Vídeo criado pelo Grupo em Crise (1) para espelhar holofotes policiais de vigilância e controle através de hiper-identificação com forças opressoras. Fraturadas por processos coloniais seculares, a juventude periférica dos centros urbanos assiste sua própria destruição sendo arquitetada meticulosamente e aplicada através de medidas disciplinares concreto-simbólicas que projetam comportamentos clandestinos a corpos que ainda não exploraram suas próprias tecnológicas de ação. A mídia e a representação do jovem periférico nos veículos de comunicação é parte da operação de condenação da potência natimorta encomendada pelo necropoder do novo governo neoliberal que atua pela repetição da imagem do perigo, do sem jeito, daquele que não possui outra opção além de morrer ou matar. Esta fórmula é feita através de uma razão nefasta entre etnia, origem, raça, classe social, bairro, gênero, beleza, idade e potência rebelde de ação. A hiper-identificação é a atuação da fórmula do opressor recodificada capaz de devolver em vômito aquecido aos olhares da vigilância das classes sociais o seu modus operandis de humilhação, escravização, aparelhamento e perpetuação das desigualdades em oposição a liberação dos povos que se encontram na base da pirâmide de ciclos parodísticos de abuso e violência.
Grupo em Crise e a Brasilândia
O grupo foi composto durante os anos de 2014 e 2015 por jovens moradores do bairro Brasilândia, no subdistrito da Freguesia do Ó, Zona Norte de São Paulo, bairro que desfila anualmente entre os maiores índices de extermínio das juventude negra e periférica da cidade. Também é um bairro que possui inúmeras organizações independentes e trabalhadores dedicados às políticas públicas de apoio e que fomentam a resistência e o desenvolvimento de tecnologias para a liberação dos povos de ciclos de violência. O grupo habitou a Casa de Cultura da Brasilândia, único aparelho público exclusivamente voltado a cultura na região e que encontra-se atualmente desamparado e afetado pelo desmonte dos programas de fomento à cultura e democratização da arte. Teve cerca de vinte participantes e desenvolveu diversas intervenções urbanas, como O jardim das feras (2), O que resta do fim (3), (Deso) Obedientes (4) e Afeganistamos (5), que resultou no filme aqui descrito.
Projeto Fliperama
O grupo fez parte do Projeto Fliperama (6) da ONG ECOS e patrocinado pela Petrobras e realizou seu segundo módulo voltado a intervenções urbanas na região da Brasilândia, São Paulo. Formado por um grupo de jovens coordenado por educadores multimídia, o Fliperama se propôs a contribuir com melhorias na região a partir de trabalhos artísticos realizados por jovens moradores. O projeto contou com setenta bolsistas do projeto que frequentaram encontros duas vezes por semana vivenciando linguagens artísticas como teatro, música, desenho, texto, fotografia, vídeo e inventando juntos intervenções no espaço urbano, surgidas como resultado do processo de reconhecimento de desejos, interesses e necessidades de ocupação e apropriação do território em que habitavam. O projeto foi composto em sua última fase pela equipe: Tommy Pietra, coordenador, educador e editor web; Thais Di Marco, educadora; Marcela Varconte, educadora e coordenadora de articulação em rede; Sylvia Cavasin, coordenadora; Osmar Leite, administrador; Avelino Regicida, produtor; Heloísa Helena, produtora; e diversos colaboradores, como Elaine Bortolanza, Clerouac, Cesar Augusto e Irmãos Guerra.
ECOS – Comunicação em Sexualidade
A ONG Foi fundada em 1990, com o objetivo de defender os Direitos Humanos e os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, em especial das populações mais vulneráveis, das mulheres e das juventudes. A organização produz e utiliza conhecimentos dos mais variados campos do saber e atua nas áreas de educação, saúde, comunicação e desenvolvimento social e comunitário sempre na perspectiva da expansão da “cultura de direitos”, do pleno exercício da cidadania, da igualdade de gênero e do respeito às diversidades e o desenvolvimento livre e saudável da pessoa humana.
