrica Duchen, 1950, de Oscar Niemeyer e Hélio Uchôa. Listadas como edificações abandonadas, temos a Garagem de Barcos do Santa Paula Iate Clube, 1961, de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi, e a Agência Albuquerque Lins do Banespa, 1975, de João Carlos Cauduro e Ludovico Martino. Como há algum tempo as anotações não são atualizadas, é provável que tal lista tenha se ampliado.
Mesmo diante dos motivos relevantes para uma segunda edição revisada e, eventualmente, ampliada, ao menos dois argumentos importantes foram considerados pelos editores e que acabaram levando à opção por uma cópia fiel da primeira edição. O primeiro é o tempo relativamente grande decorrido desde então, com as já mencionadas transformações sofridas pelas edificações catalogadas, que continuam a ocorrer até hoje. O segundo argumento é o avanço enorme nas pesquisas em arquitetura moderna no Brasil graças à constituição de cursos de mestrado e doutorado em várias regiões do país, com destaque para a cena paulista, Estado que concentra importantes programas de pós-graduação. O primeiro motivo implicaria em pesquisas complementares de vulto para conferência da situação atual de todas as obras, desafio complexo diante da idade avançada de dois dos autores (1) e dos altos custos envolvidos com pesquisadores, fotografias, atualização ortográfica, preparação e revisão de texto, projeto gráfico etc. O segundo nos coloca inevitavelmente diante da fortuna histórica, crítica e teórica desenvolvida desde então, com ampliação significativa de arquitetos e, principalmente, obras estudadas – todos eles, sem exceção, tributários direta ou indiretamente de Arquitetura moderna paulistana, podendo ser considerados desenvolvimentos orgânicos ou pesquisas complementares da publicação primitiva. Assim, por motivos diversos, mas com predominância do aspecto intelectual, parecia mais correto uma reedição do livro em suas características originais, propiciando às novas gerações o contato direto com uma publicação fundamental. O texto de apresentação de Alberto Xavier e o texto crítico de Luis Espallargas Gimenez visam explicar ao leitor as circunstâncias da republicação fac-similar, além da relevância e oportunidade de seu retorno às livrarias. E as fotos recentes de Nelson Kon na sequência de abertura retrata a transformação de algumas edificações presentes no guia em obras de referência da arquitetura moderna paulistana e brasileira.
Uma narrativa com ponto de vista
A breve história do livro aqui proposta está pautada pela visão particular de um dos autores, Alberto Xavier – o mais jovem do trio, por nós entrevistado –, que teve a ideia da publicação e convidou os dois parceiros mais experientes a participarem da aventura editorial. Assim, ganha especial relevância o sucesso do livro organizado por Xavier – Lúcio Costa: sobre arquitetura, de 1962 (2) –, e a vivência com Brasília ainda incipiente, sua universidade pioneira, fatores responsáveis por afirmar e ampliar seu interesse pelo trabalho de pesquisa e documentação, especialmente a centrada nessa etapa marcante de nossa arquitetura – sua fase dita moderna.
Evidenciando o reconhecimento público alcançado dentro de sua área de conhecimento, no final de 1973, Alberto Xavier foi convidado pelo professor Nestor Goulart Reis Filho, na ocasião diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, para lecionar nesta instituição. Em que pese as excelentes condições de trabalho na jovem UnB, a mudança para São Paulo o atraiu de pronto – era, segundo ele, encantador a possibilidade de vivenciar a dinâmica da metrópole, a relevância de sua arquitetura, a oportunidade de convívio acadêmico com arquitetos do mais elevado padrão profissional.
Seduzido por esse clima tão propício à pesquisa e à análise da arquitetura moderna brasileira – foco de seu maior interesse e palco real para dar continuidade ao trabalho desenvolvido junto à UnB – ocorreu a Alberto Xavier a ideia de editar um guia abrangente da arquitetura moderna em São Paulo, publicação até então inexistente, apesar das dimensões e importância da cidade, uma das maiores metrópoles do mundo.