“Intervenção pra mim é como se fosse um ato, uma festa, uma manifestação, uma atividade, um evento, um ritual, uma declaração, uma confissão, movimento, uma interferência... Intervenção pra mim é um ato fora do padrão, é uma coisa diferente desde tudo o que haja no controle. Dentro de tudo, como intervenção: urbana, artística, teatral, divina, coletiva etc.” [Stephany Mendes]
“Em meu trajeto de criação de personagem, notei que até mesmo um tédio da vida, um surto de loucura ou um pequeno erro de ‘esquerdo’ ou ‘direito’ é um motivo, mesmo que pequeno, sem sentido e nem muita lógica é aquilo que a pessoa segue, é aquilo que transformou a pessoa naquilo que é seus objetivos”. [Tuany]
“Eu achei muito interessante, porque agente tenta passar algo sem falar oque significa pras pessoas, tipo a gente tenta falar o que as pessoas ver no dia a dia e não para pra refleti, e também são muito poucas pessoas que sabe o que e intervenção urbana , ai já aproveita e conhece... São poucas pessoas que tem coragem de ir na rua e mostrar para outras pessoas oque esta acontecendo com o nosso mundo! Ai eu participei de outra intervenção mas só que nela a gente do grupo em crise, fez uma peça de teatro do Plinio Marcos. E nessa peça eu ia fazer um papel sobre uma cafetina, no começo eu não gostei porque um papel de uma cafetina é muito ousado e tem muita sexualidade, eu pensava que era assim mais não e assim”. [Gabriela Souza]
Sobre o desmonte dos projetos sociais de arte
Em frente a radicalização do capitalismo através da instauração do governo neoliberal do capital mundializado, o Terceiro Mundo é forçado a exportar seus self-made man ao mercado internacional através de atividades informais e criminais que assolam o cotidiano do habitante terceiro-mundista e que não merecem garantias de direitos civis ou trabalhistas. Afinal, qual a importância mesmo de uma vida radicalmente capitalista, atrelada ao ramo empresarial mas que realiza apenas os serviços desveladamente letais, embora não menos importantes? Falamos aqui do bandido, do marginal, do delinquente que ao contrário do que se podia esperar em utópicos discursos da velha esquerda, é menos uma forma de resistência e mais um acesso ao capital internacional e a rede de necropoder transnacional que inclui todo o tipo de empresários. Uma grande oportunidade que tem como preço a dessacralização e a comercialização da morte, o que antes era um serviço do estado nação, mas que passa, desde o suposto fim das ideologias, a ser substituído pelo Mercado Nação Globalizado contando com o hiperdesenvolvimento de tecnologias de vigilância e controle de fronteiras.
O crime mais ou menos organizado passa a ser assim matéria de dissenso entre os habitantes das cidades, um dissenso que acirra todos os tipos de necro algoritmos que compõe as sociedades latino-americanas, africanas e asiáticas, distorcidamente espelhadas nos parâmetros Estados Unidenses de exportação de identidades. No Brasil, por exemplo, a esquerda intelectual passa a se desentender com a periferia que continua sendo chamada de “direita” enquanto clama pela não romantização da atividade criminal plantada no seio das famílias como promessa auto empresarial de libertação, um duplo, um avesso obscuro do filho de rico que ainda assim quer fazer sua própria fortuna por orgulho, enquanto os artistas de classe média baixa e educadores continuam abrindo suas MEIs e os intelectuais continuam gastando suas heranças, todos mais ou menos tendo celulares mensalmente furtados, seus corpos sequestrados, eventualmente um parente ou amigos assassinado e que assim vão cedendo paulatinamente a indústria da segurança privada. Deixando ainda de fora desta análise propositadamente a elite neoliberal de classe média alta que aplaude comendo pipocas os pipocos na televisão. É o eclipse que se abate sobre as políticas públicas de cunho social, alavancando a derrocada dos chamados esquerdopatas e seus projetos, assim como a de seus corruptos de estimação.
A privatização da violência que é apenas um departamento do novo governo neoliberal nos territórios do terceiro mundo, transforma a democracia em uma administração de mortes através de representações de percentagens identitárias mais ou menos historicizadas dependendo do que convém. Fica assim muito fácil criticar a arte propagandística da televisão que nunca foi mais do que isso mesmo, mas mais difícil atacar o próprio cerne mortal da política de representações em massa que justifica, ou nubla, a administração das mortes sacrificais no território de exploração do novo capitalismo. “Não há mais espaço para heróis, apenas para publicitários.” A mão branca heterossexual masculina hipernormativa e radicalmente capitalista se invisibiliza e disfarça atrás da política de propaganda algorítmica de representações seja através de infinitas discussões sobre representatividade em comerciais da televisão quanto na re-encenação chatíssima de velhos ícones revolucionários de esquerda nas peças de teatro underground. Este era o panorama que fundamentava a nossa discussão no momento em que decidimos trafegar pela fronteira pantanosa da representatividade, arte, política e propaganda.