Em sua participação no cotidiano da FAU USP – onde foi docente por sete anos, de 1974 a 1980 – pôde conviver e trocar experiências com importantes profissionais de variadas especializações, dentre eles Eduardo Corona e Carlos Lemos, professores do mesmo Departamento de História da Arquitetura onde estava alocado e com quem mantinha contato cotidiano. Corona e Lemos, seus futuros companheiros na edição de Arquitetura moderna paulistana, já trabalhavam em parceria nas duas décadas anteriores, quando compartilharam a autoria de projetos de edificações e publicações, sendo a mais importante até aquele momento o Dicionário da arquitetura brasileira (3).
Uma publicação singela, organizado pelos dois colegas de universidade, contribuiu enormemente para um primeiro esboço do guia. O Roteiro arquitetura contemporânea São Paulo, um livreto de tamanho 12 x 11,5 cm, capa dura em cor vermelha, com 62 obras do período moderno localizadas na capital paulistana, foi publicado em 1963 como separata da revista Acrópole número 295/296. O “livrinho vermelho”, como ficou conhecido, não continha plantas, croquis ou desenhos similares, e limitava-se a duas fotos no máximo – uma panorâmica, maior, registrando o edifício de corpo inteiro em sua face principal; outra, menor, do interior ou de um detalhe arquitetônico – e a textos breves e despretensiosos, que os autores definem no texto de abertura como “inteiramente espontâneos, como que um início de diálogo entre o objeto e o observador” (4).
Interlocução entre as compilações
O Roteiro de Corona e Lemos, ponto de partida de Arquitetura moderna paulistana, amplia o universo de obras e arquitetos paulistas relevantes anteriormente determinado pelas duas publicações canônicas acerca da arquitetura moderna brasileira: o catálogo Brazil Builds, fruto da exposição ocorrida no The Museum of Modern Art de Nova York, ocorrida em 1943 (5); e o livro Modern Architecture in Brazil, de Henrique Mindlin, publicado originalmente em inglês no ano de 1956 (6). Na mostra novaiorquinha está presente cerca de uma dezena de projetos modernos construídos em São Paulo, número que é quadruplicado na edição de Mindlin, chegando a pouco mais de sessenta edificações no roteiro da dupla. A iniciativa de Alberto Xavier vai conferir outra ordem de grandeza para a seleção de obras paulistas quando comparada às três publicações anteriores: 211 edificações ou conjuntos edificados. Contudo, tal ampliação tem como fator principal o passar do tempo, pois sua publicação bem posterior vai permitir conferir aos anos 1960 e 1970 a condição de décadas de ouro da arquitetura moderna paulista. O número de projetos selecionados por décadas parece confirmar a hipótese: 1920 (dois projetos); 1930 (quatro projetos); 1940 (quinze projetos); 1950 (trinta projetos); 1960 (68 projetos); 1970 (91 projetos).
Do total dos projetos publicados nestes livros, dez deles – se considerarmos o conjunto de edifícios e marquise do Parque do Ibirapuera como uma única ocorrência – aparecem em ao menos duas das três publicações precursoras. Além do mencionado complexo comemorativo do IV Centenário de São Paulo, assinado por Oscar Niemeyer, Zenon Lotufo, Hélio Uchoa, Eduardo Kneese de Mello, Gauss Estelita e Carlos Lemos, projetados e construídos no período de 1951-1955, temos as seguintes repetições: Edifício Esther, de Álvaro Vital Brazil e Ademar Saldanha Marinho (1937 ou 1938); Edifício de apartamentos na Alameda Barão de Limeira, de Gregori Warchavchik (1940); Edifício-sede do Instituto de Arquitetos do Brasil, de Abelardo de Souza, Galiano Ciampaglia, Hélio Duarte, Jacob Ruchti, Miguel Forte, Rino Levi, Roberto Cerqueira Cesar e Zenon Lotufo (1946 ou 1948); Piscina coberta, de Ícaro de Castro Mello (1948 ou 1952); Edifício Louveira, de Vilanova Artigas (1950); Edifício Prudência, de Rino Levi e Roberto Cerqueira Cesar (1950); Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi (1951 ou 1953); Escola Textil Senai, de Hélio Duarte e Ernest Mange (1954); Conjunto Nacional, de David Libeskind (1955). Com exceção do edifício de Warchavchik, os outros nove projetos repetidos nas publicações pioneiras estão presentes em Arquitetura moderna paulistana. Alberto Xavier afirma categoricamente a relevância das aproximações críticas anteriores: “Foi mais fácil começar pelo que já está sedimentado na memória e consagrado nas páginas de publicações afins” (7).
No que diz respeito aos arquitetos atuantes em São Paulo, nota-se que o grupo mais estreito presente em Goodwin vai se ampliando de forma crescente nas outras compilações, considerando que a maioria continua a figurar nos livros posteriores à sua primeira aparição. É possível detectar alguns grupos específicos em relação à origem pessoal e formação superior. De outros Estados do Brasil, os formados no Rio de Janeiro são Álvaro Vital Brazil, Ademar Saldanha Marinho e Irmãos Roberto (Goodwin); Oscar Niemeyer, Hélio Uchoa, Hélio Duarte, Eduardo Corona, Abelardo de Sousa e Sergio Bernardes (Mindlin); Roberto Tibau (Corona/Lemos); Adolpho Rubio Morales, Marcello Fragelli e Euclides de Oliveira (Xavier/Lemos/Corona). Somente neste último livro se verifica a presença ainda discreta de arquitetos formados em outros estados, caso de David Libeskind e Sidônio Porto, titulados na UFMG de Belo Horizonte. A presença de estrangeiros, com predomínio de italianos e alemães, é anotada por todos os autores: Rino Levi, brasileiro formado na Itália, Ramos de Azevedo, brasileiro formado na Bélgica, Gregori Warchavchik, Jacques Pilon e Bernard Rudofsky (Goodwin); Andrea Calabi e Lina Bo Bardi (Mindlin); Lucjan Korngold, Giancarlo Palanti, Giancarlo Gasperini, Franz Heep e Victor Reif (Corona/Lemos); Júlio de Abreu Júnior, brasileiro formado na França, Marco Zanuso, Peter Pfisterer e Charles Bosworth (Xavier/Lemos/Corona).
Dentre os formados em São Paulo, há uma esmagadora maioria egressa das duas mais tradicionais escolas de arquitetura do Estado: Mackenzie e USP. Dentre os arquitetos formados na escola particular de origem norte-americana destacam-se Henrique Mindlin (Goodwin); Oswaldo Arthur Bratke, Eduardo Kneese de Mello, Galiano Ciampaglia, Luiz Forte, Jacob Ruchti, Miguel Forte, Plínio Croce, Roberto Aflalo, Carlos Lemos e Arnaldo Furquim Paoliello (Mindlin); Salvador Candia, Pedro Paulo de Melo Saraiva, Paulo Mendes da Rocha, Jorge Wilheim, Carlos Barja Millan, Rodolpho Ortenblad Filho, João Eduardo De Gennaro, Luiz Roberto Carvalho Franco, Francisco Petracco, Joel Ramalho Jr. e Sydney de Oliveira (Corona/Lemos); Ubirajara Ribeiro, Fábio Penteado, Alfredo Paesani, Jorge Bonfim, Décio Tozzi, Telésforo Cristofani, Eduardo Longo, Roberto Loeb, José Magalhães Filho, Sérgio Pileggi, Júlio Neves, Luigi Villavecchia, Nadir Mezerani, Carlos Bratke, Roberto Mac Fadden, Eurico Prado Lopes e Luiz Telles (Xavier/Lemos/Corona).