A propaganda é a principal causa de mortes no mundo
Afeganistamos, dois anos antes da dissolução do debate político e pensamento crítico nas veias controladas do facebook, quando muito recentemente projetos sociais de educação de base ainda faziam algum sentido na agenda das políticas públicas governamentais, mesmo que mais por saudosismo e homenagem as comunidades eclesiais de base, e também por sustentar alguma rebordosa das pessoas que, assim como eu, foram criadas para este projeto cristão quase missionário, muitas vezes colonizador, e ainda assim melhor do que qualquer coisa que vislumbramos no que vem pela frente, foi nada mais do que uma prática de perfuração algorítmica. A política de algoritmo antes de ser uma tecnologia de venda de dados do google, veio da hiper estatística do controle durante a cientifização e higenização das políticas de massa no seio daquele velho estado nação. Uma prática tecnocrata de administração, controle e sedação social que visa resolver em menos tempo, com menos esforço e total produtividade os colapsos sociais através dos perfis, e isso era apenas o amanhecer do longo dia que viria pela frente.
A política algoritmal lança mão de todas as informações, vestígios e reminiscências de velhas estruturas do poder para reconfigurar a narrativa histórica do presente em menor tempo possível e maior lucratividade, acirrando, simplificando e personificando os conflitos históricos sociais no seio do chamado povo. Assim, o bandido, vira mais rápido ainda a representação de todo e qualquer homem da periferia, que possui de fato um perfil fácil de traçar num país que teve mais de 300 anos de escravidão, em oposição ao crime organizado legalista do homem branco rico sentado em empresas e cargos governamentais todos de terninho. Não foi um exercício fácil, pois, como a maioria dos moradores periferia não são bandidos, os jovens cheios de ideologias e discursos importados de missões mais ou menos cristãs, mais ou menos capitalistas, além de toda a sorte de filosofias de salvação, deveriam perfurar no sentido contrário o algoritmo que os iria perseguir para o resto da vida. Representar tudo aquilo que os esperaria da ponte pra lá sem nem ao menos concordar com o mercado da morte e mais, tendo membros próximos de suas famílias empresários criminais e policiais. O resultado é uma grande piada, mas, uma piada não normativa. Uma piada comprometida com a perfuração de ciclos de aprisionamento propagandísticos que se utilizam de reduções históricas através de necro algoritmos sustentáculos do poder neoliberal e que corporifica e privatiza os conflitos históricos e a própria história em si no tempo e no corpo de uma vida. O filme é uma piada anti algorítmica, um contra treinamento que prepara para ambiguidade e para a não captura pela hidra-capitalista que possuí tantas identidades e cabeças quanto moedas de cobre e papel dinheiro no mundo. Não possui um discurso unificado, não está preparado para uma propaganda, não representa a nenhum grupo específico, não fortalece falsos heróis nem falsos Judas. A malhação do judas, que é de novo um sintoma da política de privatização algorítmica da História para o lucro com a violência e justificativa para mais uma rodada de empobrecimento, é o cenário que permite a derrocada dos velhos projetos sociais missionários da esquerda, seja ela de butique e não, mas que é facilmente desmontada por meia dúzia de publicitários.
Urge agora a invenção de novas práticas e filosofias de permanência dos povos na terra em oposição ao extermínio e a extinção dos modos de vida pela algoritmização homogeneizante e privatização da História em corpos de uma vida só. Práticas e filosofias de permanência de cosmologias ricas em complexidade, não Estado Unidenses, não temporárias mas não imobiliárias, não falocêntricas e penetrativas, não propagandísticas, não representáveis. Ambiguidades mais ou menos precárias, mais ou menos ancestrais, tecnologias de permanência que ainda perfuram os ciclos parodísticos de perpetuação do poder através da re-encenação e da transmissão de tecnologias de existência/resistência que são capazes de fazer o que uma pessoa sozinha não seria capaz no tempo de sua vida, através dos corpos terceiro-mundistas. Isto se dá e pode se dar de diversas maneiras através de coalizões e contaminações pós-coloniais que navegam pelas fraturas de dominação silenciosamente sob o eclipse europeu neoliberal que se abateu sobre a humanidade, e principalmente sobre o Terceiro Mundo, nos recolando em nosso lugar de bárbaros, bandidos, perigosos, terroristas, pobres, chucros, não democráticos.