Comparada ao Mackenzie, no início o número de egressos da USP é menor – Francisco Matarazzo Netto (Goodwin), Vilanova Artigas, Roberto Cerqueira Cesar, Zenon Lotufo, Ícaro de Castro Mello e Ernest Mange (Mindlin); Joaquim Guedes, Carlos Cascaldi, Jon Maitrejean, Lucio Grinover (Corona/Lemos) – para depois surgir em cena com uma verdadeira tropa de choque no livro de Xavier, Lemos e Corona: Hélio Pasta, Roger Zmekohl, Sérgio Ferro, Rodrigo Lefèvre, Jerônimo Bonilha Esteves, Israel Sancovski, Teru Tamaki, Paulo de Mello Bastos, Leo Bomfim Jr., Cândido Malta Campos Filho, Siegbert Zanettini, Eduardo de Almeida, Ubyrajara Gilioli, Ruy Ohtake, João Walter Toscano, Arnaldo Martino, Paulo Bruna, Abrahão Sanovicz, Sylvio Sawaya, Marcos de Azevedo Acayaba, Francisco Segnini Jr., Henrique Cambiaghi Filho, David Ottoni e Dácio Ottoni, João Carlos Cauduro, Ludovico Martino, José Eduardo de Assis Lefévre, Julio Katinsky e outros.
As quatro publicações em questão – Brazil Builds, Modern Architecture in Brazil, Roteiro arquitetura contemporânea São Paulo e Arquitetura moderna paulistana –, vinculadas à exposições ou à demanda editorial de revistas e livros, conformam o campo hegemônico por onde trafegará a pesquisa acadêmica que se consolida nos anos 1980, situação que perdura até hoje. No mais importante recorte de obras modernas paulistas realizado naquele período – Residências em São Paulo: 1947-1975, de Marlene Milan Acayaba (8), fruto de mestrado defendido na FAU USP em 1983, tornado livro em 1987 – dentre os arquitetos responsáveis pelas 43 obras selecionadas apenas Daniele Calabi, Flávio Império, José Fleury de Oliveira e Edgar Dente não constam dos inventários anteriores. E em recente publicação organizada por Ruth Verde Zein, contendo seleta de textos apresentados em Seminário do Docomomo Núcleo São Paulo, os vários autores tratam de obras dos arquitetos Rino Levi, Gregori Warchavchik, Oscar Niemeyer, Oswaldo Bratke, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi, Paulo Mendes da Rocha, Roberto Tibau, Marco Zanuso e Daniele Calabi. De novidade apenas a presença de Georgia Louise Harris Brown, arquiteta norte-americana que atuou em São Paulo nos anos 1950 (9).
Alguns problemas podem ser verificados nas quatro edições históricas, que têm sido enfrentados pelos pesquisadores acadêmicos que deles desfrutaram. Temos frequente variação das datas dos projetos, fruto da imprecisão das fontes primárias e secundárias, ou do critério estabelecido, que pode privilegiar a data do projeto, do término da construção ou de sua inauguração. Também se verifica discrepâncias na grafia de nomes e sobrenomes, uma liberalidade que reflete predileções do próprio arquiteto, falta de revisão técnica ou decisões editoriais – caso do abrasileiramento de nomes estrangeiros ou da atualização ortográfica após o falecimento dos personagens. O Edifício Esther, de Álvaro Vital Brazil e Ademar Saldanha Marinho, o único projeto presente nas quatro publicações, exemplifica os dois problemas apontados: temos ao menos três datas para o projeto (1935, 1937 ou 1938) e se observa a variação Adhemar no nome do segundo autor.
Outro problema é a transformação ao longo do tempo dos nomes dos próprios projetos, graças à mudança de uso ou adoção de termos mais populares – as atuais Oca, de Oscar Niemeyer, e Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, eram originalmente designadas como Palácio das Artes e Residência P.M. Bardi. Outra variação aponta para omissão ou correção de autoria, casos do Edifício Louveira, apresentado por Mindlin e pela dupla Corona/Lemos como projeto de Vilanova Artigas, omitindo-se o nome de Carlos Cascaldi, e do Edifício Paulicéia, atribuído no livrinho vermelho a Jacques Pilon e Giacarlo Gasperini, quando na publicação original na revista Acrópole aparece apenas o nome do arquiteto francês (10). Contudo, na revista é referido o Edifício São Carlos do Pinhal, segundo prédio do conjunto, fato omitido por Eduardo Corona e Carlos Lemos.
Tais equívocos, imprecisões, omissões e transformações nas datas, nomes de projetos e grafia do nome de arquitetos implicam em evidentes e severos problemas para a avaliação crítica, em especial na relação de interlocução e influência que pode ser estabelecida entre projetos, afinal a datação errada implica em séries temporais adulteradas. No seu conjunto, tais problemas acabam por se constituir em dificuldades extras aos pesquisadores posteriores, fadados a recorrer em equívocos ou a gastar tempo e energia na busca de maior precisão factual.
Envolvimento da Editora Pini
Retomando a aventura da edição, assim que Alberto Xavier estabeleceu o escopo geral da obra, iniciou contatos com algumas editoras, mas esbarrou em obstáculos de difícil transposição: a falta de recursos, a demora inevitável em entregar originais de uma publicação de tal envergadura e a longa espera pelo retorno do capital investido. A solução alternativa foi procurar a editora Pini, responsável pela revista semanal A Construção São Paulo, voltada para a área de engenharia, alternando cotação de materiais e mão-de-obra. Apesar de ser uma editora com perfil inadequado para abrigar um trabalho como o que se cogitava, Xavier contatou Mário Sérgio Pini – na ocasião jovem arquiteto e assumindo responsabilidades dentro da empresa do pai –, que se mostrou vivamente interessado pelo projeto.
Como solução para suplantar os três obstáculos principais – a permanente falta de recursos para edições dessa natureza, prazo muito dilatado de produção e o retorno improvável do investimento – foi sugerida pelo executivo a publicação das obras sob a forma de fascículos semanais para uma posterior publicação no formato livro. A estratégia já havia sido testada com êxito quando da edição do Dicionário da arquitetura brasileira, autoria dos arquitetos Carlos Lemos e Eduardo Corona, publicada na revista Acrópole entre os anos de 1957 e 1962 (11), transformado em volume único em 1972.
Esta solução simples e prática viabilizou o projeto. Do ponto de vista estratégico, Alberto Xavier tinha a ideia geral do projeto editorial, mas o material estava longe de estar pronto para publicação; disporia então de tempo adequado para produzir os desenhos, realizar entrevistas, estruturar um arquivo de fotos, realizar visitas in loco, além de consultar número considerável de jornais e revistas. Do ponto de vista econômico, os custos de produção seriam diluídos ao longo de um prazo máximo de cinco anos previstos para a duração dos fascículos (quatro obras em cada uma das edições mensais).
Confirmada a ideia da publicação, as dimensões ambiciosas do projeto levou Alberto Xavier a convidar Carlos Lemos e Eduardo Corona a participarem do trabalho, não só pela grande experiência dos colegas, bem como pelo convívio cotidiano que mantinha com a dupla no Departamento de História da FAU USP. Durante a elaboração do projeto editorial, os agora três autores se obrigaram a conceituar os critérios de seleção das obras e o período histórico onde foram construídas. Segundo uma matéria publicada na revista A Construção São Paulo que encarta o último fascículo do guia, eles “ressaltam que as obras publicadas respondem basicamente a três perguntas: o que de mais importante se produziu nesse período nas diferentes faixas de solicitação de trabalho? De que maneira a manifestação arquitetônica se fez presente nos diferentes programas? E como o poder público se manifestou através de formulação de programas e de certos valores arquitetônicos (às vezes absorvidos, às vezes contornados pelos arquitetos?)” (12).