A política de representação também obedece a pirâmide e a amplia para todos os lados como um grande rebosteio do terceiro mundo que se não reagir estará de volta a realidade das guerras e ditaturas muito em breve. O tempo desta luta continua sendo o mesmo tempo de séculos, sem imediatismos, como nunca o deixou de ser. Cabe por fim dizer que a população de mulheres não foi citada durante o texto porque na configuração do novo governo neoliberal, assim como no antigo, não ocupa papéis centrais de tomada de decisões de massa e participa muito pouco do mercado de prestação de serviços de morte, se não, continua lutando por organizar minimamente seu trabalho não remunerado de prestação de serviços sexuais e matrimoniais, além de estar escorregando ainda na reivindicação das políticas de denúncia institucional contra a violência machista, que nunca foi e não é um direito da população de mulheres, digam as redes sociais ou não. Jamais saberemos se este texto seria escrito desta maneira se os espaços de poder fossem espaços interseccionais mistos compostos por mulheres-não-primeira-damas, mas aí não seria o poder. Vale dizer também que os projetos sociais de arte os quais trabalhei e estudei, hoje desmontados, e, diga-se de passagem, espaços de extrema precariedade, sempre foram compostos por grupos mistos: uma constelação de classes sociais, gêneros, nacionalidades, racializações e até mesmo etnias, embora majoritariamente, assim como tudo, dirigidos, chancelados ou vigiados por homens brancos ricos.
notas
1
Afeganistamos, curta metragem, São Paulo, 9min. Direção e roteiro: Grupo Em Crise e Irmãos Guerra; orientação: Thais di Marco; direção de fotografia: Grupo Em Crise; direção de arte: Grupo Em Crise; montagem: Irmãos Guerra; empresa produtora: Irmãos Guerra Filmes; produção: Projeto Fliperama e Ecos; produção executiva: Projeto Fliperama e Ecos; direção de produção: Grupo Em Crise, Irmãos Guerra e Thais di Marco; som direto: Grupo Em Crise; edição de som: Irmãos Guerra; trilha: André CantoRima; elenco: Grupo Em Crise: Patrick Araujo Bezerra, Tuany Damasco, Gustavo Henrique Santos, Victor Rap, Gabriel Cardoso, Murilo dos Santos, Dyego Matheus da Silva, Douglas Silva, Luana Medeiros, Alefe Oliveira, Sthefany Mendes, Ingrid Nascimento, Gabriella Souza, Anne Cardine, Barbara Rosa, Rebeca Lopes, Bruno Lacerda. Trailer <https://vimeo.com/227446554>.
2
GRUPO EM CRISE. O jardim das feras. Projeto Fliperama, Produção Comunicação em sexualidade, Patrocínio Petrobras, São Paulo, 2015 <https://vimeo.com/130470016>.
3
GRUPO EM CRISE. O que resta do fim. Projeto Fliperama, Produção Comunicação em sexualidade, Patrocínio Petrobras, São Paulo, 2015 <https://vimeo.com/121529461>.
4
GRUPO CORPOCIDADE. (Deso) Obedientes. Projeto Fliperama, Produção Comunicação em sexualidade, Patrocínio Petrobras, São Paulo, 2015 <https://vimeo.com/123401727>.
5
GRUPO EM CRISE; IRMÃOS GUERRA. Afeganistamos. Projeto Fliperama, Produção Irmãos Guerra Filmes, Patrocínio Petrobras, São Paulo, 2015.
6
Projeto Fliperama por seus participantes <https://vimeo.com/127827680>.
sobre a autora
Thais Di Marco é uma artista de São Paulo que atua nas áreas de dança, performance, teatro e música dentro de contextos de residências artísticas e plataformas de criação. Pesquisa a dança sob a luz das coreografias de poder que performam através de nossos corpos manutenções algorítmicas do status quo. Se dedica a produção de estéticas terceiro-mundistas e a conexões não normativas dos fluxos do capital. Trabalhou junto a movimentos sociais, comunidades tradicionais e é filha de santo do Candomblé Angola. Atualmente cursa o mestrado para coreógrafos Das Choreography na Amsterdamse Hogeschool von de Kunsten, em Amsterdam aonde realiza o projeto Gondwana Boom https://gondwanaboom.hotglue.me tendo como uma de suas ações de pesquisa o estudo da Lucha Libre mexicana. É atualmente artista residente do centro cultural Le Centre em Abomey Calavi no Benin, África Ocidental.