Para responder às perguntas, foi adotado um corte temporal que se inicia no final dos anos 1920 – datação que confere a São Paulo o berço das primeiras manifestações modernas na área de arquitetura, alinhadas às vanguardas nas áreas da literatura, pintura e escultura dos protagonistas da Semana de Arte de 1922 – e termina em 1977, data do início da pesquisa. Segundo os autores, “seriam 50 anos de arquitetura paulistana caracterizada pelo sentido de modernidade expresso em todos os condicionantes do partido arquitetônico” (13). Os critérios de seleção das obras privilegia edificações que expressam o crescimento vertiginoso da metrópole São Paulo, o uso intensivo de novas técnicas construtivas e materiais de construção, o arranjo formal identificado com os encaminhamentos da arquitetura moderna em geral, a contribuição específica do universo paulistano no concerto geral da produção brasileira. Contrariando a prática presente nos guias estrangeiros de arquitetura, Arquitetura moderna paulistana inclui habitações individuais, com dificuldades óbvias de visitação. Dando sustentação teórica à opção, Alberto Xavier lembras das dificuldades de acesso em clubes sociais particulares e afirma que “na arquitetura paulistana, habitações individuais constituem exemplares significativos no que diz respeito à germinação e desdobramento de certas teses de organização de espaços e de propostas estruturais” (14).
O projeto gráfico, autoria dos arquitetos Paulo Rodella e Reinaldo Pazzanese, partia de uma premissa fundamental: atender às exigências da publicidade, sem prejuízo da parte ilustrativa das obras. Desse modo, baseados nas dimensões da revista, definiram dois campos: o superior, um quadrado destinado às obras, e o rodapé, à publicidade. Com tal estratégia gráfica, seria possível posteriormente publicar o livro – como de fato ocorreu – apenas com o conteúdo, descartando a publicidade, que era específica da revista. O livro é inteiramente impresso em preto e branco. Tal característica pode parecer estranha nos dias atuais, porquanto há décadas a cor é um recurso disponível e hoje, indispensável. Mas a solução adotada é resultado de um princípio básico – a unidade das ilustrações. Grande parte delas é devida a José Moscardi, fotógrafo que construiu, por mais de trinta anos, um acervo importantíssimo e que, graças ao zelo de seus herdeiros, pôde comparecer neste livro.
Quando finalmente apareceu o primeiro fascículo na edição de 13 de novembro de 1978 de A Construção São Paulo, o título “Roteiro da arquitetura contemporânea em São Paulo” explicitava sua referência principal, o livrinho vermelho de Eduardo Corona e Carlos Lemos. A série foi publicada com regularidade até o fascículo 13, de 10 de março de 1980, quando foi interrompida, para ser retomada mais de um ano depois, em 25 de maio de 1981, no número 1737 da revista, que encartou o volume 14, com quatro obras de 1960: a Galeria R. Monteiro, de Rino Levi, Roberto Cerqueira César, Luiz Roberto Carvalho Franco, o Conjunto Metropolitano, de Salvador Candia e Giancarlo Gasperini, e as residências Roberto Millan e Nadir de Oliveira, ambas de Carlos Millan. Após o susto da interrupção, a série foi publicada ininterruptamente até o fascículo derradeiro de 24 de outubro de 1983, quando o número 1863 da revista apresentou o Centro Esportivo do Sesc Pompeia, de Lina Bo Bardi, o Centro de Informática da Cetesb, de Roberto Loeb, a Estação da Telesp em Perdizes, de Sérgio Teperman e Paulo Jaraguá, e o Edifício DCE da Eletropaulo, de Helio Pasta, Walter Makhohl, Julio Roberto Katinsky, Hélio Penteado e Ruy Ohtake, todos de 1977 (15).
Os longos anos da publicação seriada foi compensada com a imediata publicação do livro, lançado durante a X Conferência Latino-americana de Escolas e Faculdades de Arquitetura – Clefa, ocorrida na USP, São Paulo, em outubro de 1983. A mudança do título prepara a coleção “Arquitetura moderna”, série de livros que serão publicados nos anos seguintes, abordando as cidades de São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e Rio de Janeiro (16). O nome novo – Arquitetura moderna paulistana – minimiza, por parte de autores e editor, o caráter de guia ou roteiro, ampliando sua importância de compêndio de documentos críticos e históricos relativos à produção contemporânea em São Paulo, como pode se deduzir da declaração de Carlos Lemos apontando, de forma premonitória, seu valor e utilidade para pesquisadores futuros: “como roteiro poderá perder sua atualidade, mas como reunião dos exemplares de uma arquitetura moderna, produzida aqui, ganhará cada vez mais importância, porque se afasta do tempo” (17).
Outra curiosidade do título, pouco ou nada comentada, é a presença do adjetivo “paulistano”, que designa o que é relativo ou pertencente à cidade de São Paulo. Contudo, o compêndio traz obras em outras cidades paulistas: São Bernardo do Campo, com dez obras, o Paço Municipal (Jorge Bonfim, Marcos Zuccon, Roberto Monteiro e Teru Kanazawa), o Corpo de Bombeiros e Batalhão Policial (Paulo de Mello Bastos e Leo Bomfim Jr.) e mais oito escolas assinadas por Paulo Mendes da Rocha, Décio Tozzi, Paulo Bastos e outros arquitetos; Guarulhos, com seis edifícios ou conjuntos, exemplificados pela Fábrica Olivetti (Marco Zanuso), Escola Estadual (Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi), Conjunto Residencial Zezinho Magalhães Prado (Vilanova Artigas, Fábio Penteado e Paulo Mendes da Rocha) e Laboratórios Farmacêuticos Achê (Ruy Ohtake); Santo André, com cinco obras compostas por três unidades escolares, o Paço Municipal assinado por Rino Levi, Roberto Cerqueira Cesar e Luís Roberto Carvalho Franco e uma passarela para pedestres, curiosa presença de autoria de Vilanova Artigas; por fim, com uma obra cada, temos as cidades de Jandira (Indústria de Equipamentos Hércules, de Siegbert Zanettini), Taboão da Serra (Edifício-Sede da Prodesp, de Setsuo Kamada e Pedro Paulo de Melo Saraiva) e Barueri (Núcleo Tamboré do Parque Ecológico do Tietê, de Ruy Ohtake e Roberto Burle Marx). A forte presença – em número e qualidade – de equipamentos e edifícios públicos, além de unidades fabris nas cidades conurbadas à capital, denota a opção dos autores por uma visão ampliada de São Paulo, entendendo “paulista” como relativo à produção da região metropolitana. De qualquer modo, o estranhamento fica patente quando se verifica que todas essas cidades estão grafadas com vermelho no volume de Alberto Xavier.
De imediato, ficou patente a importância de Arquitetura moderna paulistana para arquitetos, profissionais ligados à área da construção civil, professores e alunos de arquitetura. A edição de três mil exemplares se esgotou em curto prazo, estando sua venda há longos anos restrita a alguns sebos físicos ou virtuais. No mesmo ano de seu lançamento, em 1983, o livro venceu a categoria “Trabalhos Escritos” na Premiação Anual do IAB/SP. Seu lançamento foi noticiado na grande imprensa (18), na imprensa especializada internacional (19) e mereceu uma resenha na revista IstoÉ Senhor assinada por Pietro Maria Bardi, que comenta os quatro livros da série, destacando seu recorte conceitual: “a escolha das construções obedeceu a um critério ponderado, tendo como finalidade a delimitação das características racionalistas – obras que traziam outros estilos foram evitadas” (20). Tal recepção calorosa se deve a seu pioneirismo, seu valor documental, seu amplo arco de interesses, especialmente junto às faculdades. Durante anos, professores reproduziram as obras do livro em transparências e slides que projetavam em suas aulas, o que significa que gerações de arquitetos tiveram como principal referência da boa arquitetura paulista as edificações compiladas por Alberto Xavier, Carlos Lemos e Eduardo Corona. E, mesmo secundária, é significativa sua função de roteiro e guia para um turismo cultural praticado por amantes da arquitetura. Por fim, quando se coloca em questão o livro Arquitetura moderna paulistana, é hoje flagrante sua relevância na genealogia da historiografia da arquitetura moderna brasileira e sua importância vital como fonte para pesquisas acadêmicas nas décadas seguintes à sua publicação.
notas
1
Alberto Fernando Melchiades Xavier (Alegrete RS, 1936), graduado em 1961 pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS em Porto Alegre, está atualmente com 71 anos. Carlos Alberto Cerqueira Lemos (São Paulo SP, 2 jun. 1925), formado arquiteto na Universidade Mackenzie em São Paulo, está atualmente com 92 anos. Eduardo Corona (Porto Alegre, 22 ago. 1921 – São Paulo, 25 abr. 2001) formou-se em 1946 na Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, e faleceu um pouco antes de completar 80 anos.
2
COSTA, Lúcio. Sôbre arquitetura. Organização de Alberto Xavier. Porto Alegre, Centro dos Estudantes de Arquitetura FA UFRGS, 1962. Reedição: COSTA, Lúcio. Sôbre arquitetura. Organização de Alberto Xavier e Anna Paula Canez. Porto Alegre, UniRitter, 2007.
3
CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos. Dicionário da arquitetura brasileira. São Paulo, Edart, 1972. Reedição: CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos. Dicionário da arquitetura brasileira. Coleção Facsimile, n. 3. São Paulo, Romano Guerra, 2017.
4
CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos. Roteiro arquitetura contemporânea São Paulo. São Paulo, Acrópole, 1963, s/p.
5
GOODWIN, Philip. Brazil Builds: architecture new and old 1652-1942. Fotografias de G. E. Kidder Smith. Nova York, MoMA, 1943.
6
MINDLIN, Henrique. Modern Architecture in Brazil. Rio de Janeiro, Colibris, 1956.
7
Uma obra que reúne 50 anos da arquitetura paulistana (op. cit.), p. 10.
8
ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo: 1947-1975. Orientador Julio Roberto Katinsky. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1983; ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo: 1947-1975. São Paulo, Projeto Editores, 1987; ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo 1947-1975. RG facsimile, volume 1. São Paulo, Romano Guerra, 2011.
9
ZEIN, Ruth Verde. Caleidoscópio concreto. Fragmentos de arquitetura moderna em São Paulo. Coleção RG Bolso n. 11. São Paulo, Romano Guerra, 2017.
10
Conjunto residencial à Avenida Paulista. Acrópole, ano 21, n. 246, São Paulo, abr. 1959, p. 205-207 <www.acropole.fau.usp.br/edicao/246>.
11
O Dicionário de arquitetura brasileira foi publicado em fascículos pela revista Acrópole do número 222, de abril de 1957, até o número 280, de março de 1962.
12
Uma obra que reúne 50 anos da arquitetura paulistana. A Construção São Paulo, n. 1863, São Paulo, 24 out. 1983, p. 10.
13
XAVIER, Alberto; LEMOS, Carlos; CORONA, Eduardo. Arquitetura moderna paulistana. São Paulo, Pini, 1983, p. VII.
14
Uma obra que reúne 50 anos da arquitetura paulistana (op. cit.), p. 10.
15
Cf. Uma obra que reúne 50 anos da arquitetura paulistana (op. cit.), p. 10.
16
XAVIER Alberto; LEMOS, Carlos; CORONA, Eduardo. Arquitetura moderna paulistana. São Paulo, Pini, 1983; XAVIER Alberto. Arquitetura moderna em Curitiba. São Paulo, Pini, 1985; XAVIER Alberto; MIZOGUCHI, Ivan. Arquitetura moderna em Porto Alegre. São Paulo, Pini, 1987; XAVIER Alberto; BRITTO, Alfredo; NOBRE, Ana Luiza. Arquitetura moderna no Rio de Janeiro. Pini/Fundação Vilanova Artigas, 1991.
17
Uma obra que reúne 50 anos da arquitetura paulistana (op. cit.), p. 10.
18
Roteiro do belo, pela cidade. Isto É, 16 nov. 1983, São Paulo.
19
Arquitetura moderna paulistana. Seção “Bibliográficas”. Summa, n. 230, Buenos Aires, out. 1986, p. 22.
20
BARDI, Pietro Maria. A idade da razão. Uma série faz a radiografia da arquitetura brasileira deste século nas grandes capitais. IstoÉ Senhor, n. 1168, São Paulo, 19 fev. 1992, p. 65.
sobre o autor
Abilio Guerra é arquiteto, professor da graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.